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terça-feira, 30 de maio de 2017

Pelo Fogo

Coloque fé onde falta coragem.
(Tiago Proba)


Mohandas Karamchand foi um revolucionário. Liderou os indianos na luta pela independência política. Em 1947, a Inglaterra reconheceu a Índia como um país livre, e ele se tornou um herói nacional. Seu feito é ainda mais admirável em decorrência das armas que usou em sua árdua batalha: jejuns, marchas e boicotes civis. Ideologia. Uma guerra vencida sem "guerra". Neste processo, sofreu inúmeras retaliações, sendo inclusive, condenado a prisão. Ficou trancafiado em uma cela por mais de seis anos, e mesmo assim, sua determinação jamais foi minada pelas dificuldades. Talvez você não conheça Mohandas Karamchand, mas certamente já ouviu o nome pelo qual ficou conhecido em todo mundo: Mahatma Gandhi. Um guerreiro pacifista... Não vou discorrer sobre sua história, ou me ater a belíssima biografia de sua vida exemplar. Quero apenas transcrever uma frase dita por ele nos anos em que esteve aprisionado, impossibilitado de lutar ao lado de sua gente: - Você pode me acorrentar, você pode me torturar, pode até destruir o meu corpo, mas você nunca vai aprisionar a minha mente.

E aqui, encontro o “gancho” perfeito para falar sobre três jovens hebreus que mantiveram intactas as crenças e preservaram suas identidades culturais, mesmo diante da morte eminente. E antes de entendermos quem eles “eram”, é preciso compreender de “onde” vieram.

Jerusalém sempre foi uma cidade de enorme importância, pela localização privilegiada, o simbolismo religioso e a cultura milenar. Historicamente, atraiu muitos olhares cobiçosos para suas multiformes riquezas. Foi estabelecida por Davi como capital de Israel, e nela estava sediada a Casa Real e o grandioso Templo de Salomão. Com a separação de Israel em dois reinos, Jerusalém passou a ser a capital de Judá (Reino do Sul). Em decorrência da fidelidade de reis como Joás, Josafá e Ezequias, a cidade foi poupada das mãos do exército Assírio, que já havia conquistado o Reino do Norte (Israel) cerca de um século antes.

Porém, como predito pelos profetas Isaías e Jeremias, havia chegado à hora de Judá ser castigada por seus pecados. E esta punição se daria na forma de um septuagenário exílio em terras babilônicas. Tudo começou em 606 a.C, no quarto ano do reinado de Jeoaquim. A Babilônia como estado suserano, que expandia seus domínios sobre o mundo daquela época, fez de Judá um estado vassalo (escravo). Quando os judeus tentaram reverter esta situação, o rei Nabucodonosor II atacou Judá, sitiou a capital Jerusalém e facilmente subjugou a nação. O inexperiente rei judeu acabou poupado pelos caldeus, com a condição de submeter-se as vontades da Babilônia. Obviamente, ele aceitou. Para garantir que Jeoaquim se mantivesse leal aos caldeus, Nabucodonosor levou como reféns, um grande número de “príncipes”, título dado aos filhos das famílias mais nobres do reino. Nesta leva de exilados estavam, Daniel, Hananias, Misael e Azarias. Foi também nesta invasão que o Templo de Jerusalém foi saqueado, e seus tesouros levados para adornar templos pagãos da Babilônia.

O rei Jeoaquim, homem de coração endurecido para a voz de Deus e seus profetas, decidiu parar de pagar tributos, certo que a Babilônia estava ocupada demais para se preocupar com ele. Esta arriscada estratégia deu certo até o ano de 598 a.C, quando Nabucodonosor marchou contra Jerusalém mais uma vez. Rapidamente a cidade foi tomada pelos babilônicos, que ali permaneceram por mais de um ano. Neste período o rei Jeoaquim faleceu. Seu filho Jeconias reinou em seu lugar por apenas três meses, até se render as tropas estrangeiras. Ao retornar vitorioso para sua terra, Nabucodonosor levou consigo um grande número de prisioneiros, incluindo o rei e sua família, toda a nobreza judaica, os oficiais militares e os melhores artesões. Nabucodonosor elegeu Zedequias, como novo rei de Judá, que, vislumbrado por uma aliança militar feita com o Egito, comandou um novo levante contra o opressor.

Novamente Judá foi sitiada, num cerco que durou dezoito meses e levou as pessoas de dentro das cidades a cometerem a antropofagia, tamanha era a fome. Quando os babilônicos finalmente romperam os muros de Jerusalém, encontraram um povo desamparado e indefeso, e o que se viu, foi um massacre sem precedentes. A família de Zedequias foi brutalmente assassina, o rei teve seus olhos vazados e foi levado cativo para o exílio. Desta vez, Nabucodonosor promoveu uma deportação massiva, deixando em solo pátrio apenas os cidadãos considerados “imprestáveis”. Ele nomeou Gedalias como governante desta gente, mas, dois meses depois, esse líder foi assassinado por rebeldes revoltosos. O povo assustado e temendo represálias, fugiu para o Egito, deixando Jerusalém sem habitantes e em ruínas. Os prisioneiros levados cativos para a Babilônia, só ganhariam o direito de regressar para a casa setenta anos depois, quando o império Medo- Persa já havia conquistado os caldeus. Nessa época, ao ler um texto do profeta Isaías, o rei Ciro encontrou seu nome em uma profecia escrita cem anos, dizendo que seria "ele" o responsável pelo retorno dos judeus a sua pátria (Isaías 44:28, 45:1). Comovido, Ciro emitiu um decreto, concedendo aos cativos o direito de voltar para casa.

O período em que os judeus estiveram no exílio, nos deixou muitas histórias inspiradoras. Verdadeiras lições de fé, lealdade, coragem e devoção ao único e verdadeiro Deus. Entre os primeiros deportados, Nabucodonosor exigiu que alguns jovens fossem separados para servir no palácio. Eles não poderiam apresentar defeitos físicos, deveriam possuir conhecimento em ciência e ter boa desenvoltura social.  Entre os selecionados, quatro moços teriam imenso destaque nas páginas do livro de Daniel. Um deles, é o próprio Daniel, e os outros três são Hananias, Misael e Azarias. Para muitos, estes nomes podem até soar desconhecidos, pois assim que chegaram à Babilônia, esses moços foram conduzidos ao palácio de Nabucodonosor a fim de iniciar um treinamento de três anos, que os versaria na cultura babilônica, tornando os aptos a exercer cargos de relevância dentro do próprio governo. Uma das primeiras medidas tomadas por Aspenaz, o responsável pela preparação dos jovens hebreus, foi mudar os seus nomes, dando a eles nomenclaturas caldeias.

Daniel, cujo nome significava “Deus é meu Juiz” passou a ser chamado de Beltessazar, que significava “Tesouro de Bel”.

Hananias, cujo nome significava “Deus foi gracioso comigo” passou a ser conhecido como Sadraque, que significa “Inspiração do Sol”.

Misael, cujo nome significava “Quem é como Deus?”, recebeu o nome de Mesaque, que significava “Aquele que pertence à deusa Sheshach”.

Por sua vez, Azarias, cujo nome significava “Deus é quem me ajuda”, passou a ser chamado de Abede-Nego, que significava, “Servo de Nego””.

Aqueles moços, cuja idade variava de catorze a dezesseis anos, estavam muito longe de casa e o seu vínculo com a religiosidade judaica progressivamente era desfeito. Seus nomes que exaltavam o Deus de Israel, foram substituídos por nomenclaturas pagãs que glorificavam a deuses estrangeiros. Nos anos vindouros, eles teriam contato direto com a cultura babilônica, repleta de ritos e misticismo, a começar pelos pomposos jantares bancados pelo rei. Assim como seus compatriotas fizeram, eles poderiam se adaptar à nova condição, e viver uma vida de regalias dentro dos preceitos pagãos. Porém, os quatro jovens optaram por preservar intacta a essência, conservar sua origem e se manter fiel ao único e verdadeiro Deus.

Nabucodonosor ordenou que seus “convidados” fossem alimentados com a mesma comida servida para a família real. Ótimos vinhos, elaboradas massas, vegetação orgânica e carnes selecionadas. O problema é que na cozinha do palácio, os sacerdotes pagãos eram tão influentes quanto os chef´s.  Toda refeição, antes de ir para mesa, era oferecida e consagrada ao deus Bel, ou qualquer outra deidade babilônica. Pratos belos, saborosos e contaminados pelo pecado. Daniel e seus companheiros tomaram uma decisão arriscada, e assentaram em seus corações uma forte resolução. Não se contaminariam com as iguarias do rei. Com muita sabedoria, convenceram Aspenaz a lhes fornecer uma dieta a base de legumes e água. Ao final do período de treinamento, foram eles que apresentaram os melhores resultados físicos e intelectuais. Anos depois, quando os hebreus já estavam adaptados ao novo país e exercendo posição de destaque na política local, Sadraque, Mesaque e Abde-Nego enfrentaram uma verdadeira prova de fogo.

O rei projetou e construiu um verdadeiro monumento ao ego. A megalomaníaca estátua idealizada por Nabucodonosor era uma impressionante peça de ouro com absurdos 29, 4 metros de altura e aproximadamente 3 metros de largura, erigida na planície de Dura, província da Babilônia, O aspecto e a forma da escultura não foram descritos no texto bíblico, mas supõe-se que pode ter sido uma homenagem a Nabopolassar (pai de Nabucodonosor), um ídolo de Bel (o deus oficial da Babilônia), ou ainda, como acreditam a maioria dos estudiosos, uma representação do próprio monarca. No ápice de seu orgulho e altivez, o rei convocou para a inauguração de sua obra prima, toda a população da Babilônia, incluindo os sátrapas, juízes, políticos, tesoureiros e régulos de todas as províncias. Durante a cerimônia, a grande orquestra executaria uma música especialmente composta para o evento, e ao final da mesma, quando as buzinas tocassem, todos, sem exceção, deveriam se ajoelhar perante a estátua. Quem desobedecesse tal ordem, seria lançado imediatamente em uma fornalha ardente.

Contrariando as expectativas, enquanto todos se curvaram, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego se mantiveram irredutíveis... Em pé. Firmes como rocha. O espanto foi geral. Alguns se revoltaram com a irreverencia dos moços. Outros se corroeram de inveja da coragem demostrada pelos três.  Imediatamente, os três jovens foram denunciados: Há uns homens judeus, que tu constituíste sobre os negócios da província de Babilônia: Sadraque, Mesaque e Abede-Nego; esses homens, ó rei, não fizeram caso de ti.

O rei ficou furioso... Consumido pelo orgulho próprio, Nabucodonosor se recusava em aceitar uma negativa ao seu decreto, e ordenou que o ritual fosse repetido. Na interpretação vaidosa do rei, certamente os retardatários haviam perdido o “tempo” correto para prostar. Tudo não tinha passado de um grande mal-entendido. Ritual repetido. Música tema executada. Silêncio. Joelhos dobrados. Quando todos se curvaram pela segunda vez, os três jovens hebreus continuaram em pé, mais firmes do que nunca. Levados a presença do rei, a coragem de suas ações também reverberou nas palavras proferidas: "Ó Nabucodonosor, não precisamos defender-nos diante de ti. Se formos atirados na fornalha em chamas, o Deus a quem prestamos culto pode livrar-nos, e ele nos livrará das suas mãos, ó rei. Mas, se ele não nos livrar, saiba, ó rei, que não prestaremos culto aos seus deuses nem adoraremos a imagem de ouro que mandaste erguer".

A mais corriqueira curiosidade sobre o episódio da fornalha é onde estava Daniel quando seus amigos mais precisaram dele. A resposta para esta pergunta é mais simples do que parece, já que Daniel havia se tornado um estadista influente e respeitável. Com a Babilônia vassalando dezenas de nações ao redor do mundo, é perfeitamente plausível que Daniel estivesse em uma viagem diplomática. Porém, quando nos atamos apenas neste detalhe da história, perdemos o foco de uma valiosa lição, e nos esquecemos que Deus tem projetos "personalizados" para seus filhos. Naquele momento, a fornalha não era um teste para Daniel, e sim para seus amigos. Para Daniel, estava reservada uma cova cheia de leões. Deus tem batalhas "sob medida" para cada um de seus guerreiros. Ele conhece o limite de nossas forças e a capacidade individual de suportar provações. Por vezes, somos poupados da fornalha, apenas para cair na cova dos leões. Outros, são poupados da cova enquanto estão na fornalha. Fato é, que todos seremos provados. Mas, seremos aprovados?

As opções que se apresentavam a Sadraque, Mesaque e Abede-Nego eram escassas. Negar o seu Deus ou morrer. Sem titubear, eles tomaram uma decisão acertadíssima, colocando suas vidas nas mãos de Deus. Viver ou morrer não era uma questão relevante. Vida ou morte não dependia do decreto do rei. Deus é quem lhes daria a destinação desejada. E qual fosse, seria por eles aceita de bom grado: - Rei Nabucodonosor... Você pode me acorrentar. Você pode me torturar. Pode até destruir o meu corpo. Mas você nunca vai aprisionar a minha mente. A minha alma. O meu coração. Você não pode matar minha fé! Neste ponto, Nabuconosor representa com perfeição o inimigo de nossas almas, que constantemente busca nos atacar com fúria e vigor, visando nada menos que a total destruição. Neste intento, usa os mais elaborados estratagemas. Por vezes, assusta. Mas, não deve impor medo.

Sabe-se hoje, que em situações bem específicas, o corpo humano pode suportar um calor de até 120°, desde que seja uma exposição muito rápida. Esta temperatura é facilmente conseguida em qualquer forno doméstico. A fornalha de Nabucodonosor produzia temperaturas muito mais elevadas. Mesmo assim, o rei ordenou que fosse setuplicada a intensidade das chamas. Os três jovens hebreus não ofereceram qualquer resistência à punição decretada. Impassível a esta questão,  o rei ordenou que eles fossem amarrados, e que seus soldados mais fortes conduzissem os réus. Quando foram lançados na fornalha, com pés e mãos atados, a intensidade do calor foi capaz de matar os guardas que se aproximaram das chamas. Mesmo assim, nada pode fazer contra os hebreus, exceto queimar as cordas que os prendiam. Quando Nabucodonosor olhou para sua fornalha, percebeu que os jovens caminhavam tranquilamente lá dentro, e não estavam sozinhos, pois um quarto homem, com aspectos divinos lhes fazia companhia.

- Disse então Nabucodonosor: "Louvado seja o Deus de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, que enviou o seu anjo e livrou os seus servos! Eles confiaram nele, desafiaram a ordem do rei, preferindo abrir mão de suas vidas a que prestar culto e adorar a outro deus, que não fosse o seu próprio Deus.Por isso eu decreto que todo homem de qualquer povo, nação e língua que disser alguma coisa contra o Deus de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego seja despedaçado e sua casa seja transformada em montes de entulho, pois nenhum outro deus é capaz de livrar ninguém dessa maneira" (Daniel 3:28)

Seria muito mais confortável, se o Senhor nos livrasse de todas as fornalhas destinadas à nossa provação. Infelizmente (para nós), nem sempre este é o plano de Deus.  A chama purifica o ouro. O fogo refina a prata. O calor fortalece o vaso de barro. A fornalha forja nossa fé. Por vezes, ela é a portaria do salão onde celebraremos o triunfo. Passagem é obrigatória.  A boa notícia, é que Deus até pode não nos livrar da fornalha, mas certamente, nos livrará nela.

sábado, 27 de maio de 2017

A última trombeta

Se queres prever o futuro, estuda o passado.
(Confúcio)


Quando ainda era menino, ouvi boatos sobre o pastor que resolveu pregar uma peça em sua igreja. Num domingo à noite, quando a congregação estava repleta, ele abriu sua Bíblia em Tessalonicenses 4, e começou a ministrar sobre a volta de Jesus, mediante o som da “última trombeta”. Previamente, o pastor brincalhão, conseguiu emprestar com a fanfarra da cidade, trompetes e trombetas. Também combinou com alguns obreiros, que neste exato ponto da mensagem, todos deveriam tocar os instrumentos, causando um grande impacto emocional nos ouvintes.

Não é preciso dizer o tamanho do furdunço que se seguiu. Crentes desesperados se amontoavam nos corredores gritando por misericórdia. Nove em cada dez irmãos, ao ouvir o som da “trombeta”, imediatamente concluíram que tinham sido deixados para traz. O desespero foi geral. 

A grande verdade, é que a maioria dos cristãos daquela igreja, de fato, não estavam preparados para a “última trombeta”. E qualquer coincidência com a ficção, é mera realidade. Ou seria o contrário?

Mas, o que é de fato está tal “última trombeta”, que nos causa curiosidade e apreensão na mesma medida?

Antes de buscarmos uma resposta para está indagação, vamos primeiro esclarecer alguns pontos fundamentais. A Bíblia é simultaneamente um livro profético e um preciso registro histórico. Deus é atemporal, e sua Palavra abrange passado, presente e futuro com a mesma intensidade. Nós, estamos limitados a um tempo linear, onde os eventos proféticos vão acontecendo progressivamente. Pouco a pouco, todos se transformam em história.

Isaías predisse que os judeus seriam levados cativos para a Babilônia. Também deu detalhes sobre o nascimento do Messias. Em seu tempo, tudo não passava de predições futuras. Não havia contexto histórico que abalizasse os acontecimentos. Cem anos depois, o exílio de fato aconteceu. O nascimento de Jesus demorou um pouco mais. Sete séculos. Profecias quanto foram ditas. Registros históricos para nossa geração.

O profeta Daniel, previu a decadência da “ascendente” Babilônia, décadas antes da derrocada dos caldeus. Através de visões simbólicas e inquietantes, também vislumbrou o clico de reinos que dominariam o mundo nos séculos vindouros. Mas, para ele, tudo era muito confuso. Símbolos e metáforas indecifráveis. Leão alado, leopardo de quatro cabeças, ursos mancos, besta aquática cheia de chifres e bodes voadores. Que sentido havia nisto? As profecias de Daniel aparentemente eram caóticas. O profeta orou por longos dias, pedindo aos céus uma explicação. E o próprio anjo Gabriel foi incumbido de lhe dar aulas particulares. Mesmo assim, o sábio Daniel continuou com tantas dúvidas quanto tinha antes. É difícil entender o futuro antes de vivenciá-lo. (Daniel 12:8-13).

Hoje, basta uma simples consulta num bom livro de história antiga, para entender com clareza as profecias de Daniel. O futuro do profeta já é o nosso passado. Tudo faz sentido. Por outro lado, parte das visões de Daniel estão intrinsecamente ligadas aos eventos descritos em Apocalipse. Ainda não aconteceram. São o “nosso” futuro. E, portanto, estas profecias continuam nebulosas. Tentar entender com precisão o amanhã, é como querer detalhar um filme que ninguém assistiu ainda. Supomos mais do que explicamos. 

Mesmo assim, é preciso tentar.

Dito tudo isto, fica mais fácil a compreensão de que existem na Bíblia uma séria de “trombetas” históricas, e outras que ainda são “proféticas”. E assim, voltamos ao ponto de partida deste texto. O toque da última trombeta. O prenúncio das Bodas do Cordeiro. A consumação de nossa maior esperança.

Que trombeta é esta? 

Ela vem antes dos selos do Apocalipse? 

Ouviremos as seis trombetas anteriores?

Vamos por partes...

Em primeiro lugar é preciso entender que existe distinção entre a última trombeta citada por Paulo em I Coríntios 15:52 e I Tessalonicenses 4:16, e a sétima trombeta citada por João em Apocalipse 11:15. E qual a diferença? Simples. Uma encerra o tempo da Graça e a outra marca o início do apogeu do juízo divino sobre os homens ímpios.

Entenda.

Antes de ascender aos céus, após a sua ressurreição, Cristo institui a Igreja, outorgando a ela seu legado, a fim de que continuasse a sua obra na Terra. Porém, este “trabalho” tem que ser realizado em um espaço de tempo finito chamado “Dispensação da Graça”. O ponto final que marca a conclusão deste ciclo é exatamente o Arrebatamento da Igreja, conforme Paulo muito bem explicou:

- Porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois, nós os que ficarmos vivos, seremos transformados, para encontrarmos com ele nos ares (I Tessalonicenses 4:16-17).

Eis aqui vos digo um mistério: Na verdade, nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados; num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados (I Coríntios 15:51-52).

Mas, se Paulo menciona uma “última trombeta”, precisamos saber quando foi tocada a primeira delas. E é exatamente neste ponto, que nos deparamos com o que podemos chamar de “trombetas históricas”, pois cada uma delas já foi ouvida pelos homens. E nossa busca pelo primeiro sonar de uma trombeta divina aqui na Terra nos leva ao Velho Testamento. Mais precisamente, no livro de Êxodo.

Antes de prosseguir, é preciso entender que “buzinas” e “trombetas” são termos biblicamente similares. Os dois instrumentos eram usados para a anunciação de um fato importante, como por exemplo, uma sentença de juízo. Também eram tocadas quando havia a necessidade de convocar a nação para guerra. O som de uma trombeta (ou de uma buzina), evocava urgência e ajuntamento.

Após a saída do Egito, Deus ordenou a Moisés que santificasse o povo, afim de que eles estivessem prontos para sua chegada. Assim, durante dois dias, Israel se preparou para este encontro, retirando do arraial toda imundícia, purificando seus corpos e corações. Na manhã do terceiro dia, sob uma nuvem que podia ser vista por todos os israelitas, Deus desceu no Sinai, e ali anunciou a Moisés os dez mandamentos.

- E aconteceu que, ao terceiro dia, ao amanhecer, houve trovões e relâmpagos sobre o monte, e uma espessa nuvem, e um sonido de buzina (trombeta) mui forte, de maneira que estremeceu todo o povo que estava no arraial. E Moisés levou o povo fora do arraial ao encontro de Deus; e puseram-se ao pé do monte. E todo o monte Sinai fumegava, porque o Senhor descera sobre ele em fogo; e a sua fumaça subiu como fumaça de uma fornalha, e todo o monte tremia grandemente. E o sonido da buzina (trombeta) ia crescendo cada vez mais; Moisés falava, e Deus lhe respondia em voz alta.  (Êxodo 19:16-19)

No Sinai, Deus desceu sobre uma nuvem, ante o som da “primeira trombeta”. No arrebatamento, Jesus descerá sobre uma nuvem, ante o som da “última trombeta”. 

A revelação do decálogo registrado em Êxodo 20:3-17, foi a primeira trombeta de anunciação. Inúmeras trombetas estão tocando ao longo da história anunciando Deus aos homens.

- A Consciência
-  A Lei
- Os Profetas
- As Escrituras
- Os Sinais Apostólicos
- O Gemido da Natureza
- A Igreja

Todas estas, trombetas reverberam ao mundo os desígnios do Senhor. Convocação para o arrependimento, a justiça e a verdade. Trombetas reais, tangíveis, escutáveis. Algumas históricas, e outras ainda fazendo a história. Se existe um ouvido aberto para ouvir, certamente existirá uma trombeta a ecoar. 

Mas, ainda falta uma. A última. 
Qual seria?

É exatamente o Arrebatamento da Igreja que soará como a última convocação de Deus aos homens. A trombeta derradeira, que anunciará o fim do ciclo de aceitação, onde a graça foi entregue a humanidade. Um ponto final na decadência humana. O início do juízo divino.

Com a Igreja no céu, inicia-se na terra um período chamado de Grande Tribulação. Neste tempo, Deus executará seus juízos sobre os ímpios e o reino do anticristo. É neste período que as últimas profecias referentes a Israel irão se cumprir. Os simbolismos existentes no Apocalipse se tornaram claros como um cristal polido. As sombras do futuro se dissiparão quando o amanhã se tornar hoje.

O julgamento de Deus, que expurgará o mal de sobre a Terra para todo o sempre, se dará através de “sete selos”, “sete trombetas” e “sete taças”, conforme foi detalhado por João em Apocalipse 6 ao 12. Estas novas “sete trombetas” , nada tem a ver com a Igreja, que neste período já se encontra na Glória. São trombetas proféticas, que se transformarão em “trombetas históricas” aos que “ficarem” para trás no Arrebatamento da Igreja.

Estas trombetas são reveladas após a abertura do sétimo selo e anunciam um período de grande aflição sobre o reino do Anticristo, onde uma série de eventos catastróficos, tais como chuva de granizo incandescente, maremotos, contaminação das águas, anomalias no sistema solar e ataques de seres demoníacos, provocarão caos e desespero entre os homens.


A sétima e última trombeta deste ciclo, marca o início do apogeu do juízo divino, anunciando o derramamento das taças cheias da ira de Deus sobre os homens. Neste mesmo período de tempo, a Igreja já estará nos céus, desfrutando das Bodas do Cordeiro. Mas, esta é uma outra história, que certamente será contada e recontada num futuro muito próximo, que pode inclusive, ser hoje.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

A maldição da figueira

A parte mais linda do ser humano não pode ser vista a olho nu, e nem a olho humano.
(Ewertoo Vieira)


Marcos 11 registra uma viagem do tipo “bate-volta” realizada por Jesus entre as cidades de Jerusalém e Betânia. Cristo subiu até a capital, entrou na cidade montando em um jumentinho, e foi aclamado “REI” pelos peregrinos que o acompanhavam ao longo do caminho. Visitou o templo, e caminhou silenciosamente pelas ruas de pedra. Depois, voltou para a pequena Betânia acompanhado por seus discípulos.

Naquela noite, Ele jantaria na casa de seu amigo Lázaro, onde desfrutaria de deliciosos quitutes preparados por Marta, e ainda receberia um afago espiritual, quando Maria ungisse seus pés com perfume.

Assim que o sol despontou no horizonte, Jesus mais uma vez colocou seus pés na estrada. Aquele seria um dia cheio de emoções, e Ele desejava estar em Jerusalém antes do almoço. A distância entre as duas cidades era de poucos quilômetros, quatro ou cinco, no máximo, e assim, a viagem poderia ser considerada curta. Logo, os discípulos não programaram paradinhas para “lanchinhos”, e nem se preocuparam em abastecer suas mochilas com comida. Os mais precavidos levavam apenas seus odres com água.

Porém, no meio do caminho, Jesus sentiu muita fome. Ao longe, avistou a silhueta de uma frondosa figueira, que se erguia garbosa e elegantemente a beira da estrada. Ainda não havia chegado a estação propícia para a colheita de figos, mas, certamente, aquela árvore exuberante não lhes desapontaria. 

Ela não estaria ali, a vista de todos, ostentando uma copa farta e deslumbrante, se nada tivesse a oferecer.

Os treze homens dedicaram os próximos minutos de suas vidas a vasculhar cada milímetro da profusa folhagem. Galho a galho. Folha a folha. E não encontraram nenhum fruto. Jesus se indignou com aquela situação. Árvore frutífera sem fruto.  Qual a razão de sua existência? Porque estaria ela a beira do caminho iludindo aos homens com sua beleza vazia?

Para o espanto geral de seus discípulos, pela primeira vez sem seu ministério, Jesus abriu sua boca, e lançou uma palavra de maldição contra aquela figueira:

- Ninguém mais coma de seu fruto (Marcos 11:14).

Aquele, de fato, era um dia atípico para o Mestre.  Seu comportamento estava diferente. Assim que chegou a Jerusalém, subiu ao templo com um chicote nas mãos, e expulsou do recinto os cambistas e os “vendedores” de ofertas. Pessoas mal-intencionadas, que obtinham lucro barganhando a fé e a devoção do próximo. A cada estalo que reverberava nas costas dos mercadores, Jesus também usada sua língua como uma espada de justiça, cujo corte permanece sempre afiado:

- A casa de meu Pai não deveria ser chamada casa de oração para todos os povos? Mas vocês fizeram dela um covil de ladrões (Marcos 11:17).

É claro que os líderes religiosos se indignaram com tamanha ousadia. Imediatamente eles se reuniram em salas secretas, afim de tramarem planos de morte contra Jesus. A multidão estava perplexa com a autoridade do Nazareno, e isto não era benéfico para a religião judaica.

Enquanto os sacerdotes, escribas e fariseus confabulavam a portas fechadas, Jesus se retirou da cidade com seus seguidores. Pernoitaram fora dos muros de Jerusalém. Pela manhã, enquanto caminhavam por entre as árvores, a procura de algum alimento para o café matinal, Pedro foi impactado por uma visão aterradora.

Ali, na frente dele, uma árvore ressequida contrastava com a paisagem verde. Apesar de viva, ela parecia morta. Seus galhos estavam retorcidos, seu tronco envolto em cascas cinzas e crepitantes. Uma espessa camada de folhas engelhadas, forravam o chão a sua volta. Um tipo de árvore muito comum... Em pesadelos densos e tenebrosos.

Pedro chamou a atenção dos demais para a pitoresca paisagem. Os discípulos se entreolharam assustados. Eles reconheciam o lugar. Tinham passado por ali inúmeras vezes. Mesmo plenos de certeza, se negavam a acreditar no que viam. Então, se dirigiram a Jesus:

- Mestre! Vê! A figueira que amaldiçoaste secou! (Marcos 11:21)

Os discípulos estavam com medo. Eles testemunharam curas maravilhosas Estavam lá quando mortos voltaram a vida. Viram com os próprios olhos Jesus caminhando sobre as águas e aclamando tempestades. Mas, aquilo era novo. A presença de Cristo fazia tudo florescer, nunca ressequir. O que estava acontecendo?

A espanto dos discípulos é compreensível. Numa análise pragmática, Jesus estava sendo excessivamente severo. Não se pode esperar que uma árvore dê seu fruto fora da estação. Não se colhe morangos no sertão do Nordeste. As macieiras não estão em flor no mês de setembro. Existe um ciclo natural a ser respeitado. 

A figueira desta história não tinha culpa pela ausência de frutos. Ou teria?

Acredito que o grande erro daquela figueira não era o “quando”, e sim, o “onde”. Ela estava à beira da estrada, numa posição de destaque, aparentando produtividade, quando na verdade, nada tinha a oferecer. A figueira estava para Jesus, assim como os religiosos estavam para Deus. Casca sem conteúdo. Aparência sem essência. Copas sem frutos. Sepulcros caiados. Enganavam os homens, mas, não se esquivavam dos olhos flamejantes do Senhor.

Os líderes religiosos de Israel se portavam como aquela árvore. Gostavam de estar à vista do povo. Oravam alto, arrotando santidade, mesmo depois de se banquetearem na mesa dos escarnecedores. Os sacerdotes caminhavam pela congregação, ostentando suas mitras resplandecentes, enquanto seus corações estavam ocos pela ausência de arrependimento e devoção genuína. Os fariseus ornamentavam seus braços com tefelins, propagando um amor profundo a Lei de Moisés, porém, estavam longe de honrar a Palavra de Deus. Árvores frondosas a beira da estrada, conclamando a admiração humana. Se esqueceram, que Deus procura frutos e não folhas.

Aqueles homens desrespeitavam a sabedoria de Deus. Se apresentavam diante do altar trajando vestes religiosas, enquanto cultivavam a religiosidade em seus corações. Ofereciam a Deus ofertas compradas em barracas de camelos. Vitupério, escárnio e engazopação. O Senhor não se deixar enganar. Árvores sem frutos que se apresentem a Deus lhe ofertando apenas folhagem, fatalmente, irão secar.

Os discípulos tiveram dúvidas quanto a ação de Jesus, porém, não o indagaram. Certamente, Cristo tinha propósito em todas as suas ações, mesmo que não as compreendessem. Quando testemunharam o julgamento divino sobre a figueira, eles temeram, mas não questionaram. Os religiosos, ao assistirem Jesus sentenciando os mercenários do Templo, o questionaram sem temer. Aí está a grande diferença. Quanto entendemos “quem” Jesus “é”, temos compreensão de como devemos nos apresentar a Ele.

Jesus acalmou os seus discípulos. Os ensinou a terem fé em Deus, e autorizou cada um deles a partilhar de sua própria autoridade.

- Eu lhes asseguro que se alguém disser a este monte: - Levante-se e atire-se no mar’ e não duvidar em seu coração, mas crer que acontecerá o que diz, assim lhe será feito. Portanto, eu lhes digo: tudo o que vocês pedirem em oração, creiam que já o receberam, e assim lhes sucederá. (Marcos 11:23-24)  

E quanto aos religiosos? 

Bem, Jesus os deixou numa situação complicada. Ao ser questionado de onde provinha sua autoridade para interferir no regimento interno do templo, Cristo apenas lhes disse que a fonte era a mesma da qual provinha a autoridade que João Batista usava para batizar seus seguidores.

Sacerdotes e fariseus não compreendiam muito bem o ministério de João. Se dissessem que era respaldado pelo céu, seriam obrigados a acreditar em suas palavras. Porém, se humanizassem suas ações, entrariam em conflito com todos os judeus que o consideravam profeta. Para evitar desgastes, os religiosos se omitiam.

Supressão. Negligência Neutralidade. Ausência de frutos. Figueiras frondosas e religiosos omissos. Termos que cabem numa mesma sentença. Um saco de farinha que produz bolos sem sabor ou firmeza. Sem entender João, os judaizantes não tinham a menor ideia de quem era Jesus. Por isso, espiritualmente estavam ressequidos. Como a figueira.

E hoje? 

Como temos nos apresentado a Jesus? 

Quando sentamos no banco da igreja ou tomamos o microfone em nossas mãos, o que temos a oferecer? Quando Jesus nos encontra na rua, a caminho do trabalho, do mercado ou da escola, temos algum fruto escondido na copa da árvore, caso ele esteja faminto?

Este texto não está sendo escrito para condenar ninguém. Sua intenção é conscientizar a todos nós sobre o dia em que Jesus vai parar sob nossa copa e procurar frutos. Sem agendamentos. Sem estações pré-definidas.

Em Lucas 13:6-9, Jesus também estava lidando com pessoas que se achavam “superiores” aos demais. Gente arrogante que se gabava de seus frondosos galhos infrutíferos. Então, Jesus contou-lhes a parábola de um plantador de uvas, que viu uma figueira frondejante crescer em meio as suas parreiras. Ano após ano, ele ia até a árvore, desejoso para comer figos. Mas, nada encontrava.

Um dia, ele chamou seu viticultor e pediu-lhe que cortasse a árvore, pois além de não produzir um único fruto nos três últimos anos, ainda estava "inutilmente" ocupando espaço em sua terra. O funcionário era mais paciente que o patrão. Ele pediu a autorização para adubá-la mais uma vez, e se não surtisse efeito, se encarregaria pessoalmente de arrancá-la do solo na próxima estação.

Pela lei descrita em Levíticos 19:23-25, ninguém podia tirar os frutos de uma árvore nos três primeiros anos. Os frutos do quarto ano deveriam ser consagrados ao Senhor, e apenas a partir da quinta colheita, os frutos podiam ser usados para a alimentação. Assim, o fazendeiro desta parábola estava sendo paciente a muitas estações. Porém, sua “longanimidade” estava chegando ao fim.

A grande lição que tiramos de tudo isto, é que o Senhor não age por impulso. Ele não sai por aí amaldiçoando figueiras à revelia, e nem tem por hábito entrar em igrejas empunhando um chichote nas mãos. Ele respeita nossos ciclos, entende nossas necessidades, e é paciente com as crises emocionais que vivenciamos. Sua longanimidade, porém, não nos isenta de uma cobrança incisiva, quando o tempo da colheita chegar. E ostentar a copa exuberante, é um sinal luminoso para o grande agricultor.

Por hora, não se apresente a Deus se não tiver frutos a oferecer. E aproveite este tempo para começar a produzir muitos frutos. E porque? É que inevitavelmente chegará o dia que o lavrador virá até você. Seja para a colheita, seja para o desmatamento.


terça-feira, 23 de maio de 2017

A Terra dos Esquecidos

As oportunidades não abundam, e raramente as encontramos uma segunda vez.
(Luis Buñuel)


Após derrotar o gigante Golias, o jovem Davi foi conduzido nos braços do povo até o palácio real, causando um perigoso sentimento de inveja no rei. Saul recebeu Davi com as honras prometidas, mas, imediatamente desenvolveu um imenso desprezo por aquele que seria seu genro. A aversão só aumentava, na mesma medida que Davi demostrava seu valor e ganhava apresso popular.

Se o decadente Saul temia que o jovem Davi pudesse “roubar” o trono, seu filho mais velho (e sucessor imediato), pensava exatamente o contrário. Para o príncipe Jonatas, o verdadeiro herdeiro do trono de Israel não seria identificado pelo sangue, e sim, pela unção.

Desde a primeira vez que viu Davi, Jonatas se simpatizou com a figura jovial do belemita, e enquanto seu pai fazia pouco caso do pastorzinho recentemente promovido a herói nacional, Jonatas vislumbrou o futuro da nação. Num ato profético, retirou seu manto real, e com ele, vestiu a Davi. Jonatas também entregou para Davi suas vestes, a espada, o arco e o cinto. Uma transferência simbólica do direito de ser o herdeiro legítimo do trono.

Ali, nasceu uma amizade profunda e verdadeira, capaz de entrelaçar seus destinos. Ente eles, foi selada uma aliança intensa, ao ponto da Bíblia nos dizer que "um amou o outro como se fosse sua própria alma" (I Samuel 18:1-4). Amigos, conselheiros e confidentes. Era em Jonatas que o futuro rei encontrava abrigo e segurança. Um ouvido atento que absorvia os seus desabafos, e um conselho imparcial sempre que necessário.

Tamanha era a compreensão de um com o outro, que Davi chegou a afirmar que a amizade de Jonatas lhe era melhor que o amor das mulheres. 

Com a popularidade de Davi cada vez mais alta, o rei Saul se viu corroído pela inveja e pelo medo de ser sobrepujado por seu genro. Então, deixou-se dominar pela loucura, sendo constantemente atormentado por um espírito mau. Neste ponto, Jonatas se tornou um verdadeiro “anjo da guarda” para Davi, já que toda vez que o rei Saul elaborava um plano, intentando eliminar seu desafeto, Jonatas alertava o amigo, e o perigo era neutralizado (I Samuel 19:1-2).

Com furor crescente, Saul intensificou seus ataques contra Davi, inclusive, realizando uma tentativa mal sucedida de assassinato. Como não logrou êxito em seu intento, o rei cuidou de desconstruir a imagem de Davi, o tornando num inimigo público, o que evidenciou ainda mais a amizade entre Davi e Jonatas, já que sendo aliado de um fugitivo, o príncipe colocava em risco a própria vida.

Mesmo assim, Jonatas se manteve leal a Davi. Quando a guerra contra os filisteus irrompeu novamente, os encontros de Davi e Jonatas ficaram cada vez mais escassos, e com a iminência de uma tragédia anunciada, ambos selaram uma aliança, que determinaria o futuro de um dos mais icônicos personagens do Velho Testamento. Mefibosete.

E disse Jônatas a Davi: O Senhor Deus de Israel seja testemunha! Sondando eu a meu pai amanhã a estas horas, ou depois de amanhã, e eis que se houver coisa favorável para Davi, e eu então não enviar a ti, e não to fizer saber; O Senhor faça assim com Jônatas outro tanto; que se aprouver a meu pai fazer-te mal, também to farei saber, e te deixarei partir, e irás em paz; e o Senhor seja contigo, assim como foi com meu pai. E, se eu então ainda viver, porventura não usarás comigo da beneficência do Senhor, para que não morra? Nem tampouco cortarás da minha casa a tua beneficência eternamente; nem ainda quando o Senhor desarraigar da terra a cada um dos inimigos de Davi. Assim fez Jônatas aliança com a casa de Davi, dizendo: O Senhor o requeira da mão dos inimigos de Davi. E Jônatas fez jurar a Davi de novo, porquanto o amava; porque o amava com todo o amor da sua alma.
(I Samuel 20:12-17)

O dia do nascimento de Mefibosete foi uma verdadeira festa nacional, onde o povo celebrou a chegada de um rei. Naquele dia, a família real pode vislumbrar um futuro glorioso de sucessões no trono de Israel. Mas, a história teria um desfecho trágico apenas cinco anos depois.

Durante a guerra de Israel contra os filisteus, o infante príncipe experimentaria a dor de um luto, sem ao menos, conseguir compreender este sentimento. Na batalha, seu pai Jonatas foi morto em combate, enquanto o avô Saul, para não ser capturado pelos inimigos, se suicidou com a própria espada. Os gritos histéricos e desesperados ecoaram pelos corredores do palácio em Jerusalém. Os nobres estavam em polvorosa, pois temiam que com a queda do rei, seu maior inimigo conhecido, ao reivindicar para si o trono, eliminasse todos os descendentes do rei anterior. 

Para evitar que Mefibosete tivesse um fim trágico, uma de suas “amas” o pegou no colo, afim de retirá-lo do palácio e o colocar num esconderijo seguro. Por uma destas tragédias que não se pode explicar, a pobre mulher acabou tropeçando, caindo com o menino ainda  no colo. Na queda, a criança sofreu graves fraturas em ambos os pés, causando-lhe uma deficiência permanente, já que seus ossos cicatrizaram incorretamente. A dupla deformação, além de causar imensa dor física, desencadeou naquele menino, profundos traumas emocionais.

Ao longo de sua vida, Mefibosete foi chamado por três nomes distintos. Ao nascer, recebeu de seu pai um nome imponente, que significava Lutador do Senhor: Meribe-Baal. Após sua tragédia particular, o príncipe anônimo assumiu a alcunha de Ishboset, cujo significado é “homem da vergonha”. Anos mais tarde, ele passaria a ser chamado de Mefibosete, que pode ser entendido como “aquele que expulsa a vergonha”.

E este é um bom resumo de sua vida. Nascido príncipe, perdeu o direito ao trono e qualquer perspectiva de reconquistá-lo. Um menino órfão e um rei deposto. Tudo no mesmo dia. A deficiência física que adquiriu em sua infância, não o permitia desenvolver habilidades bélicas. Mefibosete nunca teria a chance de liderar um exército para tentar reaver o trono perdido.

Além disso, devido a sua condição, ele sequer poderia entrar no palácio, já que a lei vigente não permitia a entrada de aleijados na casa real. Sem perspectivas, e correndo risco de morte, Mefibosete foi levado para uma cidade chamada Lô Debar, localizada em uma região árida e de solo infértil, tanto que não existia pastagens ali.

Aquele lugar era uma colônia de doentes, cegos, leprosos, miseráveis, desprezados e marginalizados. A Terra dos Esquecidos. Lô Debar era "famosa" por seu anonimato. O lugar do esquecimento. E foi exatamente isso o que aconteceu. Por quase vinte anos, Mefibosete ficou completamente esquecido ali, vivendo uma vida tão miserável, que definiu a si mesmo como um “cão morto” (II Samuel 9:8).

Por duas décadas, Mefibosete viveu de favores na casa de Maquir, numa cidade esquecida, cercado de pessoas tão desesperançadas quanto ele mesmo. É possível que já se desse por satisfeito, pelo simples fato de ter sobrevivido à sua grande tragédia familiar. Ou, quem sabe, na calada da noite, secretamente desejava ter morrido com seus familiares.

Fato é, que Mefibosete nada esperava do futuro.  Seu passado de nobreza havia sido apagado pelo presente de pobreza. O outrora “príncipe herdeiro”, agora era conhecido apenas como “o aleijado”. 

Poucas pessoas conheciam sua história. Mefibosete fazia questão de esconder a sete chaves este segredo. Seu único contato na capital era um ex servo de Saul chamado Ziba. Aproveitando-se das circunstâncias, este homem insensível e de intenções escusas, havia se apoderado indevidamente das propriedades deixadas por Jonatas. Assim, mesmo a distância, ele nutria em Mefibosete o medo de voltar para Jerusalém.  Por influência de Ziba, o neto de Saul não fazia nenhuma questão que Davi soubesse de sua existência. Ele não se sentia digno e nem merecedor de qualquer favor real. 

Mas, Davi tinha certeza do contrário.

Depois da morte de Saul, Davi reinou por sete anos em Hebrom, até ser coroado rei de toda Israel. Seu reinado foi glorioso. O reino expandiu e se fortaleceu. Mesmo assim, ele se sentia incomodado. Algo estava fora do lugar. O poderoso rei nomeava generais, premiava soldados corajosos e se cercava de príncipes valentes. Porém, havia uma cadeira vazia no palácio. Dentro do túmulo de Jonatas existe uma promissória a ser resgatada. Davi precisava pagar a dívida. Uma dívida de gratidão. A voz de Jonatas ainda ecoava em seus ouvidos:

E, se eu então ainda viver, porventura não usarás comigo da beneficência do Senhor, para que não morra? Nem tampouco cortarás da minha casa a tua beneficência eternamente; nem ainda quando o Senhor desarraigar da terra a cada um dos inimigos de Davi.

Davi convocou Ziba para uma reunião. Ele deveria saber de alguma coisa. Seu olhar malicioso escondia segredos. O rei lhe questionou se ainda existia algum descendente de Jonatas que não tinha morrido. Ziba desviou o olhar procurando resposta obscuras...

- Hummmmm! Já faz tanto tempo... Acho que não!

Mas, mentir para o rei é um crime grave. Ziba não queria arriscar sua vida. Assim como não desejava perder suas propriedades ilegais.

- Bom... Tem um moço que mora em Lo-debar.... Mas, o senhor não vai se importar muito com ele.... Não passa de um mendigo aleijado... Uma pessoa irrelevante...

Mefiboste. Para Jonatas, ele era um “LUTADOR DE DEUS”. Para Ziba, ele não passava de um “ALEIJADO SEM IMPORTÂNCIA”. Quando olhava para o espelho, nada via além de um “CÃO”. 

Mas, como Davi o enxergava?

Quando a guarda imperial bateu na porta de Maquir e perguntou por Mefibosete, não houve em seu coração nenhum lampejo de esperança. Pelo contrário. Ele foi abraçado pela certeza que aquele seria seu fim. No caminho para o palácio, Mefibosete não apreciou a paisagem, não dialogou com os guardas. Apenas orou por uma morte rápida e indolor.

Quando chegou ao palácio, o mesmo local onde havia perdido a capacidade de andar, só esperava pelo pior. Ali, a dor tinha começado. Com sorte, no mesmo lugar, ela acabaria num golpe certeiro da espada do rei.

Diante de Davi, Mefibosete se lançou ao chão. Um gesto de humilhação. Um pedido de misericórdia. Supreendentemente, ele ouviu do rei uma frase que lhe acalmou instantaneamente o coração: 

- Não tenha medo!

Ele se apresentou como “servo”. Davi o recebeu como “príncipe”. Ao invés de ódio, Mefibosete recebeu carinho. Ao invés de violência, foi tratado com admiração. Para quem esperava o fio da espada, um abraço caloroso e apertado é como a chuva caindo no deserto. Mefibosete não foi tratado como inimigo, e sim, chamado de filho.

Davi transferiu para Mefibosete todo o amor que sentia por Jonatas, e honrou no filho, a aliança que tinha feito com o pai. O lutador tinha recuperado sua nobreza. O aleijado recebeu de volta sua herança. 

Mefibosete passou duas décadas de sua vida morando numa casa que não era sua, numa terra que não era seu lugar. Agora, é convidado a morar em Jerusalém, sua cidade natal, e sem aviso prévio, recebe de volta todas as propriedades da família, saindo da miséria para ser um dos homens mais ricos de Israel. E isso ainda não era o suficiente. O rei precisava provar definitivamente o quanto Mefibosete lhe era querido. E nada melhor do que lhe fornecer uma cadeira cativa no lugar mais nobre da nação, onde apenas reis, rainhas, príncipes e princesas tinham direito a ascender. A mesa real. 


O pastor Charles Rozel Chuck Swindool, descreve com perfeição a condição de Mefibosete em sua nova casa:

O sino que anuncia o jantar ecoa no palácio do Rei. Davi se dirige a ponta da mesa e se senta. Poucos momentos depois chega Amnom – o esperto e calculista Amnom – para se assentar a esquerda de Davi. A doce e graciosa Tamar, jovem, bela e encantadora, chega e se coloca ao lado de Amnom. De repente, surge Salomão, caminhando vagarosamente, vindo de seus estudos, Salomão sempre brilhante, precoce e preocupado. Logo em seguida surge Absalão, jovem bonito, atraente, com seus cabelos esvoaçantes e negros que chegam aos ombros, e assume seu lugar. Naquela noite em especial, Joabe, o guerreiro corajoso que comanda as tropas de Davi, foi convidado para participar do jantar. Homem musculoso e bronzeado, ele se senta perto do rei. Depois, todos esperam. Eles ouvem o som de pés se arrastando, o barulho das muletas tocando o solo até que Mefibosete, mesmo desajeitado, encontra seu lugar à mesa e se senta (...) e a toalha da mesa lhe cobre os pés.

Jamais poderemos dizer que somos melhores do que Mefibosete. Nossos erros e falhas nos fizeram cair, e na queda, nossos pés espirituais se fragmentaram como cacos de vidro. Aleijados, incapacitados e envergonhados. Nosso passado de glória foi enterrado sob uma avalanche de pecados, que nos arrastaram rumo a Lô-Debar. Terra dos Esquecidos. Ali, em meio a mentiras, medos e aflições, nos mantemos distantes de Deus, ignorados pelas pessoas, esquecendo lentamente de quem somos. E do quanto somos amados por Deus.

Porém, uma coisa é certa.  Jesus é muito melhor que Davi. Ele não faz perguntas sobre nosso paradeiro, pois sabe onde estamos, já que nunca nos perdeu de vista. Ele não envia tropas para nos buscar, pois vai até Lô Debar pessoalmente. Insiste com veemência para que não tenhamos medo. Por Ele somos elevados a posição de “filhos” e não “servos”, feitos herdeiros de Deus e co-herdeiros em Cristo.  Não há por nossa parte, merecimento ou mérito que justifique tamanha generosidade. Nisto reside a beleza da Graça... Não é preciso merece-la, basta aceitá-la.