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quinta-feira, 4 de maio de 2017

Agulhas, vestidos e ressurreição

Nunca é cedo para uma gentileza,
porque nunca se sabe quando poderá ser tarde demais.
(Ralph Waldo Emerson)


A Igreja Primitiva é um modelo institucional e espiritual para todas as gerações que a sucederam. Sua primeira e mais marcante característica é exatamente a obediência, pois mesmo sendo formada por homens selecionados pelo próprio Cristo, e mulheres que conviveram diariamente com os ensinamentos de Jesus, ela não queimou etapas, se mantendo leal as recomendações do Messias. O resultado foi um crescimento gigantesco, tanto em número, quanto em unção.

Os primórdios da Igreja foram marcados por uma intensa e irrepreensível união, peça chave de sua expansão miraculosa. Os primeiros capítulos de Atos dos Apóstolos, registram minuciosamente os fatores que corroboraram para o estabelecimento desta unidade eclesiástica, que servem de parâmetro para entendermos a defasagem espiritual de nossos tempos. Para todos os que desejam entender a “essência” do cristianismo, e o que fomos chamados para ser, basta uma leitura detalhada no relato de Lucas, evangelista, exímio médico e minucioso historiador:

A Igreja, como um todo, se mantinha fiel aos ensinamentos apostólicos, nas orações, na comunhão e no partir do pão. Entre eles não havia gente necessitada, pois aqueles que “tinham” repartiam com os que “não tinham”. Faziam refeições comunitárias, onde comiam juntos em alegria e humildade de coração. Todos cultivavam a mesma fé e tinham tudo em comum, sendo hospitaleiros uns para com os outros.  Perseveravam unânimes no templo, louvando a Deus e caindo na graça do povo. O amor era uma pregação prática e incessante, despertando interesse de todo tipo de gente por aquela nova fé. Uma vez atraídos pelos laços de fraternidade tão presente entre os cristãos, todos eram impactados pelo poder que residia na pregação dos apóstolos, que cheios de unção testificavam sobre a ressurreição de Cristo e ministravam a Palavra de Deus com tamanha ousadia, que até os alicerces do templo eram abalados, operando em nome de Jesus, grandes sinais e prodígios maravilhosos. 

Impactante, não? Eles viviam a pregação, antes de pregá-la. Amavam, e somente depois, falavam de amor. Isto é Igreja. Esta é a essência do Evangelho. 

Tiago 1:27 afirma que a verdadeira religião, pura e imaculada, consiste em amparar os necessitados. A igreja primitiva se empenhava vigorosamente em ser leal a esta vocação, e Lucas, não apenas ressalta a latente fraternidade eclesiástica (Atos 2:42-47), como faz questão e citar nominalmente alguns irmãos engajados na prática da generosidade, como foi o caso de Barnabé (Atos 4:36-37) e Dorcas (Atos 9:36-39).

Sabemos que a salvação não é obtida por boas obras, e sim por fé em Cristo Jesus, já que é um favor imerecido derivado da Graça (Gálatas 2:16). Porém, é fundamental que o cristão viva uma vida onde a prática de boas obras seja uma atividade constante, isso porque uma fé que não é colocada em exercício torna-se letárgica, obsoleta e por fim, acaba morrendo (Tiago 2:24-26). Parte importante de nossa pregação é exatamente aquilo que fazemos, e Paulo exortou aos irmãos da cidade de Colossos que, tanto suas “palavras” quanto suas “obras”, deveriam ser embasadas no nome do Senhor Jesus, dando por ele graças ao Deus Pai (Colossenses 3:17). De fato, aquilo que fazemos grita tão alto, que as vezes, nossas palavras sequer são ouvidas.

O cristão é uma carta aberta, escrita e enviada ao mundo afim de que os homens possam ler sobre o amor e a misericórdia de Deus (II Coríntios 3:2). É olhando para nossas vidas que o ímpio poderá ter uma prova clara do poder transformador do evangelho, e observar como uma vida dedicada ao Senhor é abundante de paz e felicidade.

Jesus nos revelou que aquele que nEle cresse, se tornaria em um manancial de águas vivas (João 7:38). Isso implica dizer que o cristão deve ser uma fonte de generosidade e amor, sempre disposto a estender sua mão ao próximo, independente de quem ele seja.

A fé é a estrada que nos conduz ao céu, e nossas obras são pedras que pavimentam este caminho. A fé de um cristão é como uma luz intensa que irradia em meio as trevas deste mundo, mas suas obras são como luzes de neon, que piscam incessantemente, fazendo com que até os olhares mais dispersos sejam atraídos para ela. A igreja primitiva entendeu esta verdade, e transformou a caridade em sua bandeira de luta, tendo a amor a Deus, e ao próximo, como o epicentro de sua existência.

Neste contexto, Dorcas é apenas a ponta do iceberg. 

Mas, quem é Dorcas?

Ela era uma mulher generosa, que mesmo após a morte, colheu frutos gloriosos por suas excelentes obras, sendo o primeiro caso de ressurreição depois da ascensão de Jesus. O milagre aconteceu porque os irmãos da cidade de Jope (principais beneficiados pela bondade de Dorcas), se mobilizaram em clamor, recorrendo a Pedro para que este orasse pelo “improvável” milagre. E o milagre aconteceu.

Boas obras dão início a um ciclo glorioso de bem-aventuranças que nem mesmo a morte pode interromper (I Timóteo 4:7). Pensar no próximo antes de nós mesmos, é a chave para as nossas maiores conquistas. Jó passou cerca de 40 capítulos tentando encontrar respostas para suas mazelas e tragédias pessoais, e neste tempo, sua situação continuou caótica e sem solução. Mas, bastou “um” versículo orando pelos seus amigos, para que seu cativeiro fosse virado e a restituição batesse em sua porta (Jó 42:7).

Dorcas não tinha muitos talentos reconhecidos. A Bíblia não menciona nenhuma de suas pregações. Ela não curou enfermos em nome de Jesus e nem expulsou demônios. Dorcas não cantava bem, ao ponto de chamar atenção do evangelista. Porém, era uma adoradora de primeira classe. Ela louvava ao Senhor através de linhas e agulhas. Remendos, pensas e bainhas eram parte de seu devocional diário. Ele fabricava túnicas e as doava para os órfãos. Ela costurava lindos vestidos e presenteava as viúvas desemparadas. Dorcas vestia os pobres e necessitados. Ela aquecia seus corpos com tecidos bem trabalhados e seus corações com amor e carinho. Aquela mulher era o tipo de religiosa que realmente faz Deus se sentir orgulhoso de seus filhos.

Na cidade de Jope, Dorcas era carinhosamente chamada de Tabita. As crianças pobres da cidade vestiam sua grife. Na AVDJ (associação das viúvas desamparadas de Jope), eram realizados desfiles da coleção outono/inverno com peças de seu ateliê. Quando um marido com posses encomendava “aquele” vestido novo para sua esposa, o dinheiro ganho também era doado aos pobres. A vida de Dorcas se resumia a praticar boas obras e repartir seus ganhos com o próximo. Imagine a tristeza daquela cidade, no dia que ela morreu.

A prefeitura declarou luto. O comércio não abriu. Órfãos choravam e viúvas pranteavam. Quem os vestiria agora? Quem diria que uma peça de roupa doada poderia fazer tanta diferença assim.

Conta-se que num bairro pobre de uma cidade distante, morava uma linda garotinha. Ela frequentava a escola local. A mãe não tinha muito cuidado, e a criança quase sempre estava suja, vestindo roupas velhas e maltratadas. O professor ficou penalizado com a situação da garotinha: - Como é que uma menina tão bonita, pode vir para a escola tão mal arrumada? 

Separou algum dinheiro do seu salário e, embora com dificuldade, resolveu lhe comprar um vestido novo. Ela ficou linda no seu vestidinho cor de rosa.

Quando a mãe viu a filha naquele lindo vestido, sentiu que era inadmissível sua princesinha, vestindo um belíssimo traje novo, ir suja e desgrenhada para a escola. Por isso, passou a lhe dar banho todos os dias, pentear seus cabelos e cortar as unhas. Durante o almoço de domingo, o pai, encantado com a beleza da filha, conversou com sua esposa: – Mulher, você não acha uma vergonha que nossa filha, sendo tão bonita e bem arrumada, more em um lugar como este, caindo aos pedaços? Que tal ajeitarmos nossa casa? Nas horas vagas, eu vou dar uma pintura nas paredes, consertar a cerca e plantar um jardim. 

Não demorou para que  a casa se destacasse na pequena vila, pela beleza das flores que enchiam o jardim, e o cuidado em todos os detalhes da rústica arquitetura. Os vizinhos ficaram envergonhados por morar em barracos feios e resolveram também arrumar as suas casas, plantar flores, usar pintura e criatividade. Toda a cidade ficou mais bonita. 

Um vestido doado pode fazer muita diferença.

Os irmãos levaram o corpo desfalecido de Dorcas para um quarto no último andar da casa. Eles oravam e choravam piamente. Pedro, um dos apóstolos originais de Jesus estava pregando em Lídia, uma cidade a apenas quatorze quilômetros dali. Dois obreiros da igreja viajaram ao seu encontro, e imploraram a Pedro que os acompanhasse até Jope. O pedido da irmandade era um só: - Por favor, irmão Pedro, ore para que Jesus ressuscitei nossa amada Talita.

Ressurreição. Este, é sem dúvidas, o mais ambicioso dos milagres. O tempo é revolvido. O espaço é rompido. Céus e terra são fundidos. Não é tão simples ressuscitar alguém. É preciso um motivo. Uma legalidade. Uma confirmação celeste. Um propósito inquestionável. Respeitando a estas regras, Jesus tinha ressuscitado mortos durante seu ministério. Os discípulos, não. Tiago foi assassinado por Herodes, e não ressuscitou. Estevão morreu apedrejado, e continuou morto. Porque, cargas d´agua, Deus permitiria que uma mulher anônima para a grande maioria, voltasse a vida?

Pedro foi convencido pelo que viu e ouviu. As viúvas o cercaram em lágrimas, segurando nas mãos os vestidos feitos por Dorcas. As crianças choravam baixinho, mostrando ao apóstolo as roupas doadas pela amada Talita. Um legado de amor. Um rastro perpétuo de generosidade. A fé provada com obras. A religião pura e genuína que agrada a Deus praticada com louvor. Havia um propósito naquela vida. Valia a pena desafiar a morte.

O apóstolo pediu que todos se retirassem do quarto. Se ajoelhou e orou. Pedro daria um passo ministerial gigantesco. Era preciso buscar a orientação do Senhor. E a resposta foi um “sim”. Ele se aproximou do corpo gélido da discípula generosa, e com naturalidade, gentilmente lhe falou:

- Talita, você está me ouvindo? Se levante, precisamos de você por aqui!

Atos 9:40-41 nos conta com exatidão o que aconteceu

- Ela abriu os olhos e, vendo Pedro, sentou-se. Tomando-a pela mão, ajudou-a a pôr-se de pé. Então, chamando os santos e as viúvas, apresentou-a viva.

Dorcas foi uma missionária que ganhou muitas almas em vida, por meio de sua generosidade, e outras tantas, na morte, por intermédio de sua fé. Qualidades intrínsecas. Hidrogênio e oxigênio formando uma molécula de água. O relato de sua ressurreição se espalhou pela cidade, e centenas de pessoas se converteram ao evangelho impactados pelo milagre. Eles conheciam Dorcas. Gostavam dela. Votariam nela para vereadora de Jope. Tinham comparecido ao seu velório. Choraram sua perca. E agora, o Jesus que a motivava em sua generosidade, tinha lhe agraciado com o dom da vida. Mais uma vez. Ninguém tinha argumentos para questionar. O caráter de Dorcas legitimava o milagre junto ao povo.

O impacto evangelístico do testemunho de Dorcas foi tão intenso, que Pedro precisou se mudar para a cidade, afim de auxiliar os pastores locais com o discipulado de tantas novas ovelhas. É provável que no culto onde Dorcas foi recebida de braços abertos pela igreja de Jope, Pedro tenha sido o pregador convidado da noite. 

Ele chegou ao cenáculo usando um belíssimo terno azul, feito sob medida. Elegância rara para aquele pescador "bronco e desabrido". Um presente de Dorcas a seu benfeitor. Uma prova cabal de que bondade gera bondade, e a misericórdia demostrada, é apenas o reflexo da misericórdia recebida.

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