O amor é o espaço e o tempo tornados
sensíveis ao coração.
(Marcel Proust)
Digamos que você empreste uma relevante quantia de
dinheiro a um irmão na fé. Chega o dia em que o débito deve ser quitado, e nada
acontece. O inadimplente some dos cultos, ignora seus telefonemas, muda de
casa e não atualiza a ficha cadastral. O que fazer?
Goste você ou não, na visão do apóstolo Paulo, mais vale sair no prejuízo do que entrar em litígio com um irmão de fé (I Coríntios 6:6-7).
Goste você ou não, na visão do apóstolo Paulo, mais vale sair no prejuízo do que entrar em litígio com um irmão de fé (I Coríntios 6:6-7).
Antes de escrever sua primeira carta à igreja em
Coríntios, o apóstolo havia recebido notícias perturbadoras sobre aquela
comunidade. Eles estavam vivendo imersos em conflitos teológicos e rupturas
doutrinárias. Paulo enviou para aquela igreja a sua carta mais “agressiva”,
tratando-os como meninos na fé, levianos e sem amadurecimento espiritual. Entre
os diversos temas abordados na epístola, três deles recebem de Paulo uma atenção
especial:
- Dissensões (capitulo 3)
- Litígios (capitulo 4)
- Divórcios (capitulo 7)
Estas questões se destacam entre as demais por um
motivo bem específico. Além de corroborar com a crescente ruptura nos laços
fraternais daquela comunidade, estavam expondo a igreja diante da sociedade,
entregando causas genuinamente eclesiástica ao julgamento secular. Paulo, não
se conformava com isso.
Após advertir os corintos com veemência sobre a
postura que deveriam ter como cristãos, portadores da uma promessa que serão
juízes do mundo, e não o contrário, Paulo interpela para que trilhem o mais
excelente dos caminhos: a caridade. O amor. No amor se resume a fé cristã, todo o
mandamento divino e a vida cotidiana do cristão. Em sua essência, podemos considerar
que o amor é o maior de todos os presentes dados por Deus ao ser humano, seja
no privilégio de ser amado ou na capacidade de amar. O amor é a base da nossa
pregação, é o lema de nossa cruzada celeste, a motivação de nosso serviço e a
coluna cervical do fruto espiritual.
Deus nos ama incondicionalmente, e este é sem
dúvida o mais valioso dos presentes. É desfrutando plenamente deste amor que
obtemos os meios necessários para manifesta-lo ao próximo. Entretanto, é
necessário entender que o amor cristão exercido diariamente não deve ser dado a
nós por Deus, mas sim, desenvolvido em nós para Deus. Primeiramente porque Deus
já nos amou e por amor, Jesus Cristo deu sua vida por nós. Agora, imersos neste
amor, precisamos desenvolver um amor genuíno por aqueles que nos cercam e para
com o nosso próprio Senhor.
O desenvolvimento do amor fraternal foi o argumento
definitivo de Paulo para dar uma resolução permanente aos embates existentes na
igreja de Corinto. Paulo os aconselhou a pautarem suas ações e decisões no amor,
pois ele tudo sofre, tudo crê, tudo espera e tudo suporta (I Coríntios 13:7). Lei a prova de falhas.
Paulo voltaria a pautar intensamente este tema, desta
vez escrevendo a seu amigo Filemom. O apóstolo lança mais uma vez o mesmo
argumento, afim de sanar uma divergência do passado. O que Paulo insistia em
ensinar aos seus discípulos, é que qualquer julgamento dentro da igreja deve
primeiramente passar pela peneira do amor. A legislação do céu.
Filemom era um bom cristão. Exercia influência
positiva na igreja de Colossos, sendo identificado por Paulo como um grande
motivador, com a capacidade de reanimar o coração dos santos (Filemom 7).
Aquele, sem dúvidas, era um homem de muitas virtudes, e deveras amoroso. Mas, ainda existia em Filemom um resquício do
passado, quando foi usurpado por um de seus servos.
Onésimo causou grande perca a Filemom, e se
embrenhou pelo mundo, deixando aquela ferida emocional aberta e sem resolução.
Havia chegado a hora de agressor e agredido, defraudador e defraudado, assaltante
e assaltado se olharem nos olhos mais uma vez, só que agora, não como senhorio e
escravo, mas sim, como irmãos em Cristo.
Paulo deseja ardorosamente que este reencontro
aconteça. Afinal, além de ser o “pai” espiritual de ambos, tornou-se amigo
pessoal de cada um deles, conhecendo o coração generoso de seus filhos na fé.
Deus sempre tem um plano meticuloso para a vida do
homem. Nossos dias são escritos no seu livro antes mesmo que nossos ossos
estejam formados no ventre. O Senhor deseja que caminhemos linearmente rumo aos
seus propósitos, mas, respeita nosso livre arbítrio. Seguimos nossos instintos e
acabamos encurralados num emaranhado de erros que prendem nossos pés e impedem a jornada. Assim, fazemos paradas não planejadas, estagnamos em trechos
transitórios e passamos a viver de situações improvisadas e lugares inóspitos.
Porém, Deus não desiste de nós, e também se embrenha
em nosso mundo tortuoso, ganhando passos a nossa frente, facilitando
“encontros” na beira do caminho. Por mais perdido que estejamos, basta olhar em
volta com um pouco de atenção para perceber que Deus está lá, nos
aguardando com um sorriso no rosto.
A história de Filemom e Onésimo é uma prova
incontestável desta verdade. Onde olhares incautos apenas identificarão uma
série de coincidências, é possível constatar o trabalhar detalhado e
perfeccionista de Deus.
Filemom era um homem de posses, que se converteu ao
evangelho após a incursão de Paulo na cidade de Colossos. Seu envolvimento com
a obra de Deus foi notório e digno de elogios, já que era ativo na proclamação
do Evangelho, cedendo sua casa para que uma igreja fosse estabelecida ali. Sendo
muito rico e vivendo sob a égide do Império Romano que dava legalidade a
escravidão, Filemom, era sim, dono de diversos escravos.
Onésimo é historicamente lembrado como um dos
maiores líderes da igreja de Efésio. Mas aqui, aparece apenas como um dos
escravos de Filemom. Por algum motivo não relevado, Onésimo fugiu para Roma,
aparentemente levando consigo alguns valores e causando grande prejuízo ao seu
senhor. Acabou preso, sendo conduzido a uma prisão.
Foi exatamente neste período de sua vida, que o escravo fujão passou a conviver
com um prisioneiro ilustre chamado Paulo.
Não sabemos ao certo se ambos dividiram uma cela em
Roma, ou se conheceram em Éfeso, quando Paulo esteve preso pela primeira
vez. Certo é, que Onésimo também aceitou o Evangelho de Cristo, se tornando um
colaborador ministerial de Paulo, que por sua vez era o mentor espiritual de
Filemom, por quem também nutria grande amizade.
Coincidência?
Há um ditado popular que diz: “O amigo de meu amigo é meu amigo”. Agora, Paulo possui vínculos
fraternais com duas pessoas que conservam entre elas uma rusga do passado. O
apóstolo vislumbra a oportunidade de usar sua influência junto a ambos, para pôr um fim definitivo a esta questão.
A carta enviada para Filemom é mais pessoal das
epístolas paulinas, já que é basicamente um pedido particular do apóstolo a seu
amigo, afim que o mesmo perdoe seu “também” amigo Onésimo.
Teria o escravo aproveitado um momento de distração
do senhorio que ouvia atentamente as palavras de um missionário para fugir?
Quem sabe! Mas, quais seriam as reais possibilidades deste
mesmo missionário ser preso por amor a Cristo e acabar dividindo sua cela com
um escravo foragido de uma das casas onde ministrou meses atrás?
Tudo estava engendrado pelo Senhor, e a
perseverança de Paulo foi o ponto de equilíbrio numa história que parecia ser
trágica e vertiginosa.
Em sua liberdade, Paulo fez um amigo chamado
Filemom, e a igreja de Colosso ganhou um excelente obreiro. Em prisão,
desenvolveu amizade com Onésimo, e a igreja de Éfeso ganhou um bispo. Deus
revela-se perfeito em seus encontros, nem que sejam nos mais inesperado dos
lugares.
Esta bela história de reconciliação só foi
possibilitada porque alguém se pôs como um pacificador em meio a desavença. Em
Mateus 5:9, Jesus salientou que apenas os “semeadores da paz” podem ser
chamados “Filhos de Deus”. Paulo não se omitiu desta responsabilidade. Ele se
fez um representante do Reino dos Céus, apresentando a partes rixosas uma
alternativa ao litigio humano. A Lei do Amor.
Eu sei que você está desconfortável com este texto.
Eu também. Ninguém gosta de abrir mão de direitos adquiridos para beneficiar um
infrator. Não parece justo. Mas, a grande verdade, é que se não existisse esta
lei espiritual, teríamos muitos processos a responder. Jesus a aplicou em nós,
e por isso, fomos inocentados. Ele assumiu os prejuízos. Amor.
O livro de Jó registra a mais longa conversa entre
Deus e um ser humano. O patriarca foi atingido por um caos sem precedentes. Tentando
justificar a própria condição, apresentou aos Senhor todos os seus argumentos.
Deus o ouviu atentamente, e depois, respondeu veementemente cada uma das
indagações. Ao final da conversa, Jó compreendeu que sua visão limitada não
podia compreender a grandeza dos planos divinos. Sua parte nesta relação, era
de fato se submeter a vontade do Senhor.
Porém, Jó apresentou diante do Todo Poderoso, um
argumento que de fato repercutiria na eternidade. Jó admitiu sua pequinês diante
de Deus, mas clamou por maior justiça nesta relação:
- Não é homem como eu, para que eu lhe responda
e nos enfrentemos em juízo. Se tão-somente houvesse alguém para servir de
árbitro entre nós, para impor as mãos sobre nós dois, alguém que afastasse de
mim a vara de Deus, para que o seu terror não mais me assustasse! Então eu
falaria sem medo; mas não é esse o caso (Jó 9:32-35).
O patriarca percebeu que jamais poderia olhar nos
olhos de Deus, pois as diferenças entre eles eram infinitas. Na sua análise, era
necessário um mediador que se pusesse entre os dois. Alguém que possuísse compreensão
do plano divino, mas, também tivesse conhecimento prático da condição humana.
Uma analogia bem simples pode ser encontrada na
cozinha de nossas casas. Quem faz um bolo, tem total controle sobre a receita,
escolhe e prepara os ingredientes, trabalha a massa e dá formato. Aquece o
forno na temperatura que desejar e define quanto tempo a massa deverá ficar no
fogo. Em suma, o cozinheiro conhece plenamente o bolo. Sabe do que é feito, porque
foi ele quem o fez. Sabe quanto tempo de aquecimento é necessário e conhece o
passo a passo da receita, consciente do que virá depois. Porém, o cozinheiro
nunca saberá como é estar “dentro do forno”. Ele fez o bolo, mas “não é” o
bolo.
Exatamente por isso, o verbo se fez carne e habitou
entre nós (João 1:14). Para entender a lógica humana, Deus se fez homem.
O mediador pode ser entendido como alguém que
se torna responsável pela conciliação de partes conflitantes. Ele se torna um elo
que junta metades antes partidas. Na história de Filemom e Onésimo, o apóstolo
Paulo surge como o intermediário que une desafetos com laços fraternais.
Podemos observar nesta história, uma belíssima tipologia para entendermos o
papel de Cristo na reconciliação do homem com Deus.
Vale lembrar que Onésimo pertencia a Filemom, porém
escolheu se afastar de seu senhor. Assim, podemos dizer que um representa o PAI
abandonado, e o outro, se torna o filho rebelde. Longe da casa, Onésimo se
envolveu em situações extremadas que culminaram na sua prisão. Naquela cela úmida, ele
amargaria dias de solidão e ostracismo, pois ninguém se interessaria em
intervir por um homem sem posses e com histórico de escravidão.
Milagrosamente, naquela cela, ele se encontrou com
um homem culto e muito bem relacionado, que por amor, “escolheu” ser um
prisioneiro do Evangelho. Paulo tomou conhecimento da história de seu novo
companheiro de cela, e se identificou com o sofrimento alheio, pois também
estava vivendo uma situação semelhante, partilhando do mesmo teto, do mesmo
chão e do mesmo ar.
O detalhe, é que este prisioneiro elitizado, também
tinha vínculos muito profundos com o senhorio lesado por Onésimo.
O autor da denúncia. O homem que podia
lhe devolver a liberdade. O detentor do perdão remidor. Paulo falava a língua
do senhor e o dialeto do escravo. Ele tinha a capacidade de olhar ambos nos
olhos, com a mesma ternura e compaixão. O apóstolo, então, agiu para que a
reconciliação acontecesse.
Ele escreveu uma carta a Filemom, capaz de amaciar
até o coração mais enrijecido. Nela, as novas qualidades de Onésimo são
apresentadas, já que o escravo se tornou um obreiro útil e produtivo. As ações
de Paulo foram responsáveis pela transformação do caráter daquele homem, que
deixando as agruras do passado para traz, havia se tornado um cristão cheio de
Deus.
Paulo pediu que Filemom liquidasse as pendências
recebendo de volta em sua casa o escravo foragido. Com isso a lei dos homens
seria cumprida. O apóstolo também autorizou que qualquer valor financeiro
devido por Onésimo, fosse imediatamente transferido para sua conta pessoal. Uma
vez que as dívidas tivessem sido pagas, então Onésimo deveria ser promovido a
“irmão”. Não deveria ser tratado como escravo.
Jesus também interpelou ao Deus Pai por cada um de
nós, pagando o preço de nossos pecados e nos resgatando da escravidão. E foi
muito além: - Já vos não chamarei servos, porque o servo não sabe o que
faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu
Pai vos tenho feito conhecer (João 15:15).
Nenhum comentário:
Postar um comentário