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quinta-feira, 30 de março de 2017

Voz que clama no deserto

Nós poderíamos ser muito melhores se não quiséssemos ser tão bons.
(Sigmund Freud)


Azul. Esta era a cor do letreiro luminoso estalado na igreja onde passei minha infância. Era muito bonito. Uma novidade tecnológica para época. Não era grande, mas, podia ser visto de longe. As sombras da noite tinham a petulância de esconder as letras escuras pintadas na parede. Porém, nada podiam fazer contra a luz. Bastava olhar para ela, e qualquer transeunte desavisado entendia a mensagem. Aquela era uma igreja evangélica. Deus era louvado naquele templo, e manifestava sua presença na casa.

O evangelista João abre seu testemunho não deixando dúvidas quanto a origem divina de Jesus: - No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram criadas por Ele, e sem Ele nada que foi criado existiria. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandeceu na escuridão, mas a escuridão não compreende a luz (João 1:1-4). 

A encarnação do próprio "DEUS" consumada em Jesus, é de fato, um evento grandioso demais para ser entendido por mentes puramente naturais. É preciso uma revelação especial. E exatamente por isso, João – o discípulo amado, faz uma poética introdução de seu homônimo, João – o Batista: - Embora ele não fosse a “LUZ”, veio para apresentar a “LUZ” aos homens, afim de que saíssem da escuridão (João 1:6-8). 

Mateus, por sua vez, recorreu aos livros proféticos do Antigo Testamento, para provar aos seus leitores que, João – o Batista, era de fato, a “VOZ” predita pelos profetas, e que anunciaria ao mundo a chegada do Emanuel: 

- E, naqueles dias, apareceu João Batista pregando no deserto da Judeia, e dizendo: Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus. Porque este é o anunciado pelo profeta Isaías, que disse: Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas (Mateus 3:1-3).

João e Jesus. Primos consanguíneos. Líderes formadores de discípulos inflamados. Esmiuçadores de paradigmas. Oradores de uma mensagem que mudaria o mundo para sempre. O portador da luz e a própria luz. Enquanto João escolheu o deserto como altar, Jesus honrava sua família terrena levando uma vida pacata em Nazaré, ocupando como filho mais velho, as atribuições do saudoso José no patriarcado da casa. Jesus ainda estava encoberto pelo anonimato quando João se tornou uma figura pública de grande destaque e influência. Porém, no tempo de Deus, João escolheria “diminuir” para que seu primo mais ilustre pudesse “crescer”.

Mas, Miquéias, porque um texto sobre João Batista começou com uma lembrança nostálgica sobre letreiros luminosos em igrejas? 

Explico. Hoje, as igrejas investem muito mais em publicidade que nos tempos de minha longínqua infância. E a nova moda, ao que me parece, é ostentar nas marquises dos templos, imensos painéis, onde o rosto do líder máximo da organização ocupa um terço do espaço físico, e o nome de Jesus disputa posição com as demais informações disponibilizadas no painel. Por vezes, é preciso um grande esforço visual para encontrar alguma menção a Deus ou Cristo. Parece que estamos brincando de “Onde está Wally?” com o nome de Jesus. Que triste isso. No evangelho moderno, Jesus parece cada vez menos importante. Aos olhos de um povo avido por idolatrar seus profetas e apóstolos, o homem cresce, e Deus diminui. 

Neste cenário de apostasia, temos muito a aprender com a humildade de João. Um pequeno letreiro iluminado, que não tentou ofuscar a própria luz.

Predito por Isaías com 700 anos de antecedência, e posteriormente confirmado por Malaquias, o nascimento de João foi sem dúvidas, a realização de um grande milagre. Seus pais já estavam em idade bastante avançada quando um anjo apareceu para Zacarias, enquanto este oferecia incenso no templo, e o anunciou que ele finalmente seria pai. E seu filho seria o precursor do Messias. O velho sacerdote foi tão impactado pela visão angelical, que acabou perdendo a fala.   

Zacarias era sacerdote e sua esposa Isabel pertencia a sociedade das “Filhas de Arão”, também provindas de linhagem sacerdotal. Durante a miraculosa gestação, Isabel se hospedou na casa de Maria, com a qual tinha parentesco, e que também já estava gestante de Jesus.  No encontro, enquanto as mães eram visitadas pelo Espírito Santos, João se agitou no ventre, como se já reconhecesse seu “primo” como o prometido Salvador. Na interpretação de estudiosos do evangelho de Lucas, João (cujo nome fora indicado pelo anjo), foi nazireu de nascimento.

O voto dos nazireus os restringia de beber vinhos ou qualquer outra bebida forte. Também deveriam deixar o cabelo crescer e não poderiam aparar a barba. João, porém, escolheu um caminho ainda mais asceta, vivendo de forma resignada. Após a morte dos pais, iniciou seu ministério público na Judéia, conclamando os judeus ao arrependimento. Todos deveriam estar preparados para a chegada do Messias.

Sua figura era pitoresca, mas, a mensagem que trazia era ainda mais impactante. João passou a habitar no deserto, se alimentando exclusivamente de gafanhotos e mel silvestre. Suas vestes eram feitas de pele de camelo e cingidas por um cinto de couro. E suas palavras eram acidas e lacerantes:

 - Raça de Víboras – Exclamava ele a seus ouvintes. – Quem ensinou vocês a fugirem da ira que está chegando? 

Com esta indagação inquietante, João iniciava seus discursos cada vez mais populares. Sua pregação era toda centralizada num chamado para a produção de “frutos de arrependimento”. João se identificava como sendo a “voz que clamaria no deserto” anunciada pelos profetas. Ensinava seus discípulos a não se apegarem ao fato de serem filhos de Abraão, pois até mesmo das pedras, Deus poderia constituir para si uma nova família. Segundo ele, o machado já estava posto na raiz para cortar toda árvore infrutífera e lançá-la ao fogo. Porém, este discurso duro e incisivo convergia rapidamente para uma mensagem de fé e esperança:

Eu batizo vocês com água para arrependimento, mas depois de mim virá alguém, e Ele vos batizará com Espírito Santo e com fogo. E eu não sou digno nem mesmo de amarrar seus sapatos (Mateus 3:7-11). 

Apesar da enorme humildade de João, foi Jesus quem o procurou para também ser batizado. Centenas de pessoas procuram João diariamente para descer as águas batismais, após confissão de pecados. O batismo era um rito já praticado no judaísmo, porém, João encontrou no gesto de submergir uma pessoa em águas, uma forma de externar arrependimento e realizar uma confissão pública de fé, fosse o candidato judeu ou gentil. Com isso, recebeu o título pelo qual é até hoje lembrado: “João, o Batista”. Embora Jesus não precisa passar por este procedimento, fez questão que João o batizasse, afim de cumprirem a justiça de Deus.

Durante a cerimônia, João viu os céus abertos e o Espírito repousar sobre Jesus em forma de pomba, enquanto a voz de Deus bradava: - Este é meu filho, e nele tenho prazer.  Acredita-se que João tenha tido cerca de trinta discípulos, aos quais orientou a seguir Jesus. Entre eles, dois se destacaram entre os doze apóstolos: João e André. Ao contrário de muitos pastores hodiernos, que se engalfinham por ovelhas que já estão no aprisco, ele fez questão de transferir para a cruzada do Messias, os seus melhores soldados. Sabia que o Reino precisava crescer. Seu ministério pessoal era apenas uma ferramenta de Deus operando para a glória Cristo.

Sobre seu “primo”, Jesus testificou que entre os nascidos de mulher, João era o “maior”, superior a todos os profetas que o antecederam (Mateus 11:11). O que destaque João numa galeria tão distinta, é que homens como Isaías e Miquéias apontavam para o Messias vindouro, e João, apresentou o Cristo presente. Assim que foi batizado por João, Jesus se dirigiu ao deserto onde durante quarenta dias foi bombardeado por todo tipo de provação. Após ser tentado no deserto, Jesus retornou a Betânia para iniciar seu ministério público, e ao avistá-lo, João testificou dizendo:  Aí está o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (João 1:36). Esta foi a primeira indicação publica de que Jesus era o Messias Prometido, e coube a João, a honra de apresentá-lo ao mundo.

Enquanto tudo está escuro, a chama de uma vela se destaca no breu. Porém, quando o sol alcança seu auge, a chama da vela sucumbe a uma luz superior. É muita pretensão para a lanterna, querer brilhar mais que o sol do meio-dia. Agora, Jesus seria o maior pregador da Galileia. E João, sequer, cogitou a possibilidade de uma competição pública sobre qual deles seria o “mensageiro de Deus” com maior popularidade. 

Ele sabia que não se compete com Jesus. Já seria uma imensa honra, se pudesse ajoelhar aos pés do Messias, e amarrar suas sandálias.

João, então, mudou o foco de seu ministério. Depois de pregar ao povo comum, havia chegado a hora de impactar a elite social de Israel, mesmo que sua mensagem não fosse bem aceita ali. A voz que clamava no deserto, passou a clamar nas cidades. E o resultado não foi nada bom para o resignado profeta. A exposição pública pode ser uma armadilha para homens portadores de uma mensagem que confronta o mundo. Entendeu a dica? O deserto é uma trava de segurança, que nos protege de nosso próprio ego.

Quando Herodes se casou com a própria cunhada Herodides, esposa de seu irmão Felipe, João Batista, criticou publicamente os pecados da casa real, causando desconforto no palácio. Embora a consciência cauterizada de Herodes Antipas I pouco se impostasse com as acusações de João, ele acabou decretando sua prisão para acalmar os “ânimos” da casa. 

João Batista foi preso em Peréia, acusado de incitar uma rebelião e levado a fortaleza de Macaeros, onde permaneceu encarcerado por dez meses, até ser condenado a morte.  

Após sua prisão, João Batista nunca mais pregaria em público novamente. Enquanto Herodes o mantinha encarcerado para “evitar” tumultos entre o povo, Herodides tinha planos bem mais aterradores. Durante um banquete de aniversário, quando o rei já estava sob o efeito do vinho, aquela mulher perversa fez com que sua filha Salomé (sobrinha de Herodes), adentrasse ao salão e dançasse sensualmente para o tetrarca. Inebriado com a beleza da moça, Herodes prometeu em público, que daria para ela qualquer presente que pedisse. Devidamente instruída por sua mãe, Salomé pediu ao rei que a presenteasse com a cabeça de João Batista numa bandeja de prata. Mesmo a contragosto, Herodes cumpriu com sua palavra e ordenou a execução de João.

Nos meses em que esteve preso, João Batista viveu momentos de terríveis convulsões emocionais. A prisão foi para ele, o que a caverna tinha sido para Elias. Por um instante, chegou até mesmo a duvidar de seu próprio ministério. Pediu para que alguns de seus discípulos fossem até Jesus em busca da confirmação de que Ele era mesmo o Cristo, ou se ainda haveria outro por vir. 

João sabia que o Messias viria ao mundo para implantar um Reino de Justiça, e agora, sendo ele mesmo uma peça fundamental deste reinado, estava injustamente preso, aguardando que se cumprisse a infame sentença capital. João se sentiu injustiçado, e talvez, até tenha interpretado que Jesus pouco se importava com esta condição. Afinal, um homem que transformava água em vinho poderia facilmente abrir as celas de uma prisão.

Mesmo sendo o “maior” entre o homem, João não estava imune ao medo e a frustração, tão inerente a condição humana. Ele havia dedicado sua vida em prol de uma causa santa, e agora seria recompensado com a morte.

A resposta de Jesus aos discípulos de João não foi dada apenas com palavras, e sim com ações: Jesus respondeu: “Voltem e anunciem a João o que vocês estão ouvindo e vendo: Os cegos vêem, e os coxos andam; os leprosos são limpos, e os surdos ouvem; os mortos são ressuscitados, e aos pobres é anunciado o evangelho. E bem-aventurado é aquele que não se escandalizar em mim (Mateus 11:5-6). 

Os discípulos voltaram maravilhados com o que viram e ouviram, e compartilharam com João tudo o que Jesus estava fazendo. E então, o seu coração arredio se apaziguou. Tudo tinha valido a pena. A voz que clamava no deserto tinha honrado o propósito da sua existência.

João teve a real compreensão do Reino dos Céus, e entendeu a plenitude de sua justiça. Perfeita e atemporal. A morte não silenciou a mensagem do Batista, pois o sucesso de seu ministério é evidenciado na obra do próprio Cristo, de quem fora escolhido por Deus como antecessor. 

João morreu em paz, absolutamente convencido que em Jesus, toda a sua vida havia valido muito a pena. Ele, João foi o último profeta da Antiga Aliança, sendo o único que presenciou em loco o pleno cumprimento das profecias messiânicas, além de participar ativamente do ministério de Cristo, batizando-o no Jordão e até mesmo compartilhando discípulos. Em João, se encerra o ministério profético do Antigo Pacto, e a profecia passa a existir como dom.

Uma das características mais interessante do ministério de João Batista, é que nas palavras do anjo que anunciou seu nascimento, ele viria no “espírito de Elias”. Muitos especulavam que João Batista era na verdade o profeta Elias reencarnado, assim como alguns acreditavam que Jeremias era a reencarnação de Moisés. Porém, a interpretação correta da expressão “no espírito de Elias”, seria algo como, “na virtude de Elias”, ou ainda, “no mesmo propósito de Elias”. 

Ambos tiveram ministérios muito parecidos, se vestiam de forma similar, e denunciaram os pecados da família real, enfrentando severa perseguição por causa de suas mensagens impetuosas.  Porém, a maior semelhança entre os dois profetas é exatamente o legado de avivamento deixado.

Elias viveu num tempo de idolatria generalizada, e conclamou os israelitas a se arrependerem de seus maus caminhos e se voltarem para Deus. João Batista nasceu numa época de religiosidade apostatada, e incitou os judeus ao pleno arrependimento, afim de receberem o Cristo que estava por vir. Podemos dizer que após Elias, o mundo nunca mais foi o mesmo, e uma nova revolução espiritual foi provocada em escala mundial através da mensagem de João, dividindo a história em duas partes. Ambos foram chamados para trazer os filhos de volta para a Casa do Pai, e através deles, corações foram convertidos e o Senhor encontrou morada entre os homens (Lucas 1:17).

Os dois ministérios terminaram de forma similar, com os profetas sendo levados ao céu. Mesmo que transporte usado por Elias tenha sido um redemoinho de fogo, enquanto o de João Batista, foi lamina de um machado. Em ambos os casos, os profetas nos deixaram, mas por meio deles, Deus permaneceu entre os homens. A chama da vela se apagou, mas, sua luz nunca deixou de brilhar!

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