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terça-feira, 4 de abril de 2017

Jumento de ossos fortes

O homem apega-se ao transitório e negligencia o eterno.
(Provérbio Islâmico)


Restavam apenas algumas horas de vida ao velho Jacó. Cercado pela família, o patriarca chamou seus filhos, e com as mãos imposta sobre as cabeças, ministrou uma palavra profética para suas respectivas descendências. Jacó conhecia muito bem cada um de seus filhos. Quem eram, como agiam e o que poderiam ser. É com base em seus perfis comportamentais e características espirituais, que o pai antevê nos filhos, o futuro das tribos que herdariam a terra de Canaã, quase quinhentos anos depois.

Assim que abençoou seus filhos, Jacó deu instruções sobre o próprio sepultamento, esticou as canelas e descansou em paz. Perpetuamente. Mas, as palavras proferidas naquela tarde, ecoaram sobre Israel por muitas gerações (Gêneses 49:1-33).

Na visão de Jacó, Ruben era um turbilhão de águas ferventes. Simeão e Levi, espadas de violência. Judá, o leãozinho. Zebulom, um porto para navios. Dã, uma serpente no caminho. Gade, um perseguidor de seus inimigos. Aser, um fabricante de pães suculentos. Naftali, um antílope que saltava com alegria. José, um ramo frutífero que cresceu para além dos muros. Benjamim, um lobo que despedaçava sua presa.

Se você percebeu que ainda falta um nome nesta lista, parabéns por sua perspicácia. Mas, é proposital. Deixei Issacar por último, já que este texto é exatamente sobre sua descendência. 

Ele é o jumento de ossos fortes.

- Issacar é um jumento forte, deitado entre as suas cargas. Quando ele perceber como é bom o seu lugar de repouso e como é aprazível a sua terra, curvará seus ombros ao fardo e se submeterá a trabalhos forçados (Gênesis 49:14-15).

Issacar fazia o tipo sossegado. Na chuva ou no sol, tudo estava bem. Ele não deixava para amanhã, o que podia fazer “depois” de amanhã. Para Issacar, o ruim já era bom, e o regular estava ótimo. A mediocridade impregnava seu DNA.  

Ser “medíocre” é estar entre a maioria, fazer parte da média. Conformar-se com o pouco, quando o muito está ao alcance das mãos.  Jacó associou Issacar a  um jumento de ossos fortes, que se mantem deitado entre as cargas que deveria carregar. Sobre seu futuro, visualizou uma geração acomodada, habitando confortável em uma terra boa, porém, sitiada. Eles iriam preferir pagar tributos a seus vizinhos, do que se levantar em armas, afim de conquistar a terra que lhes era de direito. 

Mas, para entender esta história, precisamos voltar no tempo, quando Jacó ainda era um rapazote enamorado.

Jacó se apaixonou por uma moça chamada Raquel, e por ela trabalhou sete anos. Na noite de núpcias, seu sogro o embebedou ao ponto de não perceber que estava casando com a mulher errada. Labão lhe entregou Léia, a filha mais velha por esposa, e no afã do momento, Jacó nem exitou em partir para os "finalmentes". Ao acordar no dia seguinte e perceber seu equivoco, ele se propôs a trabalhar mais sete anos por Raquel. 

Assim, Jacó cometeu a insensatez de levar para sua tenda, as duas irmãs, sendo ambas, esposas oficiais. A confusão estava armada (Gêneses 29:18-30).

A história de Issacar já começa com atitudes de conformismos e negligências. Sua mãe, Léia, já tinha dado quatro filhos a Jacó, porém, seu marido continuava só tendo olhos para Raquel, que ainda era estéril. Sendo assim, Jacó passava muito mais tempo na tenda da irmã mais nova, e Léia se sentia profundamente incomodada com esta situação. A solução, no seu entendimento, seria gerar mais um filho. 

Então, ela pediu que Ruben, seu primogênito, fosse até o campo colher algumas mandrágoras, uma planta que os antigos acreditavam ter propriedades afrodisíacas, o que poderia facilitar o processo de "concepção". Raquel teve a mesma ideia, mas, não estava disposta a caminhar pelas matas.

Ao ver seu sobrinho voltando para casa com as mandrágoras, Raquel queria, de todo jeito, tomar as plantas para si. Léia interviu com aspereza, dizendo para a irmã, que além de roubar seu marido, agora ela também queria roubar as mandrágoras de seu filho. Bate boca aqui, um puxão de cabelo ali, e Raquel propôs uma troca. Se ela pudesse ficar com as mandrágoras, então, obrigaria Jacó a pernoitar na tenda de Léia. E foi o que aconteceu.

Exatamente naquela noite, Deus voltou a abrir a madre de Léia, ela engravidou pela quinta vez, e deu luz a mais um menino, ao qual chamou de Issacar, cujo nome significa, “o Senhor acrescenta” (Gêneses 30:14-18). Por pura preguiça, Raquel entregou de mão beijada, uma benção que poderia ser sua.

Não existem registros sobre a infância de Issacar. Mas, pelas palavras de Jacó, podemos fazer algumas conjecturas, afim de entender seu comportamento. 

É possível que ele tenha votado em branco, quando os seus irmãos escolheram o destino de José. Talvez tenha tentado convencer sua família que viajar ao Egito em busca de comida seria um desperdício de tempo. Quem sabe tenha sugerido aos demais, que a prisão de Faraó era mais confortável que a longa viagem de volta a Canaã. Issacar gostava do agora. Pensar no amanhã lhe causava enorme fadiga. E sua descendência, perpetrou este estilo de vida.

Quatro séculos depois, na saída do Egito, a tribo de Issacar contava com 54.400 indivíduos (este censo não considerava mulheres e homens abaixo de 20 anos). Após a peregrinação no deserto, dentro dos mesmos critérios, a tribo tinha 64.300 homens (Números 1:17-29, 26:23-25). Assim como havia sido profetizado por Jacó, a tribo de Issacar era robusta como um jumento de ossos fortes, que crescia sobre a terra, e se dedicava ao trabalho agrícola. Na divisão do território, Issacar foi a quarta tribo a ser sorteada, e recebeu como herança, parte leste de Canaã, fazendo fronteira com Zebulom, Naftali, Manassés, Gade e Aser. Seu território ficava situado no fértil vale de Jezreel, sendo margeado pelo Rio Jordão e o Mar da Galiléia. A propriedade era produtiva e sua gente fecunda. Mas, para tomar posse da herança, era preciso expulsar os invasores estrangeiros. E a guerra era uma carga que aquele jumento, apesar de sua força, não queria carregar.

Antes de sua morte, Moisés também profetizou sobre as tribos de Israel. Referiu-se a Issacar e Zebulom como futuras potências marítimas, que recolheriam muitos tesouros de suas praias. Também declarou que o território de ambos, seria usado como santuários de adoração, onde os povos trariam ofertas de justiça. Issacar era um povo bom, que evitava confrontamentos e optava pela hospitalidade. Muitas cidades de seu território foram doadas aos levitas (Josué 21:6). Nos dias de Salomão, a tribo fornecia um quinhão anual, para sustentar a corte do rei (I Reis 4:1-17). O problema, é que Issacar podia ser muito mais.

Enquanto ali perto, Judá avançava sobre a região, expulsando guerreiros poderosos e gigantes assustadores, tomando posse da terra que lhe fora prometida, Issacar se acomodava com a porção que tinha recebido sem esforço, abnegando-se de batalhar pela plenitude da promessa. Enquanto se negava a avançar sobre territórios dominados pelos cananeus, os filhos de Issacar permitiam que seus inimigos se mantivessem fortes, e com os olhos cobiçoso voltados para as planícies produtivas onde lavoravam os hebreus. Uma ameaça real a segurança de toda nação. 

E agora? Prevaleceria as palavras de Jacó ou os conselhos de Moisés? A tribo tinha uma escolha a fazer. Poderiam se acomodar num pequeno território ou partir para a conquista definitiva da terra e estender seus braços sobre as águas.

Eles se acomodaram. Escolheram não lutar, e com isso, foram escravizados por seus inimigos. E gostavam desta situação. Era preferível perder algumas moedas de prata, do que deixar o sangue espalhado no campo de batalha. A terra era deles por direito, e mesmo assim, pagavam aluguel para morar na própria casa. Vai entender. Issacar era como um jumento acorrentado a um talo de bambu. Tinha força para escapar da opressão, mas, estava confortável nas teias do comodismo.

Com sua postura negligente, aquela geração desceu a um nível de apostasia extremamente perigoso. Eles desprezaram as promessas de Deus, abrindo mão do grandioso plano do Senhor para suas vidas. Deus lhes tinha dado o “tudo”, e os issacaritas se conformaram em ser “um nada” diante de seus inimigos. Queriam ficar sossegados na terra, deitados confortavelmente em suas espreguiçadeiras, usando espadas apenas como espetos de churrasco. Sonhavam com a terra prometida, e quando a promessa se tornou realidade, deixaram de sonhar. 

Como puderam abrir mão de tanto por tão pouco?

Olhe no espelho e possivelmente você encontrará a resposta. Quanta vezes agimos desta mesma forma diante de um desafio? Preferimos não nos expor para evitar retaliação. Nos ocultamos em momentos nos quais deveríamos avançar em direção à guerra.

No ano 100 DC, o poeta romano “Juvenal” escreveu uma crítica social muito famosa chamada “Sátira X”, na qual criticava a falta de informação do povo de Roma, que não tinha qualquer interesse em assuntos políticos, e só se preocupavam com comida e diversão. Daí nasceu o conceito “panem et circenses” ou, “política do pão e do circo”. O que isto significa? Dê pão e circo para o povo, e ele não incomodará o governo com questões importantes. Ignorância, inoperância e banalização.

E quantos cristãos não estão vivendo de migalhas espirituais e teatralidades teológicas? São como jumentos fortes que escolhem estar acorrentados por fios de nylon. Podem romper com as cadeias da religiosidade, mas preferem viver amarrados a uma ilusão consciente. Deveríamos nos envergonhar desta covardia espiritual. E ainda temos a petulância de nos declararmos soldados de Jesus, quando na verdade, somos um bando de muquiços medrosos, preguiçosos e incrédulos.

Assim foram os filhos de Issacar nos seus dias. Eram fortes, mas, não queriam lutar pelo direito de seus filhos. Eram fortes, mas gostavam de descanso. E do que vale a força, se a preguiça fala mais alto?  Eles não tinham interesse em deixar Deus ser "Deus” em suas vidas. Tinham a opção de viver sem negligenciar seus direitos e abriram mão voluntariamente. E este ciclo vicioso ainda se repete em nossa geração.  A culpa é de Issacar? Claro que não!

Cada homem é responsável por suas escolhas. Nossas mãos agem de acordo com as intenções de nossos corações! A inércia de muitos, não pode ser usada como desculpa para apatias individuais. A Bíblia comprova que cada pessoa tem o direito de deixar seu nome escrito nas páginas de sua geração. 

Apesar do perfil passivo da tribo de Issacar, existiram momentos na história de Israel onde homens valentes se levantaram com autoridade e destreza, ajudando a nação a superar momentos de crises. Num período de grande apostasia espiritual, Deus entregou Israel nas mãos de Jabim, rei de Hazor. Este monarca possuía um poderoso exército composto por mais de novecentos carros de ferro, comandados pelo terrível general Sísera, que afligia Israel com grande violência.

Essa situação arbitrária se arrastou por vinte anos (Juízes 4:1-3). Deus, então, levantou uma mulher chamada Débora, como juíza da nação. Por sua vez, ela encarregou Baraque de comandar os israelitas numa batalha decisiva contra os invasores. Aquela foi uma grandiosa vitória, que contou a participação decisiva de Issacar, já que os chefes de família, lutaram pela liberdade da nação ao lado de Débora e Baraque. Em seu hino de agradecimento ao Senhor por tamanho livramento, a juíza perpetua a tribo de Issacar entre os corajosos guerreiros (Juízes 5:15). 

Alguns anos depois, Issacar deu a nação seu próprio juiz, um homem chamado Tolá, que julgou em Israel por 23 anos. Dá para fazer diferença em meio a geração da indiferença. É possível agir quanto todos se omitem! Cada “jumento” é dono da força que possui.

Issacar, como tribo, aprendeu com os exemplos de seus compatriotas destemidos e corajosos. Se não gostavam de pegar em armas, poderiam guerrear de outras maneiras. Um povo manso não é  necessariamente, um povo covarde.

Nos escritos de Platão e Aristóteles, a “mansidão” é citada como a arma dos verdadeiros sábios e poderosos. Platão a comparava com um cão de guarda que revela "ferocidade e hostilidade valente" aos estranhos, e amizade gentil para com os de casa, aos quais conhece e ama. Segundo Platão, "manso é aquele que tem ao mesmo tempo impetuosidade e delicadeza nos mais altos graus".  Para Aristóteles, mansidão é a “capacidade para suportar recriminações e ofender com moderação, sem embarcar em vinganças rapidamente, e não ser provocado facilmente à irritação, mas estar livre de amargura e de contenção, tendo tranquilidade e estabilidade no espírito".

Issacar continuou a crescer como tribo, mas aprendeu a evoluir em sabedoria. Nos dias de Davi, um novo censo apontou 87.000 issacaritas (I Crônicas 7:5). Não mais um povo servil. Agora, eles tinham assumido os arreios que trepidaram por muitos anos em seus lombos.

Crônicas 12 apresenta uma lista de homens notáveis, verdadeiros heróis nacionais, responsáveis direto pelo sucesso do reinado de Davi. As tribos estão ali representadas por seus mais habilidosos guerreiros, dotados de perícia no combate físico, na destreza com a espada ou manejo de arcos e flechas. Porém, existe uma menção especial para a tribo de Issacar, representada por duzentos líderes tribais, que se destacavam dos demais soldados, por sua capacidade de desenvolver e aplicar estratégias de combate. Homens que dominavam a “ciência do tempo” e ditavam o ritmo das batalhas. Eram eles que determinavam a hora de atacar e o momento de se defender.  Ninguém avançava ou recuava sem primeiro ser orientado pelos filhos de Issacar. Nem mesmo o rei. Esta era uma geração que “fazia” acontecer. Admirada por seus amigos. Temida por seus inimigos. Estavam sendo exatamente o braço forte e poderoso predito por Jacó e profetizado por Moisés.

Os filhos de Issacar nos deixam uma importante lição com seu legado de altos e baixos. Nenhuma geração está previamente determinada a repetir os erros de seus antepassados, e nem predestinada a perpetuar seus acertos. Devemos fazer a diferença em nosso tempo. Enquanto uma geração se submeteu a vassalagem dos caldeus, outra, se levantou com bravura para expulsar os estrangeiros da sua terra. Com o tempo, os pacíficos descendentes de Issacar aprenderam que existe tempo de paz e dias de guerra. E dominaram este conceito. Aprenderam a se mover com estratégia e cuidado.

Quem disse que um povo apegado a sua terra, não pode aprender a expandir seu território? Sim, é possível guerrear sem empunhar armas. Basta o jumento usar sua força, levantar sua carga nas costas, e mover-se para frente.

(Meus agradecimentos ao grande amigo Bene Wanderley, por compartilhar comigo suas interpretações brilhantes a respeito do tema tratado neste texto. Louvo ao Senhor por sua vida, meu irmão!)


3 comentários:

  1. Boa noite, como esse estudo me ajudou eu estava até agora como Issacar, prostrada ,mais depois de hj creio q minha vida não vai ser mais a mesma !!!!!

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  2. revelação impressionante depois da leitura, que evolução obtenho.
    obrigado

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  3. Parabéns por esse estudo impressionante importante para cada um de nós mudar é necessário como diz nas entrelinhas que nenhuma geração está previamente determinada a repetir os erros de seus antepassados e nem predestinado a perpetuar seus acertos devemos fazer a diferença em nosso tempo enquanto uma geração se submeteu a vassalagem dos caldeus outras se levantou com gravura para expulsar os estrangeiros da sua terra.


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