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terça-feira, 30 de maio de 2017

Pelo Fogo

Coloque fé onde falta coragem.
(Tiago Proba)


Mohandas Karamchand foi um revolucionário. Liderou os indianos na luta pela independência política. Em 1947, a Inglaterra reconheceu a Índia como um país livre, e ele se tornou um herói nacional. Seu feito é ainda mais admirável em decorrência das armas que usou em sua árdua batalha: jejuns, marchas e boicotes civis. Ideologia. Uma guerra vencida sem "guerra". Neste processo, sofreu inúmeras retaliações, sendo inclusive, condenado a prisão. Ficou trancafiado em uma cela por mais de seis anos, e mesmo assim, sua determinação jamais foi minada pelas dificuldades. Talvez você não conheça Mohandas Karamchand, mas certamente já ouviu o nome pelo qual ficou conhecido em todo mundo: Mahatma Gandhi. Um guerreiro pacifista... Não vou discorrer sobre sua história, ou me ater a belíssima biografia de sua vida exemplar. Quero apenas transcrever uma frase dita por ele nos anos em que esteve aprisionado, impossibilitado de lutar ao lado de sua gente: - Você pode me acorrentar, você pode me torturar, pode até destruir o meu corpo, mas você nunca vai aprisionar a minha mente.

E aqui, encontro o “gancho” perfeito para falar sobre três jovens hebreus que mantiveram intactas as crenças e preservaram suas identidades culturais, mesmo diante da morte eminente. E antes de entendermos quem eles “eram”, é preciso compreender de “onde” vieram.

Jerusalém sempre foi uma cidade de enorme importância, pela localização privilegiada, o simbolismo religioso e a cultura milenar. Historicamente, atraiu muitos olhares cobiçosos para suas multiformes riquezas. Foi estabelecida por Davi como capital de Israel, e nela estava sediada a Casa Real e o grandioso Templo de Salomão. Com a separação de Israel em dois reinos, Jerusalém passou a ser a capital de Judá (Reino do Sul). Em decorrência da fidelidade de reis como Joás, Josafá e Ezequias, a cidade foi poupada das mãos do exército Assírio, que já havia conquistado o Reino do Norte (Israel) cerca de um século antes.

Porém, como predito pelos profetas Isaías e Jeremias, havia chegado à hora de Judá ser castigada por seus pecados. E esta punição se daria na forma de um septuagenário exílio em terras babilônicas. Tudo começou em 606 a.C, no quarto ano do reinado de Jeoaquim. A Babilônia como estado suserano, que expandia seus domínios sobre o mundo daquela época, fez de Judá um estado vassalo (escravo). Quando os judeus tentaram reverter esta situação, o rei Nabucodonosor II atacou Judá, sitiou a capital Jerusalém e facilmente subjugou a nação. O inexperiente rei judeu acabou poupado pelos caldeus, com a condição de submeter-se as vontades da Babilônia. Obviamente, ele aceitou. Para garantir que Jeoaquim se mantivesse leal aos caldeus, Nabucodonosor levou como reféns, um grande número de “príncipes”, título dado aos filhos das famílias mais nobres do reino. Nesta leva de exilados estavam, Daniel, Hananias, Misael e Azarias. Foi também nesta invasão que o Templo de Jerusalém foi saqueado, e seus tesouros levados para adornar templos pagãos da Babilônia.

O rei Jeoaquim, homem de coração endurecido para a voz de Deus e seus profetas, decidiu parar de pagar tributos, certo que a Babilônia estava ocupada demais para se preocupar com ele. Esta arriscada estratégia deu certo até o ano de 598 a.C, quando Nabucodonosor marchou contra Jerusalém mais uma vez. Rapidamente a cidade foi tomada pelos babilônicos, que ali permaneceram por mais de um ano. Neste período o rei Jeoaquim faleceu. Seu filho Jeconias reinou em seu lugar por apenas três meses, até se render as tropas estrangeiras. Ao retornar vitorioso para sua terra, Nabucodonosor levou consigo um grande número de prisioneiros, incluindo o rei e sua família, toda a nobreza judaica, os oficiais militares e os melhores artesões. Nabucodonosor elegeu Zedequias, como novo rei de Judá, que, vislumbrado por uma aliança militar feita com o Egito, comandou um novo levante contra o opressor.

Novamente Judá foi sitiada, num cerco que durou dezoito meses e levou as pessoas de dentro das cidades a cometerem a antropofagia, tamanha era a fome. Quando os babilônicos finalmente romperam os muros de Jerusalém, encontraram um povo desamparado e indefeso, e o que se viu, foi um massacre sem precedentes. A família de Zedequias foi brutalmente assassina, o rei teve seus olhos vazados e foi levado cativo para o exílio. Desta vez, Nabucodonosor promoveu uma deportação massiva, deixando em solo pátrio apenas os cidadãos considerados “imprestáveis”. Ele nomeou Gedalias como governante desta gente, mas, dois meses depois, esse líder foi assassinado por rebeldes revoltosos. O povo assustado e temendo represálias, fugiu para o Egito, deixando Jerusalém sem habitantes e em ruínas. Os prisioneiros levados cativos para a Babilônia, só ganhariam o direito de regressar para a casa setenta anos depois, quando o império Medo- Persa já havia conquistado os caldeus. Nessa época, ao ler um texto do profeta Isaías, o rei Ciro encontrou seu nome em uma profecia escrita cem anos, dizendo que seria "ele" o responsável pelo retorno dos judeus a sua pátria (Isaías 44:28, 45:1). Comovido, Ciro emitiu um decreto, concedendo aos cativos o direito de voltar para casa.

O período em que os judeus estiveram no exílio, nos deixou muitas histórias inspiradoras. Verdadeiras lições de fé, lealdade, coragem e devoção ao único e verdadeiro Deus. Entre os primeiros deportados, Nabucodonosor exigiu que alguns jovens fossem separados para servir no palácio. Eles não poderiam apresentar defeitos físicos, deveriam possuir conhecimento em ciência e ter boa desenvoltura social.  Entre os selecionados, quatro moços teriam imenso destaque nas páginas do livro de Daniel. Um deles, é o próprio Daniel, e os outros três são Hananias, Misael e Azarias. Para muitos, estes nomes podem até soar desconhecidos, pois assim que chegaram à Babilônia, esses moços foram conduzidos ao palácio de Nabucodonosor a fim de iniciar um treinamento de três anos, que os versaria na cultura babilônica, tornando os aptos a exercer cargos de relevância dentro do próprio governo. Uma das primeiras medidas tomadas por Aspenaz, o responsável pela preparação dos jovens hebreus, foi mudar os seus nomes, dando a eles nomenclaturas caldeias.

Daniel, cujo nome significava “Deus é meu Juiz” passou a ser chamado de Beltessazar, que significava “Tesouro de Bel”.

Hananias, cujo nome significava “Deus foi gracioso comigo” passou a ser conhecido como Sadraque, que significa “Inspiração do Sol”.

Misael, cujo nome significava “Quem é como Deus?”, recebeu o nome de Mesaque, que significava “Aquele que pertence à deusa Sheshach”.

Por sua vez, Azarias, cujo nome significava “Deus é quem me ajuda”, passou a ser chamado de Abede-Nego, que significava, “Servo de Nego””.

Aqueles moços, cuja idade variava de catorze a dezesseis anos, estavam muito longe de casa e o seu vínculo com a religiosidade judaica progressivamente era desfeito. Seus nomes que exaltavam o Deus de Israel, foram substituídos por nomenclaturas pagãs que glorificavam a deuses estrangeiros. Nos anos vindouros, eles teriam contato direto com a cultura babilônica, repleta de ritos e misticismo, a começar pelos pomposos jantares bancados pelo rei. Assim como seus compatriotas fizeram, eles poderiam se adaptar à nova condição, e viver uma vida de regalias dentro dos preceitos pagãos. Porém, os quatro jovens optaram por preservar intacta a essência, conservar sua origem e se manter fiel ao único e verdadeiro Deus.

Nabucodonosor ordenou que seus “convidados” fossem alimentados com a mesma comida servida para a família real. Ótimos vinhos, elaboradas massas, vegetação orgânica e carnes selecionadas. O problema é que na cozinha do palácio, os sacerdotes pagãos eram tão influentes quanto os chef´s.  Toda refeição, antes de ir para mesa, era oferecida e consagrada ao deus Bel, ou qualquer outra deidade babilônica. Pratos belos, saborosos e contaminados pelo pecado. Daniel e seus companheiros tomaram uma decisão arriscada, e assentaram em seus corações uma forte resolução. Não se contaminariam com as iguarias do rei. Com muita sabedoria, convenceram Aspenaz a lhes fornecer uma dieta a base de legumes e água. Ao final do período de treinamento, foram eles que apresentaram os melhores resultados físicos e intelectuais. Anos depois, quando os hebreus já estavam adaptados ao novo país e exercendo posição de destaque na política local, Sadraque, Mesaque e Abde-Nego enfrentaram uma verdadeira prova de fogo.

O rei projetou e construiu um verdadeiro monumento ao ego. A megalomaníaca estátua idealizada por Nabucodonosor era uma impressionante peça de ouro com absurdos 29, 4 metros de altura e aproximadamente 3 metros de largura, erigida na planície de Dura, província da Babilônia, O aspecto e a forma da escultura não foram descritos no texto bíblico, mas supõe-se que pode ter sido uma homenagem a Nabopolassar (pai de Nabucodonosor), um ídolo de Bel (o deus oficial da Babilônia), ou ainda, como acreditam a maioria dos estudiosos, uma representação do próprio monarca. No ápice de seu orgulho e altivez, o rei convocou para a inauguração de sua obra prima, toda a população da Babilônia, incluindo os sátrapas, juízes, políticos, tesoureiros e régulos de todas as províncias. Durante a cerimônia, a grande orquestra executaria uma música especialmente composta para o evento, e ao final da mesma, quando as buzinas tocassem, todos, sem exceção, deveriam se ajoelhar perante a estátua. Quem desobedecesse tal ordem, seria lançado imediatamente em uma fornalha ardente.

Contrariando as expectativas, enquanto todos se curvaram, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego se mantiveram irredutíveis... Em pé. Firmes como rocha. O espanto foi geral. Alguns se revoltaram com a irreverencia dos moços. Outros se corroeram de inveja da coragem demostrada pelos três.  Imediatamente, os três jovens foram denunciados: Há uns homens judeus, que tu constituíste sobre os negócios da província de Babilônia: Sadraque, Mesaque e Abede-Nego; esses homens, ó rei, não fizeram caso de ti.

O rei ficou furioso... Consumido pelo orgulho próprio, Nabucodonosor se recusava em aceitar uma negativa ao seu decreto, e ordenou que o ritual fosse repetido. Na interpretação vaidosa do rei, certamente os retardatários haviam perdido o “tempo” correto para prostar. Tudo não tinha passado de um grande mal-entendido. Ritual repetido. Música tema executada. Silêncio. Joelhos dobrados. Quando todos se curvaram pela segunda vez, os três jovens hebreus continuaram em pé, mais firmes do que nunca. Levados a presença do rei, a coragem de suas ações também reverberou nas palavras proferidas: "Ó Nabucodonosor, não precisamos defender-nos diante de ti. Se formos atirados na fornalha em chamas, o Deus a quem prestamos culto pode livrar-nos, e ele nos livrará das suas mãos, ó rei. Mas, se ele não nos livrar, saiba, ó rei, que não prestaremos culto aos seus deuses nem adoraremos a imagem de ouro que mandaste erguer".

A mais corriqueira curiosidade sobre o episódio da fornalha é onde estava Daniel quando seus amigos mais precisaram dele. A resposta para esta pergunta é mais simples do que parece, já que Daniel havia se tornado um estadista influente e respeitável. Com a Babilônia vassalando dezenas de nações ao redor do mundo, é perfeitamente plausível que Daniel estivesse em uma viagem diplomática. Porém, quando nos atamos apenas neste detalhe da história, perdemos o foco de uma valiosa lição, e nos esquecemos que Deus tem projetos "personalizados" para seus filhos. Naquele momento, a fornalha não era um teste para Daniel, e sim para seus amigos. Para Daniel, estava reservada uma cova cheia de leões. Deus tem batalhas "sob medida" para cada um de seus guerreiros. Ele conhece o limite de nossas forças e a capacidade individual de suportar provações. Por vezes, somos poupados da fornalha, apenas para cair na cova dos leões. Outros, são poupados da cova enquanto estão na fornalha. Fato é, que todos seremos provados. Mas, seremos aprovados?

As opções que se apresentavam a Sadraque, Mesaque e Abede-Nego eram escassas. Negar o seu Deus ou morrer. Sem titubear, eles tomaram uma decisão acertadíssima, colocando suas vidas nas mãos de Deus. Viver ou morrer não era uma questão relevante. Vida ou morte não dependia do decreto do rei. Deus é quem lhes daria a destinação desejada. E qual fosse, seria por eles aceita de bom grado: - Rei Nabucodonosor... Você pode me acorrentar. Você pode me torturar. Pode até destruir o meu corpo. Mas você nunca vai aprisionar a minha mente. A minha alma. O meu coração. Você não pode matar minha fé! Neste ponto, Nabuconosor representa com perfeição o inimigo de nossas almas, que constantemente busca nos atacar com fúria e vigor, visando nada menos que a total destruição. Neste intento, usa os mais elaborados estratagemas. Por vezes, assusta. Mas, não deve impor medo.

Sabe-se hoje, que em situações bem específicas, o corpo humano pode suportar um calor de até 120°, desde que seja uma exposição muito rápida. Esta temperatura é facilmente conseguida em qualquer forno doméstico. A fornalha de Nabucodonosor produzia temperaturas muito mais elevadas. Mesmo assim, o rei ordenou que fosse setuplicada a intensidade das chamas. Os três jovens hebreus não ofereceram qualquer resistência à punição decretada. Impassível a esta questão,  o rei ordenou que eles fossem amarrados, e que seus soldados mais fortes conduzissem os réus. Quando foram lançados na fornalha, com pés e mãos atados, a intensidade do calor foi capaz de matar os guardas que se aproximaram das chamas. Mesmo assim, nada pode fazer contra os hebreus, exceto queimar as cordas que os prendiam. Quando Nabucodonosor olhou para sua fornalha, percebeu que os jovens caminhavam tranquilamente lá dentro, e não estavam sozinhos, pois um quarto homem, com aspectos divinos lhes fazia companhia.

- Disse então Nabucodonosor: "Louvado seja o Deus de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, que enviou o seu anjo e livrou os seus servos! Eles confiaram nele, desafiaram a ordem do rei, preferindo abrir mão de suas vidas a que prestar culto e adorar a outro deus, que não fosse o seu próprio Deus.Por isso eu decreto que todo homem de qualquer povo, nação e língua que disser alguma coisa contra o Deus de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego seja despedaçado e sua casa seja transformada em montes de entulho, pois nenhum outro deus é capaz de livrar ninguém dessa maneira" (Daniel 3:28)

Seria muito mais confortável, se o Senhor nos livrasse de todas as fornalhas destinadas à nossa provação. Infelizmente (para nós), nem sempre este é o plano de Deus.  A chama purifica o ouro. O fogo refina a prata. O calor fortalece o vaso de barro. A fornalha forja nossa fé. Por vezes, ela é a portaria do salão onde celebraremos o triunfo. Passagem é obrigatória.  A boa notícia, é que Deus até pode não nos livrar da fornalha, mas certamente, nos livrará nela.

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