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terça-feira, 18 de abril de 2017

A Lei do Amor

O amor é o espaço e o tempo tornados sensíveis ao coração.
(Marcel Proust)


Digamos que você empreste uma relevante quantia de dinheiro a um irmão na fé. Chega o dia em que o débito deve ser quitado, e nada acontece. O inadimplente some dos cultos, ignora seus telefonemas, muda de casa e não atualiza a ficha cadastral. O que fazer? 

Goste você ou não, na visão do apóstolo Paulo, mais vale sair no prejuízo do que entrar em litígio com um irmão de fé (I Coríntios 6:6-7). 

Antes de escrever sua primeira carta à igreja em Coríntios, o apóstolo havia recebido notícias perturbadoras sobre aquela comunidade. Eles estavam vivendo imersos em conflitos teológicos e rupturas doutrinárias. Paulo enviou para aquela igreja a sua carta mais “agressiva”, tratando-os como meninos na fé, levianos e sem amadurecimento espiritual. Entre os diversos temas abordados na epístola, três deles recebem de Paulo uma atenção especial:

- Dissensões (capitulo 3)
- Litígios (capitulo 4)
- Divórcios (capitulo 7)

Estas questões se destacam entre as demais por um motivo bem específico. Além de corroborar com a crescente ruptura nos laços fraternais daquela comunidade, estavam expondo a igreja diante da sociedade, entregando causas genuinamente eclesiástica ao julgamento secular. Paulo, não se conformava com isso.

Após advertir os corintos com veemência sobre a postura que deveriam ter como cristãos, portadores da uma promessa que serão juízes do mundo, e não o contrário, Paulo interpela para que trilhem o mais excelente dos caminhos: a caridade. O amor. No amor se resume a fé cristã, todo o mandamento divino e a vida cotidiana do cristão. Em sua essência, podemos considerar que o amor é o maior de todos os presentes dados por Deus ao ser humano, seja no privilégio de ser amado ou na capacidade de amar. O amor é a base da nossa pregação, é o lema de nossa cruzada celeste, a motivação de nosso serviço e a coluna cervical do fruto espiritual.

Deus nos ama incondicionalmente, e este é sem dúvida o mais valioso dos presentes. É desfrutando plenamente deste amor que obtemos os meios necessários para manifesta-lo ao próximo. Entretanto, é necessário entender que o amor cristão exercido diariamente não deve ser dado a nós por Deus, mas sim, desenvolvido em nós para Deus. Primeiramente porque Deus já nos amou e por amor, Jesus Cristo deu sua vida por nós. Agora, imersos neste amor, precisamos desenvolver um amor genuíno por aqueles que nos cercam e para com o nosso próprio Senhor.

O desenvolvimento do amor fraternal foi o argumento definitivo de Paulo para dar uma resolução permanente aos embates existentes na igreja de Corinto. Paulo os aconselhou a pautarem suas ações e decisões no amor, pois ele tudo sofre, tudo crê, tudo espera e tudo suporta (I Coríntios 13:7). Lei a prova de falhas.

Paulo voltaria a pautar intensamente este tema, desta vez escrevendo a seu amigo Filemom. O apóstolo lança mais uma vez o mesmo argumento, afim de sanar uma divergência do passado. O que Paulo insistia em ensinar aos seus discípulos, é que qualquer julgamento dentro da igreja deve primeiramente passar pela peneira do amor. A legislação do céu.

Filemom era um bom cristão. Exercia influência positiva na igreja de Colossos, sendo identificado por Paulo como um grande motivador, com a capacidade de reanimar o coração dos santos (Filemom 7). Aquele, sem dúvidas, era um homem de muitas virtudes, e deveras amoroso. Mas, ainda existia em Filemom um resquício do passado, quando foi usurpado por um de seus servos.

Onésimo causou grande perca a Filemom, e se embrenhou pelo mundo, deixando aquela ferida emocional aberta e sem resolução. Havia chegado a hora de agressor e agredido, defraudador e defraudado, assaltante e assaltado se olharem nos olhos mais uma vez, só que agora, não como senhorio e escravo, mas sim, como irmãos em Cristo.

Paulo deseja ardorosamente que este reencontro aconteça. Afinal, além de ser o “pai” espiritual de ambos, tornou-se amigo pessoal de cada um deles, conhecendo o coração generoso de seus filhos na fé.

Deus sempre tem um plano meticuloso para a vida do homem. Nossos dias são escritos no seu livro antes mesmo que nossos ossos estejam formados no ventre. O Senhor deseja que caminhemos linearmente rumo aos seus propósitos, mas, respeita nosso livre arbítrio. Seguimos nossos instintos e acabamos encurralados num emaranhado de erros que prendem nossos pés e impedem a jornada. Assim, fazemos paradas não planejadas, estagnamos em trechos transitórios e passamos a viver de situações improvisadas e lugares inóspitos.

Porém, Deus não desiste de nós, e também se embrenha em nosso mundo tortuoso, ganhando passos a nossa frente, facilitando “encontros” na beira do caminho. Por mais perdido que estejamos, basta olhar em volta com um pouco de atenção para perceber que Deus está lá, nos aguardando com um sorriso no rosto.

A história de Filemom e Onésimo é uma prova incontestável desta verdade. Onde olhares incautos apenas identificarão uma série de coincidências, é possível constatar o trabalhar detalhado e perfeccionista de Deus.

Filemom era um homem de posses, que se converteu ao evangelho após a incursão de Paulo na cidade de Colossos. Seu envolvimento com a obra de Deus foi notório e digno de elogios, já que era ativo na proclamação do Evangelho, cedendo sua casa para que uma igreja fosse estabelecida ali. Sendo muito rico e vivendo sob a égide do Império Romano que dava legalidade a escravidão, Filemom, era sim, dono de diversos escravos.

Onésimo é historicamente lembrado como um dos maiores líderes da igreja de Efésio. Mas aqui, aparece apenas como um dos escravos de Filemom. Por algum motivo não relevado, Onésimo fugiu para Roma, aparentemente levando consigo alguns valores e causando grande prejuízo ao seu senhor. Acabou preso, sendo conduzido a uma prisão. Foi exatamente neste período de sua vida, que o escravo fujão passou a conviver com um prisioneiro ilustre chamado Paulo.

Não sabemos ao certo se ambos dividiram uma cela em Roma, ou se conheceram em Éfeso, quando Paulo esteve preso pela primeira vez. Certo é, que Onésimo também aceitou o Evangelho de Cristo, se tornando um colaborador ministerial de Paulo, que por sua vez era o mentor espiritual de Filemom, por quem também nutria grande amizade.

Coincidência?

Há um ditado popular que diz: “O amigo de meu amigo é meu amigo”. Agora, Paulo possui vínculos fraternais com duas pessoas que conservam entre elas uma rusga do passado. O apóstolo vislumbra a oportunidade de usar sua influência junto a ambos, para pôr um fim definitivo a esta questão.

A carta enviada para Filemom é mais pessoal das epístolas paulinas, já que é basicamente um pedido particular do apóstolo a seu amigo, afim que o mesmo perdoe seu “também” amigo Onésimo.

Teria o escravo aproveitado um momento de distração do senhorio que ouvia atentamente as palavras de um missionário para fugir? Quem sabe! Mas, quais seriam as reais possibilidades deste mesmo missionário ser preso por amor a Cristo e acabar dividindo sua cela com um escravo foragido de uma das casas onde ministrou meses atrás?

Tudo estava engendrado pelo Senhor, e a perseverança de Paulo foi o ponto de equilíbrio numa história que parecia ser trágica e vertiginosa.

Em sua liberdade, Paulo fez um amigo chamado Filemom, e a igreja de Colosso ganhou um excelente obreiro. Em prisão, desenvolveu amizade com Onésimo, e a igreja de Éfeso ganhou um bispo. Deus revela-se perfeito em seus encontros, nem que sejam nos mais inesperado dos lugares.

Esta bela história de reconciliação só foi possibilitada porque alguém se pôs como um pacificador em meio a desavença. Em Mateus 5:9, Jesus salientou que apenas os “semeadores da paz” podem ser chamados “Filhos de Deus”. Paulo não se omitiu desta responsabilidade. Ele se fez um representante do Reino dos Céus, apresentando a partes rixosas uma alternativa ao litigio humano. A Lei do Amor.

Eu sei que você está desconfortável com este texto. Eu também. Ninguém gosta de abrir mão de direitos adquiridos para beneficiar um infrator. Não parece justo. Mas, a grande verdade, é que se não existisse esta lei espiritual, teríamos muitos processos a responder. Jesus a aplicou em nós, e por isso, fomos inocentados. Ele assumiu os prejuízos. Amor.

O livro de Jó registra a mais longa conversa entre Deus e um ser humano. O patriarca foi atingido por um caos sem precedentes. Tentando justificar a própria condição, apresentou aos Senhor todos os seus argumentos. Deus o ouviu atentamente, e depois, respondeu veementemente cada uma das indagações. Ao final da conversa, Jó compreendeu que sua visão limitada não podia compreender a grandeza dos planos divinos. Sua parte nesta relação, era de fato se submeter a vontade do Senhor.

Porém, Jó apresentou diante do Todo Poderoso, um argumento que de fato repercutiria na eternidade. Jó admitiu sua pequinês diante de Deus, mas clamou por maior justiça nesta relação: 

- Não é homem como eu, para que eu lhe responda e nos enfrentemos em juízo. Se tão-somente houvesse alguém para servir de árbitro entre nós, para impor as mãos sobre nós dois, alguém que afastasse de mim a vara de Deus, para que o seu terror não mais me assustasse! Então eu falaria sem medo; mas não é esse o caso (Jó 9:32-35).

O patriarca percebeu que jamais poderia olhar nos olhos de Deus, pois as diferenças entre eles eram infinitas. Na sua análise, era necessário um mediador que se pusesse entre os dois. Alguém que possuísse compreensão do plano divino, mas, também tivesse conhecimento prático da condição humana.

Uma analogia bem simples pode ser encontrada na cozinha de nossas casas. Quem faz um bolo, tem total controle sobre a receita, escolhe e prepara os ingredientes, trabalha a massa e dá formato. Aquece o forno na temperatura que desejar e define quanto tempo a massa deverá ficar no fogo. Em suma, o cozinheiro conhece plenamente o bolo. Sabe do que é feito, porque foi ele quem o fez. Sabe quanto tempo de aquecimento é necessário e conhece o passo a passo da receita, consciente do que virá depois. Porém, o cozinheiro nunca saberá como é estar “dentro do forno”. Ele fez o bolo, mas “não é” o bolo.

Exatamente por isso, o verbo se fez carne e habitou entre nós (João 1:14). Para entender a lógica humana, Deus se fez homem.  

O mediador pode ser entendido como alguém que se torna responsável pela conciliação de partes conflitantes. Ele se torna um elo que junta metades antes partidas. Na história de Filemom e Onésimo, o apóstolo Paulo surge como o intermediário que une desafetos com laços fraternais. Podemos observar nesta história, uma belíssima tipologia para entendermos o papel de Cristo na reconciliação do homem com Deus.

Vale lembrar que Onésimo pertencia a Filemom, porém escolheu se afastar de seu senhor. Assim, podemos dizer que um representa o PAI abandonado, e o outro, se torna o filho rebelde. Longe da casa, Onésimo se envolveu em situações extremadas que culminaram na sua prisão. Naquela cela úmida, ele amargaria dias de solidão e ostracismo, pois ninguém se interessaria em intervir por um homem sem posses e com histórico de escravidão.

Milagrosamente, naquela cela, ele se encontrou com um homem culto e muito bem relacionado, que por amor, “escolheu” ser um prisioneiro do Evangelho. Paulo tomou conhecimento da história de seu novo companheiro de cela, e se identificou com o sofrimento alheio, pois também estava vivendo uma situação semelhante, partilhando do mesmo teto, do mesmo chão e do mesmo ar.

O detalhe, é que este prisioneiro elitizado, também tinha vínculos muito profundos com o senhorio lesado por Onésimo. O autor da denúncia.  O homem que podia lhe devolver a liberdade. O detentor do perdão remidor. Paulo falava a língua do senhor e o dialeto do escravo. Ele tinha a capacidade de olhar ambos nos olhos, com a mesma ternura e compaixão. O apóstolo, então, agiu para que a reconciliação acontecesse.

Ele escreveu uma carta a Filemom, capaz de amaciar até o coração mais enrijecido. Nela, as novas qualidades de Onésimo são apresentadas, já que o escravo se tornou um obreiro útil e produtivo. As ações de Paulo foram responsáveis pela transformação do caráter daquele homem, que deixando as agruras do passado para traz, havia se tornado um cristão cheio de Deus.

Paulo pediu que Filemom liquidasse as pendências recebendo de volta em sua casa o escravo foragido. Com isso a lei dos homens seria cumprida. O apóstolo também autorizou que qualquer valor financeiro devido por Onésimo, fosse imediatamente transferido para sua conta pessoal. Uma vez que as dívidas tivessem sido pagas, então Onésimo deveria ser promovido a “irmão”. Não deveria ser tratado como escravo.

Jesus também interpelou ao Deus Pai por cada um de nós, pagando o preço de nossos pecados e nos resgatando da escravidão. E foi muito além: - Já vos não chamarei servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhecer (João 15:15).


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