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quinta-feira, 2 de março de 2017

Bem-Aventurados!

Não existe um caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho.
(Thich Nhat Hanh)


O famoso “Sermão da Montanha”, pode ser considerado o A-B-C do cristianismo. Nele, somos discipulados nos requisitos primordiais para o ingresso definitivo no Reino dos Céus.

É preciso compreender que Jesus, enquanto homem, foi um dedicado estudante da lei mosaica, e seu domínio do Talmude era reconhecido até mesmo pelos líderes da sinagoga de Nazaré, que se assentavam para ouvir seus ensinamentos (Lucas 4:16-30). Jesus dominava os preceitos da Torá e esmiuçava em detalhes os relatos dos profetas antigos desde a mais tenra idade (Lucas 2:41-52). Agora, com seu ministério público a todo vapor, Jesus ansiava por revelar aos seus discípulos uma nova visão sobre a lei, obscurecida por uma religiosidade corrompida.

Cristo era um cumpridor da lei, e este é um fato inquestionável. Jesus respeitou a cultura local, cumpriu rituais da religião judaica e pagou os impostos devidos a Roma. Porém, como parte de sua missão, veio para corrigir pontos falhos desta mesma lei, e dar uma dimensão espiritual para conceitos até então, apenas materiais (Mateus 5:48). A lei instruía, fiscalizava e punia ações praticadas, mas Jesus estava preocupado em conscientizar as pessoas sobre as “intenções do coração”. Um conceito que embora esquecido pelos religiosos, estava estabelecido desde o Antigo Testamento (I Samuel 16:7).

Se os evangelhos são um resumo histórico biográfico da vida de Cristo, podemos dizer que o “Sermão da Montanha” seja a síntese de toda a sua mensagem. Embora Lucas cite alguns trechos deste grandioso discurso, Mateus parece transcrevê-lo na íntegra, tornando seu texto numa base obrigatória para qualquer discipulado cristão. Ele relata que uma grande multidão se agrupou em torno de Jesus, a fim de ouvi-lo.  Aquela audiência era formada por pessoas vindas de todas as partes da Judeia, inclusive, da capital Jerusalém, além de muitos viajantes oriundos da costa marítima de Tiro e Sidom. 

Grande parte desta gente estava enferma, e almejava uma cura. Outros tantos eram atormentados de espírito e buscavam libertação. Todos tentavam desesperadamente “tocar” em Jesus, a fim de receber sua virtude. Então, para ter uma maior abrangência, Cristo se dirigiu a uma região montanhosa, escolhendo ali um lugar “plano”, criando assim um tipo de “anfiteatro improvisado” (Mateus 5:1 / Lucas 6:17). Os discípulos de Jesus se assentaram a sua volta, e Ele começou a ensiná-los. 

Mais do que receber o peixe, Jesus ansiava que aquela multidão aprendesse “pescar”. Pela primeira, vez Cristo se dirigia a um mundo legalista e imerso em religiosidade vazia, clamando em alto e bom som por uma mudança de comportamento social e religioso, que deveria passar primeiro pela reforma do próprio pensamento humano.

Seus seguidores são ensinados a pensar com a mentalidade do Reino dos Céus, priorizando o “eternal” em lugar do “efêmero”. O “celestial” ao invés do “terreno”. E é aí, que reside a dificuldade da prática diária de tais ensinamentos, já que seu fundamento básico é levar o indivíduo a deixar de ser “quem ele é”, e se tornar “quem Deus deseja que ele seja”. A renúncia pessoal é a maior característica dos integrantes do Reino dos Céus, o princípio básico de todo ensinamento de Jesus. Quem deseja se engajar em sua “causa santa”, imediatamente se coloca na contramão do fluxo natural do mundo, nadando contra a forte correnteza.

Ser cristão, é se opor a um sistema dominante, o que certamente, colocará um alvo em nossas costas, nos fazendo vítimas de ataques diários e incessantes. Por vezes, mortais. E segundo o próprio Cristo, está iminência real de perigo, deve ser para nós, motivo grande de alegria. 

Tem como ser mais paradoxal? Pode crer que sim!

O termo “bem-aventurado”, que abre o sermão de Jesus, significa mais do que o estado emocional representado pela felicidade. Ele inclui um bem-estar espiritual, baseado na aprovação de Deus e na plena certeza que nossa felicidade está assegurada na eternidade, mesmo que a vida na terra nos reserve apenas sofrimento, abnegação e renúncia. Em seu sermão, Jesus nos ensina a sermos a luz num mundo de trevas e o sabor numa sociedade insípida. Em outras palavras, temos que ser diferenciais.

Amar os inimigos, orar pôr quem nos persegue, abençoar quem nos amaldiçoa, oferecer a outra face se alguém esbofetear nosso rosto. Cristo nos ensina que não existem recompensas para quem barganha o amor (amar por ser amado), ou utiliza a devoção como marketing pessoal. Deus nos vê em secreto (Mateus 5:46; 6:6). A lei punia o homicídio, mas agora Jesus equipara a calúnia ao assassinato. Se a religião condenava o adultério, Cristo vai muito mais fundo ao censurar os pensamentos lascivos (Mateus 5:21-28).

Deus requer que seu povo seja SANTO, e Cristo nos aponta o caminho da santificação (I Pedro 1:15-16 / Hebreus 12:14)). Santo vem de Kadoshi, que significa “separado” ou “consagrado”. O Senhor almeja que tenhamos uma vida diferente dos padrões estabelecidos pelo mundo, que tem seus sistemas e interesses dominados pelo maligno (I João 5:19). Deus deseja que tenhamos padrões morais, éticos e sociais, enquadrados na sua vontade, em conformidade com seus mandamentos. Somos sal da terra e luz do mundo, e jamais devemos perder o sabor ou sermos engolidos pelas trevas. Ser santo é ser diferenciado, é ter prioridades que valorizam o céu mais do que a terra.

Mesmo assim, enquanto estivermos aqui na Terra, não conseguiremos alcançar a perfeição, eliminar todas as nossas falhas e nos mantermos imunes a qualquer tentação. Se isso acontecesse, simplesmente criaríamos asas e voaríamos para o céu, pois o mundo já não poderia nos suportar. Infelizmente, ainda não é assim. Davi, no Salmo 103 louva ao Senhor por sua misericórdia, e acalenta corações frustrados por falhas e erros, dizendo: O Senhor conhece a nossa estrutura e sabe que somos feitos de pó (Salmo 103:14). Ciente de nossas limitações e impossibilidades, Deus busca encontrar perfeição em nossas imperfeições (Gêneses 17:1).

Não é possível igualar nosso padrão de santidade ao de Deus, afinal, o Senhor habita numa esfera intocável pelo pecado. Nós, por outro lado, vivemos rodeados de tentações e apostasias, agentes contaminantes e contaminadores. A mensagem de Cristo é capaz de estabelecer novos padrões de comportamento, que criam em nós, uma nova consciência, uma visão diferenciada, que nos permite enxergar o mundo e as pessoas pela ótica espiritual. Estamos no mundo, mas não somos do mundo. Não somos movidos pelo que se pode ver, mas sim, por aquilo que é invisível. Separados. 

Em Coríntios 13:8-12, Paulo nos afirma que hoje, temos que conviver com imperfeições, tendo um conhecimento parcial sobre tudo que é divino. Vemos a glória de Deus como se olhássemos por um espelho embaçado. Não somos plenos. Mas, em breve, tudo que é imperfeito se revestirá de perfeição, e conheceremos a Deus, como por Ele somos conhecidos. Neste dia, e somente neste dia, seremos santos, como Santo, Deus é.

Até lá, precisamos nos dedicar a um processo chamado “SANTIFICAÇÃO”, sem a qual, não se pode ver a face de Deus (Hebreus 12:14). Podemos entender a santificação como uma escada para chegar até a santidade. Cada degrau escalado, nos leva para mais perto da “estatura de varão perfeito”. Mas, esta é uma escada muito longa, que liga a terra aos céus. O primeiro degrau está na altura de nossos pés, aqui no mundo. O último degrau, está junto ao trono de Deus. Então, degrau a degrau, vamos nos afastando da terra, e nos aproximando do céu. Passo a passo.

Mesmo cientes, que em vida, nunca alcançaremos o topo da escada, iremos dedicar nossa existência na escalada. Um pouco mais perto a cada instante. Um pecado a menos todo dia. Um mandamento obedecido a cada vez. Uma tentação ignorada a cada passo. Um degrau acima a cada oração. A escalada requer paciência e muita persistência. Virtudes que faltam a grande parte da cristandade hodierna. Ai, temos um grave problema. Gostamos do primeiro degrau, e estacionamos nesta perigosa zona de conforto.

A grande (e dolorosa) verdade, é que, quando revistamos o Sermão do Monte, nossas ações e pensamentos são confrontados pela “legislação” do Reino dos Céus, e temos a compreensão de como ainda estamos distantes de cumpri-la com totalidade. Conhecemos "de cor e salteado" o texto de Mateus 7:13, e falamos com empolgação sobre a porta “estreita”, mas de fato, desconhecemos suas reais dimensões.

Ser cristão é nascer de novo, da água e do espírito (João 3:1-4). O nascimento da água pode ser entendido como um processo de purificação, onde o homem, através de sua fé em Cristo, é limpo de todo seu pecado e lavado pelo Sangue de Cristo, símbolo máximo da Aliança Neo Testamentária (I Coríntios 11:25). Já o nascer do Espírito remete a uma mudança completa na forma de pensar e agir, quando o velho homem é crucificado com Cristo, amortizando assim a vontade da carne e dando vazão ao espírito que desde o princípio clama por Deus.

Esta transformação leva a um indivíduo a um novo estado de prioridades, onde elementos terrenos, antes causadores de tristezas e frustrações permanentes, são renegados a um status de inferioridade, sendo nossa mente ocupada por temas “eternais”. E se esperamos em Deus e no seu Reino, vivemos em graça e esperança, acalentados pelas promessas fieis de nosso Deus. Não existe felicidade maior.

Mas, não se iluda com o monetizado evangelho moderno, que barganha a fé e tabela milagres. Jesus não nos prometeu uma vida cor-de-rosa, livre de tribulações e afrontas. Pelo contrário, nos alertou sobre perseguições diárias e tribulações ferrenhas, além de nos enviar como “ovelhas para o meio de lobos” (Mateus 10:26). Porém, a beleza do evangelho é exatamente transformar o mal em bem, a dor em regozijo, a tristeza em alegria, a perseguição em honra, o perigo em galardão, a lágrima em sorriso, o agora na eternidade.

O genuíno discípulo de Jesus, encontra motivos para ser feliz mesmo nos dias mais tristes e cinzentos, pois a fonte de sua felicidade não é deste mundo. Ele está “seguro” em Deus. O alicerce da fidelidade é a convicção, e esta é por sua vez, o mais evidente fruto da fé genuína. Logo, é impossível desvincular uma da outra. Uma verdade intrínseca em cada página da Bíblia e explícita na história de seus mais importantes personagens.

Homens fiéis são dotados de grande fé, e esta fé gera a convicção exigida para que a fidelidade se mantenha intacta. Nisto se constroem as bases da felicidade plena. O anônimo escritor da epístola aos Hebreus não apenas define o conceito “FÉ” com perfeição (Hebreus 11:1), como também apresenta uma extensa lista de homens e mulheres, que convictos de sua fé, mantiveram-se fieis ao Senhor em todos os momentos de suas vidas, e alerta: “sem ela (a fé), é impossível agradar a Deus” (Hebreus 11:6).  E foi exatamente por intermédio do “firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que ainda não existem”, que os antigos heróis da fé, ainda nos inspiram e testificam do grande poder de Deus.

A fé, aliada a fidelidade, levou Abel ao oferecimento de um sacrifício puro e verdadeiro. Enoque andou com Deus em tempo integral até ser transladado. Noé construiu uma arca para sobreviver ao dilúvio, mesmo ainda não havendo chuvas no céu. Abraão foi chamado “Amigo de Deus” e habitou na terra da promessa, assim como seus descendentes Isaque e Jacó, sendo pai de uma nação, ainda que sua esposa Sara estéril. Fé e fidelidade nortearam a família, com bênçãos sendo ministradas de pais para filhos, até que o número dos seus não pudesse mais ser contado. Por fé, Moisés abdicou de uma vida no palácio para viver no deserto, conduzindo seu povo de volta para a terra da promessa. Por fé, Raabe, por generosidade acolheu os espias hebreus, e por conta deste ato, sobreviveu a queda dos muros de Jerico. Hebreus 11 ainda lista outros exemplos de homens fidedignos, tais como Gideão, Baraque, Sansão, Jefté Davi, Samuel e outros profetas, os quais pela fé venceram reinos, praticaram a justiça, alcançaram promessas, fecharam as bocas dos leões, apagaram a força do fogo, escaparam do fio da espada, da fraqueza tiraram forças, na batalha se esforçaram, puseram em fuga exércitos poderosos e as mulheres receberam pela ressurreição os seus mortos. Como a fidelidade é recompensadora não? 

Mas, às vezes, ela nos leva a testes ainda mais intensos, onde a fé e a convicção são exigidas em sua plenitude. O escritor aos Hebreus, que até então narrava aos atos portentosos de homens que estavam convictos de sua fé, passa agora a narrar feitos ainda mais impressionantes. Pela Fé, e por Fidelidade, alguns foram torturados, abrindo mão de seu livramento. Outros experimentaram escárnios, açoites e até prisões. Muitos foram apedrejados, serrados, tentados, mortos ao fio da espada. Andaram vestidos de peles de ovelhas e de cabras, desamparados, aflitos e maltratados, errantes pelos desertos, e montes, e pelas covas e cavernas da terra.

E todos eles, mesmo mantendo se fiel a sua fé, não alcançaram a promessa, mas morreram em paz e alegria, sabendo que o seu testemunho inspiraria muitas vidas. Somos aconselhados em Apocalipse 2:10 a sermos fieis até o fim, mesmo que este “FIM” seja a morte. Aqueles que assim procedem, recebem na eternidade, das mãos do próprio Cristo, a Coroa da Vida. Uma dádiva para quem chega no topo galgando cada degrau.

Um ponto chave no ensinamento de Jesus, é que as pessoas mais felizes deste mundo, são as pobres de espírito e famintas por justiça. Pobreza aqui, refere-se a um espírito desprovido de vaidades, orgulhos e autossuficiência. A verdadeira felicidade consiste na consciência de dependemos completamente de Deus. Basta lembrarmos das palavras do apóstolo Paulo em II Coríntios 12:9-10, que num momento de fraqueza, descobriu a eficiência do poder divino: - Por isso, por amor de Cristo, regozijo-me nas fraquezas, nos insultos, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias. Pois, quando sou fraco é que sou forte. Esta é, sem dúvidas, a maior das bem-aventuranças.

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