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quinta-feira, 11 de maio de 2017

Marco Zero

O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente.
(Mario Quintana)


Qualquer relacionamento, por mais irrigado de carinho e respeito que seja, inevitavelmente terá dias ruins. O grande problema, é quando dias se tornam em semanas, semanas em meses e meses em anos. A rotina rouba o colorido das estações, e mantem no piloto automático nossas motivações. Ou a falta delas.

Nem sempre o amor acaba, mas, ele esfria. Deixa de ser aquilo que foi, perde sua originalidade e se corrompe. Aos olhos humanos, estes ciclos de debilidade emocional são chamados de “crises”, e contornados com terapias, presentinhos e uma nova lua de mel.  Por vezes, o diagnóstico é até bem simples, e a relação só precisa de uma apimentadinha para recuperar o fervor. Um pouco de combustível, e a fornalha se ascende outra vez.

Porém, quando pensamos em nosso relacionamento com Deus, é preciso ter a plena consciência que Ele não aceita inserções. O Senhor não se deixa comprar com presentes caros, porque é dono de tudo. Deus não se submete a terapias, pois é médico dos médicos e terapeuta dos terapeutas. Não nos reaproximamos de Deus em viagens sazonais ou com poemas melosos. Deus não se emociona com canções românticas e serenatas na calada da noite.

Para o Senhor, só existe uma forma de restabelecer a conexão plena com o homem. Um recomeço.

Quando João foi arrebatado aos céus, recebeu a incumbência de transmitir mensagens específicas e nominais para sete igrejas da Ásia Menor. Cristo ditava e o apóstolo escrevia. A primeira das cartas, foi enviada a cidade de Éfeso, e nela, Jesus se apresenta como sendo aquele que tem em suas mãos as estrelas e caminha entre candelabros de ouro (Apocalipse 2:1).

Basicamente, Cristo estava chamado a igreja de Éfeso para uma DR espiritual. DR. Esta única sigla é capaz de reconstruir ou destruir relacionamentos. Quando anunciada previamente, provoca calafrios, ansiedade e até desespero. Quem nunca ficou apreensivo quando seu parceiro (a), lhe inquiriu numa ligação vespertina: - Precisamos urgentemente discutir nossa relação!

Como seres humanos, somos inclinados a maquiar nossas emoções. Durante estas “DR´s”, muitas vezes omitimos a verdade e empurramos a situação com a barriga. Procrastinamos. Falamos sem falar. Ouvimos sem ouvir. Resolvemos sem resolver. Aplicamos em nossos relacionamentos o pernicioso “jeitinho brasileiro”. O compositor Nelson Sargento resumiu a máxima de muitos relacionamentos em seu famoso samba “Falso Amor”:

O nosso amor é tão bonito, ela finge que me ama e eu finjo que acredito. O nosso falso amor é tão sincero, isso me faz bem feliz. Ela faz tudo que eu quero, eu faço tudo o que ela diz. Aqueles que se amam de verdade, invejam a nossa felicidade.

Deus desconhece a falsidade. Cristo ama verdadeiramente, e da mesma forma, deseja ser amado. Amor e verdade são condições básicas para qualquer relacionamento existente nos céus. Exatamente por isso, ao convidar a igreja de Éfeso para discutir a relação, o Senhor já deixa muito claro quem está do lado de lá nesta DR espiritual:

Eu domino as estrelas.
Eu caminho entre a luz.
Eu posso tudo.
Eu conheço tudo.

Uma conversa franca, pautada na verdade. Ninguém finge. Ninguém desacredita.

E aparentemente, a relação ia bem. Cristo só tem elogios a sua “noiva”. Ela era trabalhadora e não desistia de seus sonhos. Persistente e laboriosa. Uma noiva prendada e apaixonada. Ai de quem se atrevesse a falar mal de seu amado. Ela o defendia com unhas e dentes e não permitia que banalizassem seu nome. O Senhor reconhece este empenho e se alegra com tamanha devoção:

- Conheço as suas obras, o seu trabalho árduo e a sua perseverança. Sei que você não pode tolerar homens maus, que pôs à prova os que dizem ser apóstolos, mas não são, e descobriu que eles eram impostores. Você tem perseverado e suportado sofrimentos por causa do meu nome, e não tem desfalecido (Apocalipse 2:2-3).

A Igreja de Éfeso era cheia de qualidades. Aquela noiva resplandecia em virtudes. Porém, aos olhos oniscientes do Cristo, as motivações estavam deturpadas. 

O trabalho era feito com esmero, porém, sem entusiasmo. A teologia genuína estava sendo preservada com zelo, mas, tudo era formalidade. O nome de Jesus era louvado, reverenciado e defendido por lábios contundentes, e mesmo assim, faltava emoção no discurso. Eles não fizeram o que era mal, longe disto. Entretanto, deixaram de fazer o bem com a mesma intensidade de antes. Não no esforço das mãos, e sim, no intuito do coração. 

A Igreja de Éfeso ainda amava, mesmo que seu amor tivesse perdido o fôlego no decorrer dos anos. O problema, é que esta “pequena” deficiência, é suficiente para minar nossa relação com Deus. Toda oxidação começa com um pequeno ponto de ferrugem. Um pouco de fermento, leveda toda a massa. E Cristo chama a atenção de sua Igreja para a mancha negra que destoa do belo vestido branco que ela ostenta orgulhosamente:

- Tenho contra vocês o abandono do primeiro amor.

Ah! O primeiro amor. Existe no universo uma força mais poderosa? Quem ama de forma pura e genuína não mede esforços por seu afeto. Tudo é lindo, perfeito e eterno. Pena, que acaba. O tempo é implacável com esta forma de amar. Ele cria condições, estabelece regras, revela desvios. O tempo pragmatiza o amor. Transforma poemas em contos. Gatinhos e gatinhas se evoluem para felinos sanguinários e agressivos.

Não é este o tipo de relacionamento que Cristo busca com sua noiva. O Senhor ama com intensidade e integridade, e espera que o amemos com dignidade e comprometimento. 

Nesta relação, não há espaço para fingimentos e procrastinações. Ama-se com totalidade, ou não se ama. E as boas obras não conseguem esconder nossas falhas de caráter. E nossas palavras rebuscadas não compensam as irresponsabilidades do coração. Ele tem nas mãos as estrelas. Ele caminha entre os candelabros de ouro. Ele pode tudo. Ele sabe de tudo. Ele mede a intensidade de nosso amor. E Jesus não mede palavras. Ele é sincero em suas DR´s:

- Estou muito triste com esta situação. Como puderam perder o primeiro amor? Vocês sabem que não habito onde não sou desejado. Então, terei que retirar o meu candelabro do vosso meio. Sem amor, não posso mais caminhar ao seu lado.  

E agora? O que fazer?

Infelizmente, só damos valor ao que perdemos. Enquanto Jesus está ao nosso lado, o ignoramos. Se Ele janta em nossa casa, não o notamos. Se Ele vigia nosso sono, sequer lhe damos “bom-dia” ao amanhecer. Mas, se Jesus falta, a vida acaba.

Felizmente, Cristo sempre irá esgotar todas as possibilidades de reaproximação, antes de se retirar do recinto. E para a Igreja de Éfeso, o relacionamento precisava retornar ao ponto inicial. Um recomeço antes do fim.

- Lembre-se de onde caiu! Arrependa-se e pratique as obras que praticava no princípio (Apocalipse 2:5).

Cristo pediu a Igreja de Éfeso que olhasse para o seu passado, e identificasse ali, o ponto exato onde o trem descarrilhou. Deus não queria que eles revivessem seus pecados ou voltassem à estaca zero da vida. Ele propunha uma introspecção.

Tudo ia bem, mas, de repente, as coisas começaram a desandar. Existe um motivo. Existe um momento. Nada acontece por acaso. Quando sabemos para onde olhar, podemos encontrar o minuto exato do erro, o local preciso da queda. E dar um passo atrás. Fazer diferente. Refazer. Mudar a rota do trem, sem passar pelos carris danificados. Marco zero, de onde parte a história.

A algum tempo atrás, eu e minha esposa decidimos fazer compras no centro comercial de uma cidade vizinha. Na primeira hora, tudo corria sobre trilhos aveludados. Mas, assim que eu comprei o último item de minha lista, percebi que a Valquíria, se quer, tinha aberto a sua. Não preciso dizer que as horas seguintes foram torturantes. Entra em loja, sai de loja, pergunta preço, experimenta sapato, orçamento, cálculo, volta para a primeira loja visitada... E nada. Sem produtividade. 

A minha longanimidade estava mais curta que a paciência da atendente da centésima loja pesquisada. Irritabilidade. Sou do tipo que não esconde o mal humor, e por sua vez, minha esposa não tolera “cara amarrada”. O clima esquentou, o doce amargou e o passeio desandou.

Enquanto eu rosnava por entre as sacolas, a Valquíria sibilava ziguezagueando pelos corredores. Nossos diálogos ficaram mais curtos e extremamente ásperos. Depois, veio o silêncio rancoroso. O passeio que se iniciou de mãos dadas, agora caminhava em calçadas opostas. O que deu errado? Onde me tornei tão impaciente?

Enquanto esperava do lado de fora da milésima loja, pensava em centenas de palavras agressivas para despejar em cima de minha esposa. Numa interpretação unilateral, ela estava "me fazendo de palhaço", desrespeitando minha objetividade. Enquanto vagueava em meus pensamentos rancorosos, olhei para os prédios em volta, e reconheci a marquise do hotel onde passamos nossa primeira noite como marido e mulher. E então, uma ideia me ocorreu... 

E se?

Entrei na loja e caminhei por um corredor de maridos mau humorados, até encontrar minha esposa na seção de cosméticos. Seu olhar carregado de mágoa me fuzilou, esperando mais uma recriminação de minha parte. Entendi a mensagem e engoli em seco. Amansando o tom de voz, gentilmente lhe pedi que esperasse por mim, enquanto “resolvia uma coisinha”. Corri ao hotel, e fiz uma reserva. 

Aquele era o nosso marco zero. O local que nos faria lembrar de quem éramos e porque estávamos ali. Tiro certeiro. Assim que a comuniquei que passaríamos a noite “naquele hotel” (aquele, não outro), seus olhos se encheram de luz. As desavenças se dissiparam como névoa ao vento. Iriamos reviver a intensidade do primeiro amor, num local emblemático para nós, onde mãos tendem a ficar unidas, e a rotina da vida espera do lado de fora.

Voltar a viver o primeiro amor, transforma o mundo a nossa volta em detalhes superficiais. A vida se resume em dois corações que se fundem em um. E nada mais parece ter importância. E não é exatamente isso que Cristo deseja de sua noiva?

Lembra-te, de onde caiu. Reconheça sua apostasia. Assuma seus erros. Não procrastine suas emoções. Analise seu relacionamento com imparcialidade e compreenda o porquê dele se deteriorar com o tempo. Onde está o ponto de oxidação? Que tipo de fermento tem inflado a massa? Qual o real motivo da banalização do amor? Onde as mãos se soltaram? Onde o jeito de amar deixou de ser prático e se tornou didático?

- Lembre-se de onde caiu! Arrependa-se e pratique as obras que praticava no princípio (Apocalipse 2:5).

Voltar a praticar as primeiras obras requer um exercício de memória. Quais eram as motivações nos primórdios da fé? Elas continuam inalteradas? Frequentamos cultos para glorificar a Deus ou para sermos visto pela membresia? Guardamos posição diaconal porque amamos a Obra do Senhor, ou apenas porque estamos na escala?

Jesus contou uma parábola que se aplica neste contexto. Um poderoso fazendeiro estava saindo de viagem, quando chamou seu servo de maior confiança, e lhe deu diversas instruções de como a criadagem deveria se portar em sua ausência. Meses depois, quando voltou, percebeu que tudo estava conforme tinha solicitado. Cada coisa em seu devido lugar. O funcionário cumpriu à risca todas as orientações. Preto no branco. Um pingo em cada “i”. Aquele homem poderoso chamou seu servo para uma conversa bem sincera sobre os acontecimentos. Mas, ao invés de elogiá-lo, o repreendeu duramente:

- Servo inútil! Fez somente o que deveria fazer (Lucas 17:10).

Cristo não busca em nós uma mera paixão. Ele deseja devoção. O Senhor nos dá, e cobra de nós, profundidade. Relacionamentos rasos não estão em sua lista de interesses. Amores superficiais não satisfazem seu coração. Podemos fazer muito, e entregar pouco. E sem entrega, não conquistamos o coração de Deus. O relacionamento entre céu e terra não se sustenta com aparências e obrigatoriedades. Tem que ter intenção, sinceridade e empatia.

Que tal passar uma noite no hotel “DE ONDE DEUS ME TIROU”, ou pernoitar na pousada “O QUE CRISTO FEZ EM MINHA VIDA”. Reserve alguns dias no hotel fazenda “QUEM EU ERA E QUEM EU SOU”, aproveite e faça uma trilha pelo “CAMINHO DOS MILAGRES”, passando pelo “RIO DA GRAÇA” e a “CACHOEIRA DA MISERICÓRDIA”. Encontre o marco zero, e parta daí. E faça todo o percurso de mãos dadas com Jesus. Noivo e Noiva, revivendo os primórdios de seu amor.

- Lembre-se de onde caiu! Arrependa-se e pratique as obras que praticava no princípio (Apocalipse 2:5).

A Igreja em Éfeso ainda era produtiva, mas, não inflamada. Suas mãos eram ágeis, e o coração estava letárgico. Batiam o cartão na hora certa. Não perdiam um único dia de trabalho. Porém, não amavam o que faziam. Não mais. Não como antes. E isto a estava matando espiritualmente. Uma morte lenta e imperceptível. 

Porém, o Senhor percebeu, e mandou uma carta de amor a sua amada. Ele queria resgatar a relação. Levar o noivado ao ápice do primeiro amor, e mantê-lo ali, eternamente.

Deus não dá a mínima para protocolos. Ele despreza o legalismo. Deus quer que sejamos o que sentimos. Que amemos e pratiquemos com a mesma intensidade. Amor e obras. Obras e Amor. Primeiro amor motivando obras primárias. Primeiras obras oriundas de um amor genuíno e imutável. Recomeços diários sem que existam fins prováveis.

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