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sábado, 15 de abril de 2017

O jantar ainda não terminou

Não espere por uma crise para descobrir o que é importante em sua vida.
(Platão)


Jesus era um bom garfo. Frequentava jantares da alta sociedade e almoçava com os miseráveis e esquecidos. Seu primeiro milagre foi transformar água em vinho numa festa de casamento, na qual, era um dos convidados. Jesus jantou na casa de Zaqueu, na casa de Mateus, na casa de Simão, na casa de Lázaro e na casa de Pedro, onde, inclusive, curou a sogra de seu discípulo para que ela lhes preparasse uma bela refeição.

Entre uma garfada e outra, Jesus ensinava verdades eternas. Ele usava o “social” para promover o “espiritual”. Nenhuma casa era a mesma depois que Jesus passava por ela. A presença de Cristo transformava qualquer jantar, numa celebração celestial.

Porém, nenhum jantar é tão significativo quanto o realizado em Jerusalém. Ciente que o momento de sua morte havia chegado, Jesus convidou seus discípulos para uma última refeição. Os eventos daquela noite, jamais seriam esquecidos por quem os vivenciou. 

Na verdade, ainda hoje, nos emocionamos ao revivermos em espírito aqueles momentos de fé e devoção.

Como não tinham uma residencia na cidade, os discípulos de Jesus procuraram um lugar amplo para que pudessem celebrar a páscoa. Encontraram um simpatizante do ministério de Jesus, que ofereceu a eles o segundo piso de sua casa. O cômodo espaçoso, também conhecido como cenáculo, era destinado a eventos sociais e celebrações familiares. A grande festa judaica se daria apenas no domingo, mas, já na noite de quinta-feira, Jesus convida seus doze discípulos para um grandioso jantar. Uma páscoa antecipada.

Todos estavam assentados a mesa, quando Jesus se levantou, retirou sua capa, prendeu uma tolha na cintura, e encheu uma vasilha com água. Se aproximou de Simão Pedro, e pediu-lhe gentilmente para que ele retirasse sua sandália. O enérgico discípulo, imediatamente indagou:

- O que o Senhor pretende fazer? Lavar os meus pés? Jamais permitirei que laves os meus pés. Eu deveria lavar os teus...

A relutância de Pedro tem embasamento cultural. A Lei de Moisés era rigorosa quanto aos rituais de purificação, que incluíam lavar as mãos e os pés antes das refeições. Porém, seria indigno que um “patrão” lavasse os pés de seus “funcionários”. Nenhum mestre limpava os pés de seus alunos. A ordem dos fatores estava invertida. Pedro se sentia deslocado com a situação.

Com olhos cheios de ternura, Jesus lhe explicou que seria difícil para os discípulos entenderem os eventos daquela noite. E acrescentou: 

- Se você não me deixar lavar os seus pés, então, não terás mais parte comigo

A diante desta revelação, Pedro se rendeu a humildade de seu Mestre: 

- Senhor, se quiseres, podes lavar até minha cabeça.

Um a um, Jesus lavou os pés de seus doze discípulos, enxugando os carinhosamente com a toalha que levava junto a si. Pedro, João, Tiago... Judas. Todos tiveram seus pés lavados pelo próprio Deus encarnado. Uma lição de humildade. Uma unção profética para os “pés” da igreja.

- Vocês entenderam o que eu fiz? – Perguntou Jesus. – Eu os tornei limpos. Na minha ausência, lavem os pés uns dos outros.

Jesus voltou a vestir sua capa, e se assentou a mesa com eles. João reclinou a cabeça sobre o peito de seu Senhor, enquanto Cristo os ensinava a serem gentis, pacientes e generosos. 

– Vocês são homens de bons corações, mas, entre vocês, alguém vai me trair.

Os discípulos se entreolharam. Quem seria capaz de uma coisa destas. Pedro se levantou exasperado. 

– Tenho certeza que não sou eu! Sou capaz de morrer em teu lugar! 

Embora estivesse aflito, Jesus manteve a serenidade em sua voz: 

- Ah Pedro. Ainda nesta noite, antes que o galo cante pela manhã, você já terá me negado três vezes! 

E voltando-se para os demais discípulos, acrescentou: 

- Tudo o que está para acontecer, tem um propósito e uma razão. Vocês saberão quem sou!

Nas horas seguintes, Jesus serviu a seus discípulos um cardápio espiritual. Os incentivou a serem corajosos, a não terem medo e manterem em paz seus corações. Cristo lhes falou sobre o céu, e que Ele precisava voltar para o Reino do Pai, afim de construir para cada um deles, casas eternas. Prometeu jamais deixá-los desamparados, e que um dia, voltaria para buscá-los, definitivamente. Então, todos estariam eternamente lado a lado no Paraíso.

Jesus os exortou a permanecerem enraizados na Videira Verdadeira, e serem produtores de Frutos de Justiça. Se apresentou como o único Caminho, a Verdade e a Vida. Lhes ensinou a clamaram a Deus em suas dificuldades, fazendo uso do nome Jesus. Assim, a fé os levaria a receber bençãos gloriosas. E então, intimou seus discípulos:

- Se vocês me amam de verdade, nunca se esqueçam de minhas palavras. Guardem a em vossos corações.

Ao final do longo (e agradável) sermão, o jantar foi servido. Os discípulos se entreolharam novamente. Apenas isso? Nada de cordeiros, pães asmos e saladas amargas? O cardápio da noite era composto de pão e vinho. Nada mais. 

Tomando o pão em suas mãos, Jesus deu graças ao Pai e o repartiu ente eles. Quando cada discípulo já segurava seu bocado, Cristo revelou:

- Este pão simboliza o meu corpo que será repartido por vocês.

Então, Jesus tomou em suas mãos o odre de vinho, e se pôs a encher as taças. Ergueu seu cálice aos céus, e mais uma vez agradeceu. Voltou-se para seus discípulos e ensinou:

- Este vinho simboliza o meu sangue que será derramado por vocês. Através dele, será estabelecida uma Nova Aliança.

Enquanto ceavam, os olhos de Jesus estavam marejados. Sua emoção é percebida pelos mais atentos. 

– O Senhor está bem? 

O Mestre olha com carinho para aqueles homens. Todos eles passariam por uma terrível provação nas próximas horas.

- Estou muito feliz de cear com vocês esta noite. Desejava isto a muito tempo. Esta será a última vez que jantarei com vocês. Pelo menos, até que chegue o Dia do Senhor. Mas, em minha ausência, nunca deixem de partilhar do pão e dividir o vinho. Façam isto em memória de mim.

Tudo ficou ainda mais confuso quando Jesus ordenou a Judas que fizesse depressa conforme o que já tinha planejado. Iria ele buscar a sobremesa?

Enquanto Judas saia rapidamente da sala, Jesus se pôs de pé, e dando as mãos para os seus discípulos. Começou a orar:

- Pai, que eles sejam um, como eu sou um contigo. Até agora, estive com eles, e eles comigo. Agora, eles continuaram no mundo, mas, eu vou voltar para ti. Guarda-os em teu nome. Para que através deles, o mundo creia que tu me enviaste. E não peço somente por estes que me destes, mas, também por todos os que hão de vir. Aqueles que pela sua Palavra, um dia também crerão em mim. Que o amor com o qual tú me amas, também esteja em cada um deles, e eu esteja neles!

E terminando de orar, Jesus cantou um hino. Não sabemos qual música foi cantada. Desconhecemos a letra e ignoramos a melodia. Porém, basta um pouco de sensibilidade para compreender a emoção do momento. Embora os discípulos não soubessem, aquela era uma música de despedida. Com uma canção ao Pai, Jesus abria seu próprio cortejo fúnebre. As lágrimas que rolavam de seus olhos, umedeciam sua barba rustica, castigada de sol e salinidade. Então, com voz embargada, Jesus faz um apelo comovente a seus discípulos:

- Preciso que vocês orem por mim...

Em silêncio, aqueles homens caminharam até o Jardim do Getsêmani. A mesa do jantar ficou para trás. Pratos, copos e talhares ainda estavam dispostos sobre a toalha branca de linho. Metade do pão. Meias taças de vinho. Tudo ali. Não havia tempo para retirar a mesa.

No Jardim, enquanto os discípulos eram vencidos pelo sono, Jesus estava aflito, e orava angustiado. - Haveria alguma possibilidade de não beber do cálice que lhe seria servido? Não. Antes do dia amanhecer, Jesus foi preso, conduzido a um julgamento forjado e condenado por uma corte corrompida.

Na cruz, Jesus se sentia sozinho, crucificado entre dois criminosos. Os pecados de toda humanidade estavam sobre Ele. Uma horda de demônios o escarneciam. Deus, nos altos céus, virou seu rosto, não suportando mais olhar aquela terrível cena. Solidão total. Judas o negou. Pedro o traiu. Seus discípulos o abandonaram. Caífas o incriminou. Herodes o ridicularizou. Pilatos o banalizou. A multidão pediu sua morte. Crucifica!

Por seis horas, Jesus vivenciou os flagelos da cruz. Dor, vergonha, vitupério. De repente, seus olhos se deparam com um lampejo de carinho. João estava ajoelhado aos pés da cruz, ao lado de Maria. As três da tarde, Cristo expirou. Devido à proximidade do sábado, não havia tempo para velórios e rituais. Seus discípulos o sepultaram com rapidez num túmulo novo doado por José de Arimatéia. O corpo enrolado num lençol, e o rosto coberto por um lenço.

A morte de Jesus foi sem dúvidas um dos eventos mais impactantes da história. Ainda hoje, é impossível não se emocionar ao ver uma cena que represente a crucificação de Cristo, ou ouvir uma narrativa (uma canção) que nos remeta a via crucis e a paixão do Salvador. Se dois milênios depois, ainda somos profundamente afetados por este acontecimento, imagine o impacto vivenciado pelos seguidores de Jesus, que testemunharam todo este drama ao vivo e em cores.

A morte de seu mentor e líder não apenas causou grande comoção nestes homens, como abalou as estruturas do grupo. Um deles traiu o Mestre, outro se tornou um renegado, e tantos se omitiram, confusos e assustados. Apenas João se manteve leal aos pés da cruz. Com Jesus morto e sepultado, aqueles homens se trancaram num quarto escuro. Nenhuma palavra. Ninguém tinha forças para recolher os cacos do próprio coração.

A incerteza do futuro roubava a paz e inquietava o espírito.  O cenário que se descortinava diante daqueles homens era nebuloso e repleto de desesperança. O que fazer da vida quando se assiste aquele que é a própria VIDA agonizar e morrer? Os discípulos estavam silenciosos porque lhes faltavam palavras. O que teriam para falar se a voz que os instruía tinha se calado para sempre? Eles abandonaram Jesus em seu momento de maior agonia e sofrimento, e agora se sentiam sozinhos.

E Pedro, como se sentia? Naquela noite, ele havia negado Jesus pela terceira vez, quando o galo cantou anunciando os primeiros raios de sol. Neste exato momento, Jesus estava saindo do sinédrio, arrastado por soldados insensíveis. E então, seus olhares se cruzaram. 

– Eu te avisei! 

E Pedro chorou amargamente.

Na manhã de domingo, Maria, Maria Clofas e Maria Madalena foram até o sepulcro levando unguentos, especiarias e perfumes. Elas iriam ungir e perfumar o corpo de Jesus. Porém, ao chegarem diante do túmulo, encontraram dois homens com semblantes angelicais: 

- Porque procuram entre os mortos aquele que esta vivo? As mulheres se assustaram. 

Elas não sabiam bem o que fazer. Enquanto duas delas correram em busca de respostas, Maria Madalena se ajoelhou e chorou copiosamente. Ouviu passos que se aproximavam dela, e pensando ser um funcionário do cemitério, o questionou em desespero: 

- Para onde levaram o corpo de meu Senhor?

Uma voz suave que ela conhecia muito bem, a chamou pelo nome: 

- Maria! 

Um sorriso surgiu entre as lágrimas: 

- Rabone! 

Sim. Era verdade. Ele estava vivo! 

- Maria, vá e avise aos outros que ressuscitei... Diga a Pedro que ressuscitei.

Ao receberem esta notícia, Pedro e João saíram correndo em direção ao cemitério. Pedro correu na frente, mas, no meio do caminho foi ultrapassado por João. Um deles, desejava apenas abraçar seu melhor amigo. O outro ansiava por perdão. João estava leve. Pedro carregava o peso da culpa. Quando chegaram ao tumulo, não encontraram ninguém. 

Nem Jesus. Nem anjos.

Pedro trava. Ele ainda não está pronto para o encontro. Talvez as mulheres tivessem se equivocado. Talvez isto fosse bom. Talvez fosse melhor não olhar para seu Mestre outra vez. Não. Ele precisava pedir perdão. Olhar nos olhos de Jesus, amando e sendo amado. Mas, onde estará o Senhor? Roubaram o seu corpo? Porque as mulheres os nutriram com falsas esperanças?

Ele permanece parado. João, entra no sepulcro. 

Não há cheiro de morte ali. Sobre a mortalha repousava os lençóis. Sem corpo. Seus olhos foram atraídos para uma pedra que no canto do túmulo. Sobre ela, o lenço que cobria o rosto moribundo de Jesus, estava cuidadosamente dobrado. João sorriu pela primeira vez, desde o jantar na quinta feira. Ele se lembrou que na pressa, não tinham retirado a mesa. 

– Ok! Eu recebi a mensagem Jesus!

Há referências sobre um antigo costume judaico, onde os senhores se comunicavam com seus servos através de um lenço dobrado. Judeus tratavam de negócios durante o jantar. Poderia ser, que entre um prato e outro, as partes se levantassem da mesa para observar o rebanho ou analisar a propriedade. Ao ver a sala de jantar vazia, os empregados da casa se apressavam em guardar os pratos e talhares. Isso seria constrangedor para o anfitrião e deselegante com o convidado. Então, os senhores dobravam um lenço e o deixavam sobre a mesa. Um bom servo sabia exatamente o significado desta mensagem:

- Não retirem a mesa. Eu voltarei. O jantar ainda não terminou.

(Este texto tem como base bíblica os relatos registrados em Mateus 26-28, Marcos 14-16, Lucas 22-24, João 13-21 e o Salmo 22)

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