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terça-feira, 25 de abril de 2017

Entrega em Domicílio

Só os estúpidos têm uma confiança absoluta em si mesmos.
(Orson Welles)


Pedras, musgos e fome. Estes eram os itens disponíveis nas prateleiras de Adulão. Aquele não era um lugar adequado para o futuro rei de Israel. Mesmo assim, Davi não se importava. Ele só precisava descansar um pouco. Talvez, ali, numa região inóspita e desprezada, encontrasse um pouco de paz e conforto para os pés cansados.

Davi teve uma ascensão meteórica. Depois que Samuel profeticamente o ungiu rei, o jovem pastor se tornou um habilidoso guerreiro campal, enfrentando e vencendo ursos e leões. Também foi convidado para ocupar o cargo de músico oficial do palácio. Durante a guerra contra os filisteus, se tornou um herói nacional ao vencer o duelo contra o temível Golias. Casou com a princesa Mical e se tornou o melhor amigo do príncipe Jonatas. Aclamado pelo povo, Davi acumulou altas patentes e conquistou inúmeras vitória contra inimigos poderosos. Tudo ia bem.

Porém, tamanho sucesso, despertou a inveja de Saul. O apático rei israelita pressentia que seu reinado estava ameaçado pelo belemita. Era preciso eliminar Davi. Os próximos meses foram marcados por diversas tentativas de assassinato. Algumas veladas, outras explícitas. Contando com a proteção de Deus, e a ajuda de alguns aliados, Davi conseguiu escapar de cada uma delas. Mas, o cerco estava se fechando.

Quando Saul enviou um grupo de assassinos para matar Davi na calada da noite, Mical o ajudou a fugir pela janela. Escondido em Ramá, ele esperava por boas notícias afim de voltar para casa. Isto não aconteceu.

Saul usou de um artifício político e declarou Davi inimigo do estado. E com isso, conseguiu a legalidade necessária para enviar o poderoso exército de Israel numa caçada insana ao fugitivo. Em desespero, Davi buscou ajuda em Nobe, o refúgio dos sacerdotes. Em retaliação, Saul ordenou que todos os moradores daquela cidade fossem assassinados.

Davi compreendeu a gravidade da situação. A fúria de Saul era tão avassaladora, que atingiria mortalmente qualquer pessoa que tentasse lhe ajudar. Assim, preocupado com a segurança de seus familiares, ele não pode ir a Belém. Para preservar a vida de Samuel, Davi precisava se manter distante de Ramá. Sobrava Gate.

Neste tempo, Gate era a principal base militar dos filisteus. Talvez, estar entre os inimigos de Saul fosse o lugar mais seguro no momento. O tiro saiu pela culatra. É verdade que os moradores daquela cidade odiavam a Saul, porém, tinham maior aversão a Davi. O rei de Israel sempre foi um inimigo perigoso, porém, era Davi quem matava seus guerreiros mais importantes. Foi Davi que dizimou centenas de soldados filisteus só para usar seus prepúcios como dotes de casamento. As canções populares diziam: - “Saul matou mil... Davi, dez mil”. E os mortos, quase sempre eram velados naquela cidade.

Saul usou a fúria dos filisteus a seu favor. Aquis, o rei da cidade, ordenou que o belemita fosse encontrado e capturado. Davi, só não morreu em Gate, porque Deus interveio ao seu favor, lhe dando uma estratégia extravagante de fuga, que incluía bater a cabeça em paredes e babar como um louco (I Samuel 21-12-15).

E agora? Para onde ir? Davi era uma ameaça para qualquer cidade. E em qualquer cidade estava ameaçado. A única opção que lhe sobrava, era ir aonde nenhum israelita desejava estar. Adulão.

Aquela era uma cidade para expatriados. Uma terra sem lei, habitada por homens rejeitados, excluídos e incriminados. Uma prisão sem guardas. Mas, nem mesmo ali, Davi teria uma casa para morar. Ele se refugiou em uma caverna. Pedras, musgo e fome. Davi tinha apenas as roupas do corpo para se proteger da umidade. Sua única arma era a espada de Golias, a qual ele retirou de Nobe. Uma arma que não o favorecia em combate, já que era desproporcional a sua envergadura.

Frio e vulnerabilidade. A solidão que incomodava, era também seu maior consolo. Afinal, lá fora, havia um exército a sua procura, onde cada soldado tinha autonomia para o matar.

E é neste lugar de tristeza e desprezo, com o corpo flagelado pelo frio e o estômago retorcido pela fome, que Davi compõem um dos hinos mais belos de todos os tempos:

O Senhor é o meu pastor; de nada terei falta.
Em verdes pastagens me faz repousar e me conduz a águas tranquilas;
restaura-me o vigor.
Guia-me nas veredas da justiça por amor do seu nome.
Mesmo quando eu andar por um vale de trevas e morte, 
não temerei perigo algum, pois tu estás comigo; 
a tua vara e o teu cajado me protegem.
Preparas um banquete para mim à vista dos meus inimigos. 
Tu me honras, ungindo a minha cabeça com óleo, 
e fazendo transbordar o meu cálice.
Sei que a bondade e a fidelidade me acompanharão todos os dias da minha vida, 
e voltarei à casa do Senhor enquanto eu viver.

Ah! Davi! Que lição grandiosa você nos dá. Para ele, o Deus que o ungiu em Belém, e que guiou a pedra contra a testa do gigante, ainda velava por sua vida, mesmo dentro daquela insólita caverna. Davi sabia que um ciclo de infortúnios não anulava as promessas de Deus. Ele seria rei, mesmo que seu trono se estabelecesse em Adulão. A fidelidade do Senhor o tiraria da sarjeta, e o poria assentado na cabeceira de uma mesa.

Conta-se que numa cidade do interior, a prefeitura construiu uma praça chamada “Salmo 23”. Na inauguração, convidaram um artista renomado, nascido naquela terra, para que ele lesse o salmo em questão. Sua interpretação do texto foi estupenda. Todos aplaudiram com entusiasmo a brilhante performance, que deu vida para cada palavra. Um morador da cidade, foi escolhido para realizar a mesma leitura, representando o povo. Era o pastor da única igreja evangélica da região. Ele abriu sua Bíblia, e repetiu as palavras de Davi. 

Quando terminou a leitura, não houve aplausos. Inexplicavelmente, as pessoas choravam. No dia seguinte, o prefeito convocou o pastor para uma audiência privada. Ele queria entender o fenômeno capaz de transformar aplausos eufóricos em lágrimas emocionadas. Em sua simplicidade, o pastor só encontrou uma explicação:

- Tem muita diferença entre conhecer o “salmo do pastor”, e conviver com o “Pastor do Salmo”.

Ao escrever o Salmo 23, Davi não estava profetizando sobre os cuidados futuros do Senhor, mas, sim, celebrando a provisão divina sobre sua vida até ali. Um bom exercício para os dias de trevas, é tentar relembrar todas as vezes que Deus nos deixou no escuro. É nesta hora, que certamente seremos iluminados por luzes radiantes. Quem preserva sua memória, jamais despreza a fé.

Jeremias testemunhou a tragédia varrer Jerusalém. Os caldeus deportaram seus nobres, mataram seus soldados, queimaram a cidade, destruíram o templo e fenderam os muros. Apenas os pobres e doentes foram deixados para traz, padecendo de fome e frio. Entre eles, estava o profeta. Sentado sobre cinzas e escombros, ele lamenta o destino de sua gente. Mas, não permite que a fé seja vencida pela desesperança. Ele busca consolo em suas lembranças:

Lembro-me da minha aflição e do meu delírio, da minha amargura e do meu pesar. Lembro-me bem disso tudo, e a minha alma desfalece dentro de mim. Todavia, lembro-me também do que pode dar-me esperança: - “Graças ao grande amor do Senhor é que não somos consumidos, pois as suas misericórdias são inesgotáveis. Renovam-se cada manhã; grande é a tua fidelidade! ” Digo a mim mesmo: -  A minha porção é o Senhor; portanto, nele porei a minha esperança. (Lamentações 3:19-24)

Jeremias se lembrou da misericórdia do Senhor, e renovou suas esperanças. Davi não se esqueceu da promessa e obteve forças para perseverar. Evocando uma peça teatral, podemos dizer que Jeremias e Davi tinham plena confiança que o “cenário” não interfere no “texto” que Deus escreveu.

Para Deus, Jerusalém e Adulão são meras nomenclaturas. A distância geográfica é uma dificuldade real para o homem. Porém, se torna obsoleta, quando nos lembramos que nosso Deus tem um impecável serviço de entregas a delivery. Para ser rei, Davi precisaria de um “séquito real”, formado por um exército com seu general, um profeta como conselheiro e um sacerdote para sacrificar ao Senhor. Em Jerusalém, haviam diversos postulantes para cada posto. Na caverna, Davi estava sozinho, e, portanto, não tinha possibilidades de construir as bases de um reinado. Ou teria?

Certa vez, Jeremias estava cheio de dúvidas quanto a seu próprio ministério. Então, recebeu uma intimação do céu: - Clama a mim e eu vou te responder. Vou te contar detalhes grandiosos dos meus planos, os quais você ainda não consegue entender. Quando era criança, aprendi com a queridíssima “tia Jessi”, minha primeira professora de EBD, que Jeremias 33:3 é o telefone do céu. Quando leio a história de Davi na caverna, percebo que o atendente faz questão de mandar a encomenda no domicílio de quem faz o pedido.

Quando os familiares de Davi souberam que estava em Adulão, vieram de Belém, e se juntaram a ele. Os primeiros soldados tinham se alistado.  E não parou por aí. Segundo o texto de I Samuel 22:2, também se aliaram ao belemita, todos os homens em dificuldade financeira, os desprezados pela sociedade e os marginalizados pela vida. Mesmo em Adulão, Davi se tornou o líder de quatrocentos soldados, dispostos a lutar e morrer por ele. Deus tinha lhe enviado um exército via SEDEX. Um plantel corajoso, dedicado e "completo", afinal, seu sobrinho Joabe logo se tornou o braço direito de Davi para questões militares. O futuro rei tinha encontrado seu general.

Entre os refugiados de Adulão estava Abiatar. Este jovem levita havia escapado da chacina em Nobe, onde viu seu pai, Aimeleque ser assassinado pelo exército de Saul. Deus havia entregado na porta da caverna, um sacerdote para interceder por Davi e seus guerreiros.

O exército de Davi passou os anos seguintes buscando uma cidade para se estabelecer definitivamente, protegendo povoados e guerreando contra inimigos poderosos. Após a morte de Saul, Davi foi declarado rei de Judá, e precisou esperar mais sete anos, antes de reinar sobre todo Israel. Neste tempo, Samuel já estava morto, e Deus levantou Natã como profeta, para aconselhar e exortar o novo rei. O séquito real estava completo antes mesmo de Davi assumir o trono. O Senhor tinha sido fiel em suas promessas.

Quanto aos homens em dificuldade, endividados e descontentes de I Samuel 22:2, basta dizer que se tornaram heróis nacionais. Davi é lembrando como o maior rei da história de Israel, o homem que unificou o reino e prosperou a nação. Este sucesso só foi possível porque Davi temia ao Senhor, e se cercava de pessoas leais, admiráveis e capacitadas. Basicamente, os mesmos que lhe juraram lealdade em Adulão. Seus nomes foram honrados e perpetrados em II Samuel 23;8-39, numa honorável galeria conhecida como “OS VALENTES DE DAVI”. Um exército valoroso forjado na caverna da provação.

Adulão não tem a capacidade de neutralizar o poder de uma unção. O bom pastor tinha transformado o vale da sombra da morte em pastos verdejantes com fontes de águas cristalinas. Quem conhece seu pastor, assim Davi conhecia, usa a caverna como quarto de hospede, antes de caminhar longas distâncias por campos floridos. E nunca, fará esta caminhada sozinho. O bom pastor lhe guiará!

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