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terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Cara ou Coroa?

Somente aqueles que nada esperam do acaso são donos do destino.
(Matthew Arnold)


Em Gênesis 1:27-28 e 2:7, Moisés narra a origem do homem. Uma reunião celestial é convocada para projetar minuciosamente um ser capaz de dominar sobre as demais coisas criadas. Um designer é aprovado, um rascunho é elaborado, formas e texturas são pré-definidas. A matéria prima escolhida é palpável e tangível, e o processo de fabricação é artesanal.

Deus coloca a “mão na massa”, esculpe em argila o modelo projetado e sopra em sua narina o fôlego de vida. Seu nome agora é Adão, feito imagem e semelhança de seu criador, tendo dentro de si uma fagulha do próprio Elohim, um espírito dado por Deus e que deseja retornar para Deus.

Mas, a desobediência quebraria essa aliança. O homem passou a ter conhecimento do bem e do mal. O trabalho ficou cansativo. O parto se tornou doloroso. A terra produziu espinhos. A luz do dia revelou a vergonha humana e a escuridão da noite nos apresentou o medo. Deixaria o Senhor, que seu projeto mais bonito, permanecesse para sempre trancafiado numa gaveta fria e escura? Haveria uma oportunidade de reatar a comunhão entre terra e céus? Poderia o homem se aproximar novamente de Deus? 

É claro que sim. 

Basta querer...

O Salmo 42 é atribuído aos Filhos de Corá, remanescentes de uma família que foi engolida em vida pela terra, em decorrência de seu pecado (Números 27:11). Eles tinham experimentado em sua árvore genealógica, a fúria da justiça de Deus, bem como o beneplácito de seu amor. Erros e acertos são inerentes ao ato de viver. Sucessos e fracassos são faces opostas de uma mesma moeda que jogamos ao alto todos os dias. E basta uma leitura rápida do salmo, para perceber que o poeta não estava em seus melhores dias. No cara-ou-coroa da vida, ele tinha errado miseravelmente a mão. O escritor estava triste, e suas palavras revelam que naquele dia, a angústia tomava café em sua sala de estar.

A incredulidade que enegrece a alma dos homens fazia sangrar seu coração. Ele olhava a sua volta é só encontrava abismos. Verdadeiros buracos-negros surgiam voluptuosos nas pessoas a sua volta, retirando delas o temor, a fé e a caridade. O mundo parecia imerso em trevas, e qualquer facho de luz incomodava seus moradores. Dedos em ristes se voltavam para o escritor. Ele ouvia gargalhadas e palavras de afronta. Vozes obscuras e perniciosas invadiam seus ouvidos com uma indagação retórica carregada de sarcasmo e maldade: - Onde está o seu Deus? O poeta chorava angustiado. A tristeza era tamanha, que seus ossos chegavam a doer. Sua alma estava abatida, pois fora abraçada pelo medo, e agora se sentia sugada pelos abismos que a cercava. Desesperança, angustia e aflição. Seria ele vencido por este dia tenebroso?

Na sua famosa HQ “A Piada Mortal”, o quadrinista Alan Moore baseou todo o plano de seu vilão no seguinte conceito: - “Basta um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático”. A ideia do Coringa (sim, o palhaço criminoso de Gothan), era fazer com que o moralmente inabalável comissário Gordon, tivesse um dia tão terrível, ao ponto de enlouquece-lo por completo. Obviamente, com a intervenção providencial do Batman, o fragilizado policial manteve sua sanidade, apesar do caos vivenciado.

E no mundo real? Como podemos suportar os dias de turbulência, caos e desgostos, e mesmo assim nos mantermos centrados? Basta um dia ruim para roubar nossa fé? Com suportar com dignidade o implacável cara-ou-coroa da vida? Pois são estas as indagações que permeiam a mente do poeta. O encontramos em seu momento mais crítico. Ele está numa busca introspectiva por resposta. E a encontra, numa conversa franca com sua alma.

A origem da expressão “cara ou coroa” está nas antigas moedas portuguesas, que em um lado tinham gravada o rosto de uma personalidade importante, e no outro, o brasão conhecido como “armas da coroa”. Ainda hoje, para se tirar a sorte em relação a determinado assunto, joga-se uma moeda para cima, e as possibilidades são previamente definidas pela “cara” ou “coroa”. O lado da moeda que ficar exposto na queda, define a questão. Basicamente, se joga ao acaso o poder de uma decisão.
E não é isto que fazemos sempre? Conhecemos o certo, mas brincamos com o errado. Sabemos a resposta, e mesmo assim, nos arriscamos numa roleta russa com as incertezas. Existem questões que são simples de entender. A escuridão nada mais é do a ausência da luz. O desespero é a ausência de esperança. A aflição é a ausência da paz. O mal é a ausência do bem. A sede é a ausência de água.

Sede? 

Sim! O poeta percebe que a origem de sua aflição não estava no mundo que o cercava, mas na turbulência existente em seu interior. Uma alma distante de Deus, é uma alma infeliz. E você pode jogar mil moedas para o alto, que nenhuma lhe dará uma resposta alternativa satisfatória. Só existe um caminho. Esqueça a moeda, e foque-se apenas no “alto”.

No ponto exato entre o “agora” e a “ruína”, o salmista clamou por socorro. - “Assim como a corça anseia por águas correntes, a minha alma anseia por ti, ó Deus. A minha alma tem sede do Deus vivo” (Salmo 42:1-2).  A alma do salmista estava com sede. Sedenta por algo que não se encontra na Terra. Aliás, ainda que não queira aceitar, toda a humanidade tem sofrido da mesma sede desde os primórdios de sua história. Desde que saiu do Jardim.

O salmista sabia desta carência, conhecia sua necessidade. - A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo – Dizia ele. - Quando poderei entrar para apresentar-me a Deus? E então, introspectivo, o poeta conversa consigo mesmo, e aconselha: - Por que você está assim tão triste, ó minha alma? Por que está assim tão perturbada dentro de mim? Ponha a sua esperança em Deus! Pois ainda o louvarei; ele é o meu Salvador e o meu Deus. 

O homem só alcançará paz em seu espírito, quando Deus voltar a ser o centro de sua vida.

Queremos decidir o nosso destino no cara-ou-coroa da vida. Mas, esta nunca foi uma opção. Desde o Éden sabemos o que é preciso, e mesmo assim, jogamos com as possibilidades. Confiamos em nosso instinto, e ele sempre dá vazão a carne, sufocando nosso espírito. O resultado desta avalanche materialista é a inquietação da alma. Dias ruins. Dias sem paz. Tempos de caos e desesperança, que nos levam para a beira de um abismo chamado loucura. Neste caso, basta apenas um dia ruim, para o salto sem volta.

E se ao invés de jogarmos uma moeda para cima, entregando ao acaso nosso destino, confiássemos ao Senhor as grandes decisões da vida? Ele sabe mais do sabemos. Pode mais do que podemos. Antes de confirmar que a moeda deu “cara”, que tal olhar para a face de Deus, ouvir sua voz e confiar no seu querer? E para que escolher a “coroa” de uma moeda, se podemos aceitar sobre nós os desígnios de um rei? O Rei dos reis.

Dia ruins com Deus se tornam dias bons. Dias bons com Deus se tornam em dias perfeitos. Dias perfeitos sem Deus, se tornam em dias tenebrosos. Não é sábio procurar respostas que retirem o Senhor da equação. Não é prudente brincar com possibilidades, quando temos o Deus do impossível ao nosso lado. Não é viável matar a sede em fontes lamacentas, contaminadas e poluídas, quando existe água pura e cristalina a nossa disposição.

Se você está corroído pela ansiedade, soterrado pelas necessidades e desesperado pelo amanhã, ignore seus instintos.  Acalme seu coração em Deus. Siga o conselho de I Pedro 5:7, e faça desta atividade, uma rotina diária em sua vida: - Lançando sobre ele toda vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós!

Quanto a velha moeda da sorte, você pode joga-la na Fonte de Águas Vivas. Cristo. Lance a moeda nas águas, dobre os seus joelhos, feche os olhos e faça seu pedido na forma de uma prece. Depois, beba destas águas sem moderação. Mantenha sua alma hidratada de Deus. Neste caso, por mais desagradável que seja o dia, em seu interior haverá paz. 

Não acredita? 

Pergunte para sua alma!

sábado, 25 de fevereiro de 2017

A história de uma semente

A neve e as tempestades matam as flores, mas nada podem contra as sementes.
(Khalil Gibran)


Dentro do alforje, ela não passava de mais uma semente entre centenas de iguais. Não havia perspectivas e nem planejamentos. Estava fadada a passar dias a fio naquele recipiente escuro, abarrotada por outras centenas de sementes, tão desprovidas de propósito quanto ela mesma. Mas então, de repente, uma luz irrompeu na escuridão, e a mão do semeador abarcou uma boa porção. No imbróglio, a sementinha foi apenas mais uma a ser violentamente raptada de seu confortável habitat temporário.

Em outra época, ela havia desfrutado do aconchego de um doce fruto, da qual também foi extirpada por mãos humanas. Dali, foi levada ao sol por um tempo , e depois, encontrou novo refúgio naquela embalagem escura, porém acalentadora. O que seria dela agora?

As mãos que a arrebataram, foram as mesmas que dispersaram todas as sementes pelo chão, fazendo cada uma delas cair em uma cova profunda e escura (seja empático com a sementinha, ok!). Ali, pela primeira vez em toda a sua existência, ela estava sozinha. Pouco a pouco, foi sendo soterrada por uma montanha de terra. O peso do solo era esmagador contra sua casca. A pobre semente foi sufocada. Sua única opção era se conformar com o insólito destino, e ali, faminta, sedenta e solitária, esperar o fim chegar.

Então, tudo escureceu, e a pobre sementinha sucumbiu a desesperança. Ela pareceu morrer. Mas, sementes não morrem. Elas se transformam!

Quando despertou de seu sonho mórbido, a semente percebeu que já não era a mesma. Agora tinha um corpo. Suas pernas aprofundavam-se no solo em busca de água. E ela bebeu. Seus braços reviravam a terra adubada, desejosos por nutrientes. E ela comeu. Fortalecida, decidiu escalar a própria sepultura. E ela subiu, sem parar. Rompendo seu túmulo, conquistou bravamente a superfície. E viu o sol.

Suas forças se renovaram. E ela continuou crescendo... Pés e pernas se transformaram em raízes profundas. Braços se tornaram ramos, e depois em galhos. Pouco a pouco, ela retumbou triunfante como uma frondosa árvore.

Com o passar do tempo, a semente entendeu o propósito de sua existência.  Agora, ela era uma produtora de novas sementes. E frutos. Muitos frutos. Dela, os pássaros tiravam sustento e os homens obtinham sabor. Em cada um de seus frutos, dezenas de novas sementes prontas para reiniciar o mesmo ciclo. Se forem semeadas com o mesmo amor, as sementinhas também irão viver suas próprias histórias de transformação.

E foi assim, como uma semente, que Jesus Cristo, joia das primícias de Deus, desceu ao mundo e se lançou ao “solo” em forma de gente. O verbo se fez carne e habitou entre nós. O Filho de Deus, Senhor do Tempo e Ancião de Dias se limitou ao ventre de uma mulher por nove meses, para depois nascer pobre numa estrebaria de Belém, crescer numa carpintaria de Nazaré e exercer seu ministério sobre o sol escaldante da Galileia.

Amado pelos necessitados e esquecidos, Ele foi odiado pelos poderosos de sua época, até que numa tarde de sexta feira, morreu vituperado numa cruz. No madeiro, o Filho de Deus estava derramando até a última gota de sangue pela humanidade pecadora. Com sua morte, Ele nos assegurou abundância de vida. Jesus foi sepultado, e durante três dias seu corpo esteve silencioso nos recônditos de um sepulcro frio. Mas aquele momento de tristeza era apenas o epílogo da mais bela história contada:

Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só; mas, se morrer, produz muito fruto (João 12:34). 

Enquanto a semente esteve “morta” na terra, se arrebentou em raízes. Em apenas três dias a árvore brotou, e seus ramos nunca pararam de crescer, pois a ressurreição de Jesus desencadeou uma revolução espiritual que perdurará na eternidade. A árvore deu muitos frutos. Os frutos geraram novas sementes. Novas sementes caíram na terra e também morreram. Novas árvores nasceram. E produziram novos furtos. Novas sementes. Novas mortes. Novos recomeços.

Ao redor do mundo, inúmeras sementes são utilizadas como fonte de alimentação. Arroz, feijão, trigo e milho são alguns exemplos presentes em nossa cultura. Quando ingeridos pelo homem, provem sustento e nutrientes para seu consumidor e cumprem com nobreza o propósito de sua existência. Porém, se estas mesmas sementes forem plantadas numa terra boa, e cultivadas adequadamente, serão incontáveis as quantidades de seus rebentos, que ao seu tempo, também poderão repetir o mesmo ciclo e novamente se multiplicar exponencialmente.

Cristo foi a semente que originou esta grande árvore chamada “Igreja”, onde somos sementes potencializadas como agentes multiplicadores. Se preservarmos nossa vida dentro de nossas próprias vontades, seremos como a semente que cai na terra e permanece viva, sem gerar frutos para a posteridade. Mas se “morrermos” em Cristo, então realmente seremos transferidores de bênçãos eternais e produtores de frutos abundantes. 

Parafraseando o jornalista Franklin Martins, encontramos a raiz de nossas maiores esperanças: - Sempre que nos sentimos soterrados, sem saída e num buraco escuro, estamos entre a vida e a vida abundante! PERGUNTE A UMA SEMENTE.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Quando Deus se arrepende

Se alguém anseia pela sabedoria de Deus,
terá de renunciar à própria sabedoria e pedir a luz divina.
(João Calvino)


Noé pregou em um período de desmoralização social e degradação espiritual tão intensas, que Deus decidiu destruir a humanidade. Entretanto, uma chance de arrependimento seria dada ao homem, e Noé foi escolhido como portador de uma mensagem de salvação. Durante 120 anos, enquanto trabalhava em sua famosa ARCA, ele anunciava para toda gente, a destruição eminente. E apontava sua construção como o único meio de sobrevivência.

Numa análise superficial poderíamos dizer que Noé foi o pior pregador da história. Seu “ministério” durou mais de um século, ele só disponha de um único sermão e ninguém acreditou em sua pregação. Entretanto, quando Deus fechou a ARCA por fora, toda a FAMÍLIA de Noé estava dentro dela. Nenhum vizinho se salvou, nenhum compatriota creu, nenhum amigo lhe deu crédito. Mas, Noé salvou toda a sua família, e pela obediência de apenas oito pessoas, a humanidade não se extinguiu por completo (Gênesis 6, 7 e 8). 

Embora fascinante, a história de Noé nos aponta para um dos maiores dilemas teológicos existentes. Afinal, um Deus que segundo Números 23:19 e Malaquias 3:6, "não mente", "não se arrepende" e nem "passa por mudanças", neste caso, aparentemente, se "arrependeu" de sua maior criação.

- Então, arrependeu-se o SENHOR de haver feito o homem sobre a terra, e pesou-lhe o coração (Gênesis 6:6).

Para elucidar esta questão, em primeiro lugar precisamos entender que os desígnios do Senhor são inalteráveis, e que todos os seus planos, terão uma conclusão dentro do planejamento original, independentemente do ocorrido durante o percurso (Jó 42:2). É preciso ter em mente que Deus está numa linha temporal diferente da nossa. Enquanto vivemos o “CRONOS”, regulado por minutos, dias e anos, Deus habita no “KAIRÓS”, o tempo perfeito e completo, medido apenas de eternidade a eternidade.

Logo, nós aqui na terra, vivemos e analisamos os fatos de forma temporal, enquanto Deus visualiza passado, presente e futuro numa única perspectiva. Assim, em nosso entendimento, Deus pode até ter “mudado” seu modo operante, enquanto, na verdade, o desígnio continua intacto. Muda-se a ação imediata, mas o resultado a longo prazo será o mesmo. 

Quando olhamos para a Bíblia e nos deparamos com as expressões “Deus se arrependeu”,Deus voltou atrás” ou “Deus mudou de opinião sobre determinada questão”, estamos na verdade, enxergando uma postura de Deus diretamente relacionada as escolhas feitas pelo homem, e não reviravoltas mirabolantes no plano divino. Digamos que já existe “o ponto final", mas, quem decide como chegar lá, é a própria humanidade. Ou seja, Deus não muda, e de fato não se arrepende, mas, atua de formas diferentes dentro do “cronos”, dependendo da postura tomada pelo homem. Um belíssimo exemplo desta realidade, pode ser encontrado no livro do profeta Jonas.

Nínive foi uma das maiores cidades da Ásia, tornando-se a capital do poderoso império Assírio. Ganhou fama de sanguinária, pois era habitual que seus moradores invadissem e saqueassem outras regiões, matando com requintes de crueldade seus prisioneiros. Alguns métodos de tortura usais na cidade eram o decepamento de membros (mãos, pés, orelha), o vazamento dos olhos, o escalpo (retirado do couro cabeludo) e o depelamento (retirada da pele com a vítima ainda viva). Matavam seus inimigos os serrando ao meio ou jogando sobre eles óleo fervendo. Realizavam sacrifícios humanos a deuses pagãos e viviam imersos em feitiçaria, erigindo pirâmides com a cabeça das vítimas para demostrar seu poderio. 

A história de Jonas - “o profeta fujão” – é uma das mais conhecidas de todo Velho Testamento. Desde a mais tenra idade, aprendemos em classes de EBD, como este mensageiro de Deus, após ser incumbido de pregar a destruição de Nínive, embarcou num navio que ia na direção contrária, fugindo para Tarsis.  Porém, no meio do caminho, enquanto Jonas dormia tranquilamente no porão, uma tempestade de proporção épica se abateu sobre a embarcação. Os tripulantes desesperados, consideraram a tormenta como um presságio dos deuses, e iniciaram uma investigação entre os embarcados para saber quem havia causado tamanho furor em sua divindade. Lançando sorte, chegaram a Jonas, que acuado, assumiu a culpa pelo sofrimento de todos, e os aconselhou a lançarem-no ao mar. Foi quando um grande peixe o engoliu, e depois de três dias, vomitou o profeta na praia que tanto quis evitar. Finalmente, Jonas anunciou a mensagem de juízo. Saiu da cidade, sentou se sobre uma pedra e ficou esperando a destruição. Mas não foi exatamente o que aconteceu.  

Os moradores da cidade temeram aquelas palavras, e o rei ninivita conclamou um jejum de arrependimento, afim de que o poderoso Deus de Israel tivesse misericórdia deles. Homens, mulheres, crianças e até os animais, deixaram de se alimentar, num sacrifício vivo ao Senhor, buscando seu perdão e graça. Em resposta a esta ação voluntária, Deus suspendeu a terrível sentença. O profeta apregoou apenas o juízo para uma cidade perversa, anunciando a iminente destruição. Surpreendentemente, o povo ninivita, tomou uma posição de arrependimento, e aquela geração foi misericordiosamente poupada. Deus agiu com misericórdia e graça em virtude do quebrantamento espiritual daquela gente. 

Mas, a justiça de Deus não ficou esquecida nas prateleiras do tempo. Após 150 anos, um profeta chamado Naum, foi levantado por Deus para anunciar uma nova sentença contra a cidade (Naum 1:1, 3:1). E desta vez, Nínive caiu.

Em 612 AC, o rio Kusur transbordou, causando uma grande inundação que atingiu casas e palácios. Valendo-se do desespero ninivita, os caldeus invadiram a cidade, matando seus moradores ao fio da espada. A mensagem de Jonas se realizou piamente, em um tempo diferente do esperado. Dentro de nosso “cronos”, muitos anos se passaram. No kairós, o relógio sequer mexeu seus ponteiros. Pequenas intervenções temporais, não alteram o resultado eternal. Deus não se limita ao tempo. Nós sim. Se aos nossos olhos o Senhor parece ter mudado, Ele de fato, nunca mudou. Seus planos terão exatamente o fim que foi planejado. Os meios não alteram o final.

Numa alegoria simples, podemos dizer que os desígnios de Deus são como um rio caudaloso, e a ação humana, é uma pedra lançada nas águas. Ela até provoca ondulações localizadas que alteram o movimento da água num ponto especifico, sem alterar o curso do rio. O detalhe mais relevante, é que o rio segue, mas a pedra afunda. Nossas ações não alteram os planos de Deus para o universo, porém, determinam nosso destino.

Num aspecto mais abrangente, podemos citar o que muitos consideram o verso chave das escrituras, João 3:16 – “Por que Deus amou o mundo de tal maneira, que deu seu filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. ”  O plano de Deus aqui revelado, é que toda a humanidade creia em Jesus, e assim encontre a salvação. Ninguém modifica este princípio. A vontade primária de Deus jamais será alterada. Nenhuma força existente pode muda-la ou adapta-la. Mas, a decisão de crer ou não é pertinente a cada pessoa. Individualmente. Nossa escolha é a pedra. O plano da salvação é o rio.

Devemos ter consciência que amor e justiça são atributos da personalidade de Deus. Ambos agem de forma simbiótica, não havendo possibilidade de uma prevalecer sobre a outra. Deus é bom porque é justo, e é justo porque é bom. Ele estabeleceu diretrizes que indicam ao homem o caminho a ser seguido rumo ao destino por Ele planejado antes da fundação do mundo. Uma estrada certeira que conduz a salvação, onde não há erro e nem dolo. Infelizmente, o homem sempre escolhe atalhos (Jeremias 29:11).  Estas decisões erradas da humanidade, jamais irão alterar o plano original de Deus, mas, certamente, aceleraram um processo imediato de intervenção, seja para bem ou para mal.

Quando lemos os primeiros capítulos de Gêneses, testemunhamos o declínio moral e espiritual da humanidade. Nos dias de Noé, vemos Deus se confrontando com a terrível realidade dos homens que se tornaram maus e inconsequentes. Corromperam-se, e neste processo, corromperam a terra também. A tragédia do dilúvio, neste caso, era apenas uma consequência das próprias ações da humanidade. A sentença de que o pecado atrairia a morte sobre o mundo, já tinha sido lavrada no Éden, conforme registrado em Gênesis 2:17. Logo, Deus estava em seu total direito de tomar para si as vidas que lhe eram devidas em decorrência da calamidade pecaminosa que havia se espalhado pelo mundo. O dilúvio apenas “adiantaria” o processo. 

Mesmo assim, o Senhor ansiava encontrar arrependimento na humanidade, e por 120 anos, as portas da arca foram mantidas abertas para quem desejasse entrar. A escolha entre o “barco” e as “águas” foi tomada pelo homem, e não por Deus.

De qualquer forma, o plano original estava mantido.  Os desígnios de Deus convergiam para que a terra fosse povoada a partir de uma família, e neste caso, Deus mantém sua estratégia, apenas substituindo Adão por Noé. Muda-se os personagens, mas a história, do ponto de vista eterno, continua inalterável. Numa linguagem figurada, podemos dizer que Deus não mexeu no tabuleiro, apenas reposicionou as peças.

Os leitores mais atentos entendem que o “arrependimento sentido por Deus”, fala de sua tristeza pela condição humana. E este, foi de fato, o marco para um recomeço, onde o "sangue" que clamava na terra foi “lavado.”  Uma nova semente de bondade estava sendo plantada através de Noé.

As gerações seguintes cometeram os mesmos erros de seus antepassados, mas, cumprindo a promessa feita de retardar a destruição, Deus investiu ao longo da história em novos começos. Em Abraão, Ele iniciou Israel (uma nação para ser modelo). Em Jesus, iniciou a Igreja (um povo santo e separado para ser luz do mundo). Futuramente, iniciará em Cristo, um reino perfeito de paz e felicidade permanente, descrito nos últimos capítulos de Isaías. Apocalipse 21:1 nos fala de um novo céu e uma nova terra, já que o primeiro céu e a primeira terra tinham passado; e o mar já não existia mais. O plano divino chegará ao seu ápice. Neste dia, a porta da arca estará definitivamente fechada, mas, hoje, as “comportas” ainda estão escancaradas.

Se na antiguidade, a arca foi o meio proporcionado por Deus afim de que os que cressem escapassem da morte, hoje, essa “saída” é Jesus. Ele é a arca onde devemos nos refugiar, e esta é a mensagem que devemos pregar, independente de quem a escute e aceite.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O Palco e o Altar

É errôneo servir-se de meios imorais para alcançar objetivos morais.
(Martin Luther King)


John Bunyan era um pregador inglês, que sabia como poucos, transformar palavras em obras de arte. Entre 1678 e 1684, publicou os volumes de um livro tão impactante, que ainda hoje, é o segundo maior best-seller cristão da história. “The Pilgrim's Progress” (O Peregrino), desde a sua publicação original, nunca deixou de ser impresso, e só perde em vendagens ao redor do mundo, para a Bíblia. Bunyan era um artista. Sua visão sobre a vida cristã se tornou uma inspiração para milhares de pessoas ao redor do planeta. Suas palavras ecoam pelos séculos acalentando corações desesperados e ansiosos pelo céu.

Conta-se que após um de seus magníficos sermões, Bunyan foi interpelado por seus ouvintes, que o cobriam de elogios pela sua ministração esplendorosa. Um deles, estava deveras impressionado com as palavras do pregador, e se dirigiu a Bunyan dizendo: - Você com certeza, é o melhor pregador deste mundo!  

John Bunyan olhou para seu admirador e disse: - Antes mesmo que eu descesse do altar, Satanás me soprou nos ouvidos estas mesmas palavras.

Muitas vezes, enquanto esperamos o inimigo nos atacar com paus e pedras, ele nos derrota com palavras doces e elogios carinhosos. E cada vez mais, homens e mulheres bem-intencionados, tem caído nesta sutil e tenebrosa armadilha. Descem do altar para subir no palco.

Infelizmente, somos uma geração que ama o palco e despreza o altar. Emolduramos o diploma antes de passarmos no vestibular. Discípulos se autodenominam apóstolos se esquecendo que o Mestre ainda é Jesus. Trocamos a seara pela prateleira de enlatados. Gostamos do palco porque nele somos “estrelas”. No altar, quem brilha é o cordeiro, enquanto o homem, se mantem em posição de serviçal. E não é exatamente para esta função que fomos chamados?

A luz do palco nos impede de enxergar com clareza o que vem de cima, e os aplausos insistentes nos impossibilitam de ouvir os gemidos inexprimíveis do Espírito Santo. Na solitude do altar, nossas ações visam atrair o céu, e na posição de servos, ouvimos e obedecemos a voz de quem nos comissionou. No famoso “Sermão da Montanha” Jesus instruiu os seus seguidores sobre a importância do anonimato: - Tu, porém, quando orares, vai para teu quarto e, após ter fechado a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará plenamente (Mateus 6:6 – King James).

É obvio que neste texto, Jesus não estava restringindo nosso período devocional de oração a um cômodo especifico de nossa casa, mas sim, ressaltando a “postura” com a qual devemos nos portar no momento de nossas preces.  Quando estamos sozinhos, com as portas fechadas e sem ninguém para julgar nossas ações, relevamos nossa verdadeira identidade. No palco, interpretamos um personagem para agradar a plateia. Na solidão do altar, o único a nos assistir é Deus.

É ali que tiramos a máscara, desmontamos o figurino social, rompemos a casca que nos protege dos olhares alheios, podemos finalmente descortinar nosso coração e revelar os sentimentos ocultos e escusos que trancafiamos no porão de nossa alma. No oculto não há segredos, e é exatamente assim que devemos nos apresentar diante de Deus. Com a cara limpa e desarmados de qualquer hipocrisia. 

Deus conhece nosso íntimo, e deseja que ele seja exteriorizado em nossa face. E o melhor lugar para que isto aconteça, é nos recôncavos da solidão. Fechar a porta, mais do que uma ação em busca de sigilo e privacidade, é a atitude de ignorar o mundo, remover as artificialidades que sustentamos, e revelar-se a Deus sem reservas. Este é o cenário propício para o Senhor nos moldar segundo sua própria imagem.

John Bunyan escreveu “O Peregrino” enquanto estava na prisão. Processado por “pregar sem licença”, ele amargou 12 anos em uma cela na cadeia municipal de Silver Street – Bedford.  Atrás das grades, longe dos aplausos populares e dos elogios estimulantes, Bunyan pregou seu sermão mais famoso, que séculos depois, ainda tem causado um impacto poderoso em diversas gerações. Quando esteve preso em Roma, impossibilitado de pregar nas igrejas da Ásia, Paulo transformou seu anonimato em altar. Dali saíram as epístolas de Efésios, Filipenses, Colossenses e Filemom, fontes de inspiração e orientação para as comunidades cristãs de todo o planeta.  Que exemplos gloriosos. Obras feitas em humildade, que só objetivavam a edificação de seus leitores, as quais o próprio Deus exaltou.

Longe do palco, Jesus é o astro de nossa vida. Nos tornamos trabalhadores na coxia, enquanto Cristo é ovacionado pela plateia.

Lucas 10:38-40, narra a história de duas irmãs que receberam Jesus em sua casa, mas escolhem prioridades diferentes. Marta procurou agradar ao ilustre visitante preparando lhe uma bela refeição, enquanto Maria se assentou aos seus pés para ouvir cada palavra. Muitos sermões têm se dedicado a censurar Marta por ter ficado na cozinha, sendo que a mensagem era pregada na sala. Mas, repare que não é esta a atitude censurada por Jesus. Ele recrimina Marta por tentar retirar Maria da sala e não por ela mesma (Marta) estar na cozinha. Isto porque se não houvesse alguém trabalhando, enquanto outros apenas ouviam, não haveria um jantar delicioso esperando por eles após o culto.

No Reino de Deus, para que muitas “MARIAS” possam desfrutar plenamente da ministração, algumas “MARTAS” precisam estar atarefadas na cozinha. Em nossa vida eclesiástica, às vezes somos como Maria, apenas apreciando e sendo servida na sala de jantar. Outras vezes (e muitas vezes) seremos Martas, suando a camisa na cozinha, preparando essa mesma janta. 

No Velho Testamento, estes cozinheiros eram os levitas. Ainda hoje, a igreja precisa de pessoas com o mesmo dom,  que não se esquivem da “cozinha”, e sirvam ao Senhor longe dos holofotes e aplausos. Mas, nosso atual contingente, tem preferido navegar em mares de modismo e popularidade. Exemplo. Muitos músicos evangélicos estão utilizando o termo “LEVITA” para identificar seu próprio ministério. Infelizmente, alguns destes “levitas modernos”, se quer, tem conhecimento sobre quem eram de fato os levitas, e a sua real função na Casa do Senhor.  

Levi foi o terceiro filho de Jacó com sua primeira esposa, Léia (Gênesis 29:34). Algumas gerações depois, seus descendentes foram escolhidos para exercer o culto em Israel e zelar pela Casa do Senhor. “Levi”, então, se tornou uma tribo diferenciada, separada das demais, com tarefas especiais, mantendo em funcionamento os sacrifícios no templo de Jerusalém. Durante a peregrinação no deserto, eles trabalharam ativamente na construção da Casa de Deus, sob a supervisão de Itamar, um dos filhos de Arão (Sim, Arão e Moisés eram levitas). Depois deste trabalho concluído, passou a ser deles a incumbência de zelar pelo Tabernáculo, desmontando-o no momento da partida, para remontá-lo em outro lugar indicado pelo Senhor (Números 1:47-54). 

Embora os levitas não fossem sacerdotes, eles eram auxiliares diretos do sacerdócio, com cada família desempenhando um trabalho específico na Casa do Senhor (Números 3 e 4). No caso do Tabernáculo; os filhos de Coate estavam incumbidos de transportar os móveis, depois que os mesmos fossem cuidadosamente cobertos pelos sacerdotes. Os filhos de Gérson cuidavam das cobertas, cortinas e véus. Os filhos de Merari tinham a tarefa de transportar e erguer a armação do Tabernáculo e seu átrio. Um levita iniciava suas atividades aos 21 anos de idade e se “aposentava” aos 50 (Números 8:24-26). Quando a Arca da Aliança passou a possuir um local permanente em Jerusalém, a idade inicial para o serviço passou a ser vinte e cinco anos. Os levitas não podiam ter posse de terras, e, portanto, eram sustentados pelo povo através do dízimo levítico (Números 18:2, Deuteronômio 18:1-4). Em Deuteronômio 12:12, é ressaltada a grande responsabilidade dos israelitas para com os filhos de Levi.

Apenas quando Davi ocupou o trono de Israel, sendo ele próprio um músico nato, compositor gabaritado e exímio instrumentista, os levitas Hemã, Asafe e Etã, bem como aos seus respectivos filhos, foram encarregados pela música da Casa do Senhor, onde a Arca da Aliança repousava (I Crônicas 6:31). Em outros textos, levitas são identificados exercendo ministério profético. Em II Crônicas 20:14, Jaaziel profetizou a vitória de Josafá. Em II Crônicas 35:15, Jedutum é chamado de “o vidente” do rei.

Levitas músicos e profetas eram exceções à regra. No geral, o ministério levítico estava inteiramente ligado ao sacrifício de animais do culto do Antigo Testamento (Números 3:1-39), ritual este completamente abolido no Novo Testamento (Hebreus 8:6-7). A função primordial de um levita não era e cantar ou tocar música, mas sim, auxiliar o sacerdote na ordem com os utensílios do santuário, funcionando como um ministério de “zeladoria” (Números 1:50-51).

Portanto, se alguém deseja rotular-se como “levita” apenas por cantar na igreja, incorre em um erro gritante. O levita era um serviçal da Casa do Senhor, um verdadeiro “faz tudo”, um apaixonado pelo templo, mantendo-o em perfeitas condições para a visitação pública, e acima de tudo, para receber a presença de Deus. Levitas não ficavam sob os refletores do palco. Em nossa realidade eclesiástica, num comparativo simbólico, podemos dizer que os zeladores, os porteiros, os faxineiros, os cooperadores e os diáconos estão muito mais próximos do ministério levítico do que propriamente os ministros de louvores. Quando você usar o banheiro da igreja, louve ao Senhor pela vida dos levitas. Foi um deles que abasteceu o refil de papel higiênico.

Romanos 12:6-8 nos dá uma dimensão desta realidade laboriosa. Neste texto escrito a igreja em Roma, Paulo ressalta que pela Graça, cada um dos integrantes desta grande família chamada Igreja, recebe um dom distinto. Esses dons só podem ser empregados para benefício do próximo e por isso são chamados de DONS DE SERVIÇO. Este tipo de dom tem boa funcionalidade quando posto em prática individualmente, mas é no ajuntamento das diversidades, quando cada um participa com seu próprio dom que contribuímos para o bom funcionamento do Corpo.  Eles estão descritos em Romanos 12:3-8: 

Porque pela graça que me é dada, digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém; antes, pense com moderação, conforme a medida da fé que Deus repartiu a cada um. Porque assim como em um corpo temos muitos membros, e nem todos os membros têm a mesma operação, assim nós, que somos muitos, somos um só corpo em Cristo, mas individualmente somos membros uns dos outros. De modo que, tendo diferentes dons, segundo a graça que nos é dada, se é profecia, seja ela segundo a medida da fé; se é ministério, seja em ministrar; se é ensinar, haja dedicação ao ensino; ou o que exorta, use esse dom em exortar; o que reparte, faça-o com liberalidade; o que preside, com cuidado; o que exercita misericórdia, com alegria.

Neste contexto, o termo "ministério" refere-se a serviço ou auxílio. São aquelas pessoas que sentem prazer em servir aos demais, visando a glória de Deus. Aqui, encontramos os voluntários que acordam cedo para dar plantão na igreja sem receber nada por isto, os que se mobilizam em faxinas ao templo, os que oferecem seus carros para o transporte dos irmãos, os que nas festas e eventos são sempre encontrados na coxia, na cozinha ou nas barracas. São os que nunca aparecem nas fotos, pois estão sempre atrás da máquina fotográfica. Não adiante procurá-los no palco. Estão sempre anônimos atrás do altar. Pessoas que mesmo sem remuneração alguma, se satisfazem em alegremente contribuir com mão de obra e boa vontade, ainda que seu trabalho se quer seja notado pela grande maioria.

Nesta categoria de dons concedidos a igreja, destacam-se pessoas que Deus capacita para o artesanato, para a música, para o entretenimento, para a gastronomia e tantas outras atividades que exigem emprego de tempo e habilidades, mas que por ser exercida em voluntariedade, não produz qualquer lucro. Como paga por revertem suas “aptidões” em prol da igreja na qual servem, recebem apenas o sorriso de uma criança, ou quem sabe, um simples “obrigado” de seu pastor. É o que basta. Servos que amam o altar vivem em prol de agradar a Deus. E com isso, se tornam um canal de bênçãos para a vida de toda uma comunidade. 

Por isso preocupam-se mais com os outros do que consigo mesmo e vivem em prol dessas pessoas, não medindo esforços, para dentro de suas possibilidades (e até nas impossibilidades) salvar vidas através de gestos fraternais.Do palco, não se enxerga as necessidades do próximo ou as carências da Casa do Senhor. Espiritualmente falando, palco não é lugar de honra, mas sim de derrocada. O orgulho que floresce debaixo dos holofotes é o último degrau antes da queda (Provérbios 16:18). A honra no Reino de Deus consiste em servir.

Bunyan na prisão. Paulo no exílio em Roma. Marta atarefada na cozinha. Obreiros faxinando voluntariamente o templo. Você servindo no anonimato do altar. Pessoas com afabilidade e sensibilidade oriundas de uma devoção irrestrita a Casa de Deus, que dedicam suas vidas a cuidar dos necessitados, estendo a mão a quem esteja sofrendo ao seu redor. Doações anônimas. Trabalhos voluntários. Adoração no secreto. Estes sim são levitas modernos, que fazem jus a um honorável legado.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Tragédias, Poemas e Canções

A esperança é o sonho do homem acordado.
(Aristóteles)


Em 1932, Frida Vingren (esposa do fundador da Assembleia de Deus no Brasil, Gunnar Vingren), chegou a Alagoas para iniciar ali um trabalho missionário. Logo após a chegada da família, Gunvor, a filha mais nova do casal, contraiu uma grave doença e faleceu. O padre local, proibiu que a menina fosse enterrada no cemitério da cidade, alegando que a criança ainda era pagã. A dor encontrou a frustração. As tribulações decorrentes deste triste evento, fragilizaram a saúde de Gunnar, que mais uma vez, foi acometido de malária, uma doença que o flagelava constantemente. 

Profundamente abatido, ele se trancou em seu quarto, e enquanto orava com os olhos submersos em lágrima, encontrou conforto na canção que saia da boca de sua esposa Frida. Era uma versão tupiniquim que ela tinha feito para uma tradicional canção do folclore sueco, e que se tornaria o hino 126 da Harpa Cristã:

Quando aqui as flores já fenecem,
As do céu começam a brilhar;
Quando as esperanças desvanecem,
O aflito crente vai orar;
Os mais belos hinos e poesias,
Foram escritos em tribulação,
E do céu, as lindas melodias,
Se ouviram, na escuridão.  

Existe uma grande diferença entre “estar” triste e “ser triste”. A vida cristã não irá nos imunizar de dias chuvosos, segundas-feiras cinzentas, perdas insubstituíveis e danos irreparáveis. Estamos no mundo, somos feitos de carne e osso e estamos expostos a todo tipo de mazela existente no planeta: dores, traumas, acidentes, enfermidades, desemprego, pobreza, angústias. Assim, inevitavelmente, teremos que enfrentar momentos de tristeza, e ao longo de uma vida, derramaremos alguns litros de lágrimas geradas em sofrimento.

Porém, para aquele que tem sua fé alicerçada em Cristo Jesus, nem mesmo as maiores tragédias experimentadas na própria pele, serão capazes de alterar sua condição de “ser feliz”, mesmo que a tristeza nos faça algumas visitas desagradáveis. O que difere o servo de Deus num contexto de tragédia, é exatamente a forma como ele enxerga e convive com as adversidades, crendo e confiando na sabedoria divina. Esta confiança é o que lhe dá condições para dimensionar um propósito eternal em sua dor momentânea. Somente a fé irrestrita no controle de Deus sobre nossas vidas, nos proporciona uma condição emocional equilibrada, a ponto de sentirmos paz em meio aos conflitos, e nos alegrarmos com os motivos de nossas tristezas. E este é o paradoxo que identifica entre milhares de pessoas, aqueles que são de fato, verdadeiros adoradores.

Adorar a Deus em espírito e em verdade, remonta a uma adoração atrelada a essência, e nunca a uma condição. O verdadeiro adorador faz da sua vida uma harpa afinada, que a cada vibração das fibras de sua existência, emite notas de louvores ao Criador, independente de quem a esteja “tocando”. Quando somos "instrumentos", cuja única finalidade é a adoração, se formos tocados pelas bênçãos divinas, emitiremos sons de louvor. Porém, se formos tocados pela dor ou pela tragédia, a melodia permanece inalterada, pois o nosso louvor não se deixa influenciar. Ele é puro, genuíno e inalterado.

Quando nos dedicamos a uma leitura sistemática dos Salmos, somos envolvidos por um turbilhão de emoções e sentimentos. Se num verso o salmista está extasiado de felicidade, em outro, sua alma está aflita e desesperada. Tudo é muito paradoxal, mas nunca confuso. Este hinário do Velho Testamento é uma compilação de poemas e cantos que refletem com precisão a alma humana, com seus altos e baixos. Porém, a grande lição que retiramos do Livro de Salmos, é que cada músico, poeta e tangedor, que ali deixou seu registro, transformou tantos seus dias de maior felicidade, quanto suas noites de maiores tristezas, em hinos de louvor. 

Ou seja, se a alegria é a motivação de todo adorador, as tristezas são catalizadoras de inspiração e devoção para adoradores que se destacam da grande média. Os adoradores paradoxais. Uma das mais belas histórias bíblicas nos mostra com perfeição a pureza e a genuinidade da adoração verdadeira, mesmo que a canção não tenha sido expressa através de notas musicais. Jó não se tornou conhecido por ser um músico talentoso ou compor belíssimas composições, mas sim, por fazer de sua própria vida um hino de louvor.  

Pouco sabemos sobre a vida do patriarca Jó. Ele morava em Uz, era casado, pai de dez filhos que gostavam de festas, tinha por estima seus amigos e seu rebanho era superior a 10.000 animais. Porém, a mais importante informação sobre Jó está inserida logo no primeiro verso de sua história. Ele era íntegro, justo, temia a Deus e se desviava do mal (Jó 1:1). O patriarca não frequentava uma igreja, e até onde sabemos, não tinha um mentor espiritual. Mesmo assim, decidiu ser fiel ao seu Deus e vivia sua vida cerceada de cuidados para que ela não fosse minada pelo pecado. E isso atraiu sobre Jó o olhar invejoso do próprio Satanás.

O escritor norte-americano Philip Yancey descreve o livro de Jó como uma grande peça de teatro, onde nós, espectadores conhecemos o enredo e as motivações de cada personagem, e exatamente por isso compreendemos cada reação as diversas ações desencadeadas. Mas Jó, personagem central desta peça, está completamente no escuro, sem saber o que acontece nos bastidores, não conseguindo compreender os muitos "porquês” das páginas seguintes.

O ponto chave desta história é a fidelidade de Jó. Satanás, astuto e ardiloso, argumenta com Deus que é muito fácil ser fiel quando se vive em conforto e abastança, e insinua que a fidelidade de Jó se deve, única e exclusivamente, ao fato que Deus o cobria de bênçãos. Ali é estabelecido um embate épico, um duelo de escala cósmica, cujo epicentro é a vida de um simples mortal. O inimigo sugere que Deus tire de Jó tudo o que ele tem, e que depois seja reavaliado o nível de sua fidelidade. Deus aceita o desafio e Satanás é autorizado a retirar de Jó seus bens mais preciosos. Em poucas horas, seus bois, jumentos e camelos são roubados por saqueadores, seus funcionários mais leais são cruelmente assassinados por uma horda bárbara e suas ovelhas são dizimadas por uma saraivada.

No mesmo dia, enquanto seus filhos almoçavam juntos na casa do mais velho, um furacão derrubou o edifício matando todos eles. Jó agora era um homem pobre, imerso em dor e sofrimento, com um pesar indescritível lacerando seu coração. Porém, mesmo na mais cruel adversidade, ele esbofeteia Satanás e se mantem fiel ao seu Senhor, não imputando a Deus falha alguma: - Nu saí do ventre de minha mãe, e nu tornarei para lá. O Senhor deu, e o Senhor tirou; bendito seja o nome do Senhor (Jó 1:21).

Satanás não se deu por vencido e alegou que a fidelidade havia se mantido pois o mais precioso dos bens ainda estava intocável, insinuando que se a saúde de Jó fosse afetada, sua fé também seria. Mais uma vez, Deus coloca sua própria honra nas mãos de Jó, e permite que o inimigo atinja o patriarca com força total, ferindo-o com úlceras purulentas da cabeça aos pés. Apodrecendo em vida, e sofrendo com a intolerância das pessoas mais próximas, Jó se depara com o inevitável questionamento: - Para que se manter fiel a um Deus que só lhe causa dor e sofrimento, sem que ao mesmo uma única ofensa justifique tamanho infortúnio? 

Porém, com a cabeça raspada e coberta de cinzas para externar toda sua dor, a atitude surpreendente tomada por Jó, é se lançar sobre o pó e “ADORAR” ao Senhor. E o golpe final, que derruba por terra as perniciosas ambições de Satanás está registrado nas palavras de Jó 13:15. -  Ainda que ele me mate, nele esperarei; contudo, os meus caminhos defenderei diante dele. 

Pode haver louvor mais puro e verdadeiro do que entregar nas mãos de Deus a vida e a morte, confiando completamente no seu julgamento?

Em sua forma de entender os eventos, Jó acreditava piamente que todo mal que lhe atingia vinha de Deus. Mesmo assim, sua reação é adorar o responsável por suas mazelas. Pode existir exemplo melhor para entendermos o que é um “adorador paradoxal”?

Aliás, a Bíblia está repleta de histórias inspiradoras sobre “adoradores paradoxais”, que do caos e da tragédia, emergiram impávidos em adoração. Paulo e Silas no cárcere de Felipo (Atos 16:25). Davi na caverna de Adulão (Salmo 23 / 116:1-5). Habacuque confrontando a destruição de Judá (Habacuque 3:17-19). E o próprio Jesus que na noite de sua prisão, fez questão de orar, e depois,  cantar  um hino(Marcos 14:26). Esta mesma experiência pode ser experimentada por cada cristão que se dispuser a viver a vontade de Deus, em cuja presença, até mesmo a tristeza resulta em alegria.

Uma das mais belas canções de todos os tempos se chama IT IS WELL WITH MY SOUL, que em sua versão na língua portuguesa recebeu o nome de "SOU FELIZ". Este hino foi escrito em 1873 por um músico presbiteriano chamado Horatio Gates Spafford. Se a música em si já é belíssima, o contexto de sua composição é ainda mais inspirador.

Horatio tinha feito pesados investimentos financeiros em uma área da cidade de Chicago, que no dia 9 de outubro de 1871, vivenciou um dos maiores incêndios da história dos EUA. Em decorrência desta tragédia que destruiu cerca de um terço da cidade, ele teve grande perda financeira. Não bastasse esse terrível abalo financeiro, Spafford ainda perdeu um filho, cuja morte trouxe grande sofrimento para toda a família.

Em 1873, procurando um tempo de refrigério e descanso, resolveu viajar para a Inglaterra com a esposa Anna e as filhas Annie, Margaret, Bessie, e Tanetta. Lá, a família participaria de uma grande cruzada evangelística. Em novembro daquele ano, devido a inesperados compromissos de negócios, Spafford precisou permanecer em Chicago,  mas, embarcou sua esposa e filhas no navio S.S. Ville du Havre, conforme previamente planejado. Sua expectativa era encontrá-las em Londres dias depois. Durante a viagem, o navio sofreu um acidente e naufragou em apenas doze minutos. Dias depois, os sobreviventes finalmente chegaram a Cardiff, no País de Galles, e a senhora Spafford mandou um telegrama ao seu marido: “SALVA, PORÉM SÓ”.

Todas as filhas do casal morreram no acidente. Aquele homem mal tinha superado a morte de seu filho, e quatro novos funerais ocupariam sua sala. Imediatamente, após receber o telegrama da esposa, Spafford tomou um navio e foi ao seu encontro. Próximo ao local do acidente, ele compôs um dos mais belos hinos da história da música cristã, onde apesar de toda a sua dor e enlutamento, ressaltava que a presença de Jesus lhe era o bem mais precioso. Na letra, ainda hoje cantada em igrejas de todo mundo, uma frase revela com precisão o que diferencia o verdadeiro adorador, dos adoradores de ocasião. Em meio a dor e a tragédia, Spafford encontrou refrigério em Cristo e pode declarar:  - "Tudo está bem. Tudo está bem com minha alma."

Davi foi enfático ao afirmar que o Senhor está perto dos que tem um coração quebrantado (Salmo 34:18). Quando seus corações se despedaçaram, Spafford e Frida conseguiram transformar a dor que sentiam, em adoração pura e verdadeira. Quando isto acontece, cada batida do nosso coração é compasso marcando o tempo da música, e nossas lágrimas ao tocar o solo se transformam em notas que reverberam pelo infinito até rompem o céu. E então,  Deus se levanta de seu trono para, emocionado, ouvir a canção .

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Desculpas Esfarrapadas

Pessoas que são boas em arranjar desculpas
raramente são boas em qualquer outra coisa.
(Benjamin Franklin)


Existe um velho jargão, muito utilizado por pregadores pentecostais, que diz: - Deus não escolhe capacitados, ele capacita os escolhidos. Não concordo. As escolhas de Deus me dizem o contrário. 

Abraão foi escolhido porque possuía uma fé inabalável. 
Jó foi escolhido por sua longanimidade sem precedentes. 
Davi foi escolhido por ter um coração quebrantado. 
Paulo foi escolhido porque priorizava a causa divina. 

Deus sempre escolheu pessoas detentoras de qualidades especiais, e então, as potencializou. Isso mesmo. Somos escolhidos porque aos olhos de Deus, já temos algo especial. Então, quando dizemos que não temos “capacidade” para realizar uma tarefa destinada a nós pelo Senhor, banalizamos uma escolha divina e questionamos abertamente a sabedoria de Deus.

A mecânica é simples de entender. A Obra de Deus aqui na Terra é realizada por mãos humanas, direcionadas por seu Santo Espírito. Algumas destas mãos, deslizam por teclas de pianos. Outras, manejam pás e picaretas. Todas têm valor, e cada uma, possui especialidades distintas. Então, Deus as escolhe, separa e designa para trabalhos que condizem com estas habilidades. O Senhor nos usa naquilo em que somos bons.  Não com base no que achamos, mas sim, do que Ele já sabe. Até, porque, foi exatamente as mãos do Criador que nos fizeram assim. 

A verdade crua e nua, é que, se Deus te escolheu e te chamou para sua obra, não adianta alegar falta de capacidade, pois Ele já sabe que você é capaz. E o texto bíblico de Êxodo 3 e 4 tem muito a nos ensinar sobre esta questão.

Hoje lembramos de Moisés como um dos mais importantes homens da história. Foi ele o responsável por libertar seu povo da escravidão, e conduzi-los a terra da promessa. Moisés é um herói da fé, realizador de obras portentosas, o homem que sozinho, venceu o maior império de seu tempo. Porém, quando o encontramos no deserto de Midiã, sua estima estava mais baixa que patas de formiga. Deus lhe apareceu na sarça ardente no alto do Monte Horebe, e informou que ele era o “escolhido” para resgatar Israel da escravidão. Assim, deveria voltar ao Egito, marcar uma audiência com faraó, e dizer ao rei que levaria embora toda a mão de obra que sustentava a economia egípcia. Humildemente, Moisés declinou da proposta, sem entender que aquilo não era um convite, e sim uma convocação.

Moisés nasceu e cresceu no Egito, sendo criado e educado no palácio de Faraó, ocupando um posto na linhagem real. Foi instruído em todas as ciências dominadas pelos egípcios, como engenharia e medicina. Estudou a arte da guerra e se aperfeiçoou nas relações diplomáticas. Moisés foi criado para liderar, governar e dominar. Mas, apenas isto não bastava para a grande missão que lhe estava destinada. Exilado no deserto, Moisés iniciou um novo ciclo de aprendizado. Ele se tornou pastor de ovelhas, e aprendeu a lidar com rebanhos grandiosos e seus cordeiros saltitantes. Por quarenta anos se dedicou a encontrar pastagens em meio ao mar de areia. Aprendeu sobre rochas, poços e serpentes venenosas. O pastor sabia liderar e o príncipe tinha aprendido a apascentar. Moisés estava pronto. 

Deus já sabia disso. Moisés ainda tinha muitas dúvidas.

O Senhor se apresentou a Moisés como sendo o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Imediatamente, ele reconheceu a voz do Deus dos hebreus, e nem por um segundo, duvidou da identidade do Senhor. Suas dúvidas não orbitavam a existência de Deus, mas sim, suas condições pessoais. Ao saber que tinha sido o escolhido para libertar Israel, imediatamente, Moisés se sentiu pequeno e incapaz, mesmo o Senhor já tendo validado sua capacitação. Foi aí, que o príncipe pastor, dedicou os próximos minutos da vida, tentando convencer à Deus de que a escolha estava errada. Exatamente, o que fazemos com uma regularidade absurda.

O primeiro argumento de Moisés, é também um dos mais usuais em nosso tempo: - Quem sou eu? Pobre Moisés, já estava com oitenta anos de idade, e ainda não sabia quem era. Nascido numa época onde a lei mandava os pais matarem os próprios filhos, ele teve sua vida poupada, e milagrosamente, sobreviveu ao Nilo. O bebe escravo acabou nos braços da princesa regente, e se tornou num príncipe do Egito. Mesmo assim foi criado pela própria mãe, contratada como ama de leite, o que permitiu que desde a mais tenra idade, tivesse conhecimento da história de seu povo. Após o exílio, sobreviveu as intempéries do deserto, e constituiu uma nova família em Midiã. E mesmo assim, não sabia quem era? 

Sua vida era fruto de uma sucessão de milagres, e ele não sabia quem era?

Quantas vezes nos vemos a volta com esta mesma indagação. Quem sou? Porque estou aqui? O que Deus vê em mim? Nestas horas, o que nos falta não é conhecimento, e sim memória. Se nos lembrássemos de onde fomos tirados, saberíamos quem somos. Se olhássemos para cima e contemplássemos a face de nosso Deus, saberíamos quem somos. Se trouxéssemos a lembrança o cuidado do Senhor ao longo de nossa vida, saberíamos quem somos. 

A resposta de Deus a Moisés deveria pôr uma pedra sobre nossas indagações em relação a capacidade que temos para realizar ou não sua obra: -  Moisés, eu serei contigo! Quem somos é um detalhe pequeno, quando compreendemos a grandeza de quem está conosco.  Ele “é”, por isso, “somos” também.

Em seu segundo argumento, Moisés terceirizou a responsabilidade de um possível fracasso. No Egito, todos os deuses tinham nome e rosto, e logo, ninguém acreditaria num deus sem nome e que ninguém pudesse ver. Ir ao Egito seria uma incursão improdutiva, já que todos ignorariam a mensagem a ser transmitida. - Eles não vão acreditar em mim, porque não conhecem você! 

Ah... Como é bom responsabilizar outras pessoas por nossos insucessos. Mas, as desculpas que funcionam com homens que só enxergam o exterior, não convencem o Deus que detêm todo o conhecimento. Logo, o argumento de Moisés foi pulverizado por uma afirmação que diz tudo o que precisamos saber sobre Deus: 

- Diga a eles que o “EU SOU O QUE SOU” te enviou. Diga a eles que Eu Sou o Deus de seus antepassados, o Deus de Abraão, Isaque e Jacó!   

Temos falhado miseravelmente em apresentar Deus ao mundo, porque queremos fazer isto usando fórmulas mirabolantes e teologia rebuscada. Se Deus distribuísse cartões de visitas, este seria o nome escrito em letras douradas: EU SOU O QUE SOU (Êxodo 3:14 / Isaías 43:11). Deus não se define por alegorias e metonímias. Ele é quem é. Obviamente, Deus se revelou ao homem, dando-lhe o privilégio de conhece-lo (e chamá-lo) por nomes que explicitam seu caráter e poder. Mas, nenhuma nomenclatura resume sua essência quanto a revelada a Moisés no Horebe: יהוה - "EU SOU O QUE SOU". 

Numa transliteração do hebraico, encontramos o termo “Yud Hei Wav Hêi”. Como o escriba israelita, por respeito e temor, evitava escrever o nome de Deus em seu texto, nasceu o tetragrama YHWH, que por não ser pronunciado em obediência ao terceiro mandamento, teve sua fonética esquecida com o tempo (Êxodo 20:7). Estudiosos modernos recorreram as vogais das palavras Elohim e Adonai (expressões substitutivas para o nome de Deus no vocabulário hebraico), e criaram a palavra híbrida “YeHoWaH”, ou em sua forma latinizada “Jehowah”, adaptada em nossa língua para Jeová. Este é, a rigor, o único nome próprio para Deus. Ele é o que é. E fim. Se cremos ou não, se aceitamos ou não, se entendemos ou não, é um mero detalhe na linha da eternidade. Ele continua sendo, como sempre foi e para sempre já é.

O terceiro argumento de Moisés também é baseado na possível descrença do povo. Mesmo se apresentando como mensageiro do “EU SOU O QUE SOU”, dificilmente os líderes hebreus lhe dariam ouvidos. Seria necessária uma demonstração física do poder de Deus. Mas, o que Moisés considerava um evento cósmico irrealizável, para o Senhor, era apenas um passeio no Jardim. Neste ponto, o hebreu recebe do próprio Deus a capacidade de transformar cajados em serpentes, tornar leprosas mãos sãs e fazer água virar sangue, para depois reverter tudo ao estado original. Como dizem, a mensagem fala, mas o milagre grita. Se alguém não acreditasse no Senhor pelas palavras de Moisés, certamente creria em seus sinais.

O inacreditável, é que temos perdido uma oportunidade imensa de impactar o mundo com sinais e obras portentosas. Nos acomodamos com liturgias genéricas, repletas de almas feridas e corpos enfermos. Onde está nossa autoridade para, em nome de Jesus, curar e libertar?  A capacidade de realizar proezas sobre-humana é uma das maiores ferramentas que Deus disponibilizou aos seus servos ao longo de toda a história. Patriarcas, juízes e profetas utilizaram em larga escala deste recurso para os fins mais diversos, como livrar a nação de um inimigo, prover sustento ao povo, ajudar pessoas desesperadas, humilhar deuses pagãos e desafiar reinados ditatoriais, visando sempre, a glória de Deus e a oblação do nome poderoso do Senhor. A igreja herdou este legado, mas, tem se escondido atrás de desculpas para não usá-lo.

Quando comissionou seus discípulos a continuarem a obra por Ele iniciada, Jesus concedeu para aqueles homens poder e autoridade, além do respaldo de sua presença divina. Com essa legalidade espiritual, e fazendo do nome de Jesus sua "arma", os seguidores de Cristo tornam-se capazes de curar enfermos, expulsar demônios, falar idiomas específicos e sobreviver a investidas mortais de possíveis inimigos (Marcos 16:17-18 / Lucas 10:19). Se toda a nossa fé está centrada em Jesus e abalizada pela sua palavra, temos também que crer na atualidade dos milagres, pois a verdadeira igreja não teve mudanças em sua essência. A obra que foi confiada aos apóstolos ainda é a mesma que urge em nossas mãos. 

As ferramentas disponibilizadas aos primeiros cristãos para viabilizar este trabalho, ainda estão em perfeito estado de conservação. A diferença, é que, pela incredulidade latente nos dias de hoje, preferimos uma zona de conforto. E assim, embora nossa mensagem diga que Jesus opera grandes milagres, na prática, pouco trabalhamos para que os mesmos aconteçam. Com isto, perdemos a chance de mudar o pensamento desta geração incrédula, que talvez, seria realmente impactada pelo evangelho, se presenciasse a teórica do milagre se tornando realidade palpável.

O quarto argumento de Moisés e baseado em suas limitações físicas. Ele alega debilidades de fala, o que dificultaria a compreensão da mensagem a ser transmitida. Alguns dizem que Moisés era gago, outros afirmam que era tímido em excesso, e tem até quem acredite que os anos no deserto lhe roubaram as palavras. Fato é, que o outrora príncipe, estava inseguro quanto as próprias condições. A eloquência não era sua virtude mais visível, e ele tinha receio de “travar” ao falar em público. Boca e língua pesadas. Deus responde a este argumento com uma indagação retórica e retumbante: 

- Quem fez a sua boca? Não fui eu? 

O Senhor conhece nossas limitações e deficiências, porque foi Ele quem nos fez assim.

Eu nasci com uma deformidade chamada “lesão crâneo facial com fenda palatina”. Para resumir, sem muitos termos técnicos, basta dizer que o meu lábio era fendido e meu palato (céu da boca) não passava de uma cratera. Também não tinha a úvula (campainha da garganta), que entre outras funções, é fundamental na formação dos fonemas. Os médicos disseram aos meus pais que eu não teria condição de desenvolver a fala, e se com sorte, falasse, seria com muita dificuldade, numa entonação distorcida, impossibilitando que alguém me entendesse. Por mais de duas décadas, passei por implantes, enxertos, extrações e horas infindas em mesas de otorrinos, cirurgiões plásticos, ortodontistas e protéticos. Mas, apesar dos prognósticos da medicina apontarem para uma vida de silêncio, Deus me deu a condição de falar. E eu aproveitei. 

Falo mais que uma maritaca verborrágica. Sou professor de escola bíblica, prego desde os nove anos de idade, atuo como ministro de louvor, trabalhei por muitos anos como locutor de rádio e já discursei até em campanha eleitoral. Se é para falar, então me chamem! Desviem o olhar das sequelas físicas e se concentrem no resultado do milagre. Quando questionei ao Senhor sobre o porquê de minha deformidade, obtive a seguinte resposta: 

- Fiz tua boca assim, para tuas palavras edificarem as pessoas que te ouvirem! 

Perfeição na imperfeição. Beleza no que é feio. Possibilidades na impossibilidade. O Deus que me deu uma voz, é o mesmo que fez a boca de Moisés e os olhos de Bartimeu, . Tudo o que faz, tem um propósito (João 9:2-3). Quando nos chama, o Senhor já calculou com precisão, as implicações de nossas deficiências. Ele as respeita, compreende e as transforma em ferramentas de honra. Mesmo que, tenhamos imensa dificuldade de compreender seus desígnios.

Incrustada na desculpa dada pelo hebreu, o Senhor vislumbrou o medo e a ansiedade, e então, carinhosamente confortou o coração de seu servo - Não tenha medo meu filho, eu serei contigo, e te ensinarei o que falar. Eu fiz a boca do mudo e os olhos do cego. Eu conheço suas limitações, e nelas, meu poder se aperfeiçoará. Aquele era o momento de Moisés silenciar sua voz, e aceitar a vontade do Senhor para sua vida. Porém, ele tentou uma última cartada. A pior de todas.

O quinto argumento de Moisés irritou profundamente ao Senhor, da mesma forma, que o irrita, quando ainda o usamos à revelia: - Mande outro em meu lugar!

Ah! Deus se sente ofendido com este tipo de argumentação. Quando pedimos ao Senhor que envie outro em nosso lugar, declaramos nossa insegurança em seus desígnios. É como se cuspíssemos na face de Deus, escarnecendo de suas escolhas. E o Senhor, não lida muito bem com o escarnio. Na mesma hora, a ira de Deus se ascendeu contra Moisés, e só não o consumiu, porque a boca do homem finalmente se calou, para que apenas as palavras do Senhor ecoassem na montanha.

Tudo que Moisés ganhou com seus argumentos, foi a concessão para que Arão o auxiliasse em sua jornada. Mas, ao invés desta “ajuda” amenizar a responsabilidade de Moisés, ela a duplicou. No Egito, Moisés seria a boca, e o EU SOU seria Deus. Agora, Arão, seria a boca, e Moisés lhe seria por Deus. Antes mesmo de se registrar no RH, Moisés já tinha recebido uma promoção. Poder dobrado. Cobrança redobrada.

Não adiante se esquivar. Antes de nos convocar para sua Obra, Deus já nos preparou, nos moldando desde o ventre de nossa mãe. Quando Ele chama, já estamos capacitados. No chamado, o Senhor chancela sua escolha prévia. Tentar argumentar com Deus para fazê-lo mudar de ideia quanto a isto, apenas o fará enxergar ainda mais fundo dentro de nossa alma. E já sabemos muito bem o que tem lá. Exatamente a joia preciosa que nos torna especial aos olhos do EU SOU O QUE SOU. Tesouros em vasos de barro. Foi Ele mesmo quem a colocou ali! (II Corintios 4:7).