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quinta-feira, 30 de março de 2017

Voz que clama no deserto

Nós poderíamos ser muito melhores se não quiséssemos ser tão bons.
(Sigmund Freud)


Azul. Esta era a cor do letreiro luminoso estalado na igreja onde passei minha infância. Era muito bonito. Uma novidade tecnológica para época. Não era grande, mas, podia ser visto de longe. As sombras da noite tinham a petulância de esconder as letras escuras pintadas na parede. Porém, nada podiam fazer contra a luz. Bastava olhar para ela, e qualquer transeunte desavisado entendia a mensagem. Aquela era uma igreja evangélica. Deus era louvado naquele templo, e manifestava sua presença na casa.

O evangelista João abre seu testemunho não deixando dúvidas quanto a origem divina de Jesus: - No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram criadas por Ele, e sem Ele nada que foi criado existiria. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandeceu na escuridão, mas a escuridão não compreende a luz (João 1:1-4). 

A encarnação do próprio "DEUS" consumada em Jesus, é de fato, um evento grandioso demais para ser entendido por mentes puramente naturais. É preciso uma revelação especial. E exatamente por isso, João – o discípulo amado, faz uma poética introdução de seu homônimo, João – o Batista: - Embora ele não fosse a “LUZ”, veio para apresentar a “LUZ” aos homens, afim de que saíssem da escuridão (João 1:6-8). 

Mateus, por sua vez, recorreu aos livros proféticos do Antigo Testamento, para provar aos seus leitores que, João – o Batista, era de fato, a “VOZ” predita pelos profetas, e que anunciaria ao mundo a chegada do Emanuel: 

- E, naqueles dias, apareceu João Batista pregando no deserto da Judeia, e dizendo: Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus. Porque este é o anunciado pelo profeta Isaías, que disse: Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas (Mateus 3:1-3).

João e Jesus. Primos consanguíneos. Líderes formadores de discípulos inflamados. Esmiuçadores de paradigmas. Oradores de uma mensagem que mudaria o mundo para sempre. O portador da luz e a própria luz. Enquanto João escolheu o deserto como altar, Jesus honrava sua família terrena levando uma vida pacata em Nazaré, ocupando como filho mais velho, as atribuições do saudoso José no patriarcado da casa. Jesus ainda estava encoberto pelo anonimato quando João se tornou uma figura pública de grande destaque e influência. Porém, no tempo de Deus, João escolheria “diminuir” para que seu primo mais ilustre pudesse “crescer”.

Mas, Miquéias, porque um texto sobre João Batista começou com uma lembrança nostálgica sobre letreiros luminosos em igrejas? 

Explico. Hoje, as igrejas investem muito mais em publicidade que nos tempos de minha longínqua infância. E a nova moda, ao que me parece, é ostentar nas marquises dos templos, imensos painéis, onde o rosto do líder máximo da organização ocupa um terço do espaço físico, e o nome de Jesus disputa posição com as demais informações disponibilizadas no painel. Por vezes, é preciso um grande esforço visual para encontrar alguma menção a Deus ou Cristo. Parece que estamos brincando de “Onde está Wally?” com o nome de Jesus. Que triste isso. No evangelho moderno, Jesus parece cada vez menos importante. Aos olhos de um povo avido por idolatrar seus profetas e apóstolos, o homem cresce, e Deus diminui. 

Neste cenário de apostasia, temos muito a aprender com a humildade de João. Um pequeno letreiro iluminado, que não tentou ofuscar a própria luz.

Predito por Isaías com 700 anos de antecedência, e posteriormente confirmado por Malaquias, o nascimento de João foi sem dúvidas, a realização de um grande milagre. Seus pais já estavam em idade bastante avançada quando um anjo apareceu para Zacarias, enquanto este oferecia incenso no templo, e o anunciou que ele finalmente seria pai. E seu filho seria o precursor do Messias. O velho sacerdote foi tão impactado pela visão angelical, que acabou perdendo a fala.   

Zacarias era sacerdote e sua esposa Isabel pertencia a sociedade das “Filhas de Arão”, também provindas de linhagem sacerdotal. Durante a miraculosa gestação, Isabel se hospedou na casa de Maria, com a qual tinha parentesco, e que também já estava gestante de Jesus.  No encontro, enquanto as mães eram visitadas pelo Espírito Santos, João se agitou no ventre, como se já reconhecesse seu “primo” como o prometido Salvador. Na interpretação de estudiosos do evangelho de Lucas, João (cujo nome fora indicado pelo anjo), foi nazireu de nascimento.

O voto dos nazireus os restringia de beber vinhos ou qualquer outra bebida forte. Também deveriam deixar o cabelo crescer e não poderiam aparar a barba. João, porém, escolheu um caminho ainda mais asceta, vivendo de forma resignada. Após a morte dos pais, iniciou seu ministério público na Judéia, conclamando os judeus ao arrependimento. Todos deveriam estar preparados para a chegada do Messias.

Sua figura era pitoresca, mas, a mensagem que trazia era ainda mais impactante. João passou a habitar no deserto, se alimentando exclusivamente de gafanhotos e mel silvestre. Suas vestes eram feitas de pele de camelo e cingidas por um cinto de couro. E suas palavras eram acidas e lacerantes:

 - Raça de Víboras – Exclamava ele a seus ouvintes. – Quem ensinou vocês a fugirem da ira que está chegando? 

Com esta indagação inquietante, João iniciava seus discursos cada vez mais populares. Sua pregação era toda centralizada num chamado para a produção de “frutos de arrependimento”. João se identificava como sendo a “voz que clamaria no deserto” anunciada pelos profetas. Ensinava seus discípulos a não se apegarem ao fato de serem filhos de Abraão, pois até mesmo das pedras, Deus poderia constituir para si uma nova família. Segundo ele, o machado já estava posto na raiz para cortar toda árvore infrutífera e lançá-la ao fogo. Porém, este discurso duro e incisivo convergia rapidamente para uma mensagem de fé e esperança:

Eu batizo vocês com água para arrependimento, mas depois de mim virá alguém, e Ele vos batizará com Espírito Santo e com fogo. E eu não sou digno nem mesmo de amarrar seus sapatos (Mateus 3:7-11). 

Apesar da enorme humildade de João, foi Jesus quem o procurou para também ser batizado. Centenas de pessoas procuram João diariamente para descer as águas batismais, após confissão de pecados. O batismo era um rito já praticado no judaísmo, porém, João encontrou no gesto de submergir uma pessoa em águas, uma forma de externar arrependimento e realizar uma confissão pública de fé, fosse o candidato judeu ou gentil. Com isso, recebeu o título pelo qual é até hoje lembrado: “João, o Batista”. Embora Jesus não precisa passar por este procedimento, fez questão que João o batizasse, afim de cumprirem a justiça de Deus.

Durante a cerimônia, João viu os céus abertos e o Espírito repousar sobre Jesus em forma de pomba, enquanto a voz de Deus bradava: - Este é meu filho, e nele tenho prazer.  Acredita-se que João tenha tido cerca de trinta discípulos, aos quais orientou a seguir Jesus. Entre eles, dois se destacaram entre os doze apóstolos: João e André. Ao contrário de muitos pastores hodiernos, que se engalfinham por ovelhas que já estão no aprisco, ele fez questão de transferir para a cruzada do Messias, os seus melhores soldados. Sabia que o Reino precisava crescer. Seu ministério pessoal era apenas uma ferramenta de Deus operando para a glória Cristo.

Sobre seu “primo”, Jesus testificou que entre os nascidos de mulher, João era o “maior”, superior a todos os profetas que o antecederam (Mateus 11:11). O que destaque João numa galeria tão distinta, é que homens como Isaías e Miquéias apontavam para o Messias vindouro, e João, apresentou o Cristo presente. Assim que foi batizado por João, Jesus se dirigiu ao deserto onde durante quarenta dias foi bombardeado por todo tipo de provação. Após ser tentado no deserto, Jesus retornou a Betânia para iniciar seu ministério público, e ao avistá-lo, João testificou dizendo:  Aí está o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (João 1:36). Esta foi a primeira indicação publica de que Jesus era o Messias Prometido, e coube a João, a honra de apresentá-lo ao mundo.

Enquanto tudo está escuro, a chama de uma vela se destaca no breu. Porém, quando o sol alcança seu auge, a chama da vela sucumbe a uma luz superior. É muita pretensão para a lanterna, querer brilhar mais que o sol do meio-dia. Agora, Jesus seria o maior pregador da Galileia. E João, sequer, cogitou a possibilidade de uma competição pública sobre qual deles seria o “mensageiro de Deus” com maior popularidade. 

Ele sabia que não se compete com Jesus. Já seria uma imensa honra, se pudesse ajoelhar aos pés do Messias, e amarrar suas sandálias.

João, então, mudou o foco de seu ministério. Depois de pregar ao povo comum, havia chegado a hora de impactar a elite social de Israel, mesmo que sua mensagem não fosse bem aceita ali. A voz que clamava no deserto, passou a clamar nas cidades. E o resultado não foi nada bom para o resignado profeta. A exposição pública pode ser uma armadilha para homens portadores de uma mensagem que confronta o mundo. Entendeu a dica? O deserto é uma trava de segurança, que nos protege de nosso próprio ego.

Quando Herodes se casou com a própria cunhada Herodides, esposa de seu irmão Felipe, João Batista, criticou publicamente os pecados da casa real, causando desconforto no palácio. Embora a consciência cauterizada de Herodes Antipas I pouco se impostasse com as acusações de João, ele acabou decretando sua prisão para acalmar os “ânimos” da casa. 

João Batista foi preso em Peréia, acusado de incitar uma rebelião e levado a fortaleza de Macaeros, onde permaneceu encarcerado por dez meses, até ser condenado a morte.  

Após sua prisão, João Batista nunca mais pregaria em público novamente. Enquanto Herodes o mantinha encarcerado para “evitar” tumultos entre o povo, Herodides tinha planos bem mais aterradores. Durante um banquete de aniversário, quando o rei já estava sob o efeito do vinho, aquela mulher perversa fez com que sua filha Salomé (sobrinha de Herodes), adentrasse ao salão e dançasse sensualmente para o tetrarca. Inebriado com a beleza da moça, Herodes prometeu em público, que daria para ela qualquer presente que pedisse. Devidamente instruída por sua mãe, Salomé pediu ao rei que a presenteasse com a cabeça de João Batista numa bandeja de prata. Mesmo a contragosto, Herodes cumpriu com sua palavra e ordenou a execução de João.

Nos meses em que esteve preso, João Batista viveu momentos de terríveis convulsões emocionais. A prisão foi para ele, o que a caverna tinha sido para Elias. Por um instante, chegou até mesmo a duvidar de seu próprio ministério. Pediu para que alguns de seus discípulos fossem até Jesus em busca da confirmação de que Ele era mesmo o Cristo, ou se ainda haveria outro por vir. 

João sabia que o Messias viria ao mundo para implantar um Reino de Justiça, e agora, sendo ele mesmo uma peça fundamental deste reinado, estava injustamente preso, aguardando que se cumprisse a infame sentença capital. João se sentiu injustiçado, e talvez, até tenha interpretado que Jesus pouco se importava com esta condição. Afinal, um homem que transformava água em vinho poderia facilmente abrir as celas de uma prisão.

Mesmo sendo o “maior” entre o homem, João não estava imune ao medo e a frustração, tão inerente a condição humana. Ele havia dedicado sua vida em prol de uma causa santa, e agora seria recompensado com a morte.

A resposta de Jesus aos discípulos de João não foi dada apenas com palavras, e sim com ações: Jesus respondeu: “Voltem e anunciem a João o que vocês estão ouvindo e vendo: Os cegos vêem, e os coxos andam; os leprosos são limpos, e os surdos ouvem; os mortos são ressuscitados, e aos pobres é anunciado o evangelho. E bem-aventurado é aquele que não se escandalizar em mim (Mateus 11:5-6). 

Os discípulos voltaram maravilhados com o que viram e ouviram, e compartilharam com João tudo o que Jesus estava fazendo. E então, o seu coração arredio se apaziguou. Tudo tinha valido a pena. A voz que clamava no deserto tinha honrado o propósito da sua existência.

João teve a real compreensão do Reino dos Céus, e entendeu a plenitude de sua justiça. Perfeita e atemporal. A morte não silenciou a mensagem do Batista, pois o sucesso de seu ministério é evidenciado na obra do próprio Cristo, de quem fora escolhido por Deus como antecessor. 

João morreu em paz, absolutamente convencido que em Jesus, toda a sua vida havia valido muito a pena. Ele, João foi o último profeta da Antiga Aliança, sendo o único que presenciou em loco o pleno cumprimento das profecias messiânicas, além de participar ativamente do ministério de Cristo, batizando-o no Jordão e até mesmo compartilhando discípulos. Em João, se encerra o ministério profético do Antigo Pacto, e a profecia passa a existir como dom.

Uma das características mais interessante do ministério de João Batista, é que nas palavras do anjo que anunciou seu nascimento, ele viria no “espírito de Elias”. Muitos especulavam que João Batista era na verdade o profeta Elias reencarnado, assim como alguns acreditavam que Jeremias era a reencarnação de Moisés. Porém, a interpretação correta da expressão “no espírito de Elias”, seria algo como, “na virtude de Elias”, ou ainda, “no mesmo propósito de Elias”. 

Ambos tiveram ministérios muito parecidos, se vestiam de forma similar, e denunciaram os pecados da família real, enfrentando severa perseguição por causa de suas mensagens impetuosas.  Porém, a maior semelhança entre os dois profetas é exatamente o legado de avivamento deixado.

Elias viveu num tempo de idolatria generalizada, e conclamou os israelitas a se arrependerem de seus maus caminhos e se voltarem para Deus. João Batista nasceu numa época de religiosidade apostatada, e incitou os judeus ao pleno arrependimento, afim de receberem o Cristo que estava por vir. Podemos dizer que após Elias, o mundo nunca mais foi o mesmo, e uma nova revolução espiritual foi provocada em escala mundial através da mensagem de João, dividindo a história em duas partes. Ambos foram chamados para trazer os filhos de volta para a Casa do Pai, e através deles, corações foram convertidos e o Senhor encontrou morada entre os homens (Lucas 1:17).

Os dois ministérios terminaram de forma similar, com os profetas sendo levados ao céu. Mesmo que transporte usado por Elias tenha sido um redemoinho de fogo, enquanto o de João Batista, foi lamina de um machado. Em ambos os casos, os profetas nos deixaram, mas por meio deles, Deus permaneceu entre os homens. A chama da vela se apagou, mas, sua luz nunca deixou de brilhar!

terça-feira, 28 de março de 2017

A Música, a Arte e a Adoração

Há mais restauradora alegria em cinco minutos de adoração 
do que em cinco noites de folia.
(A. W. Tozer)


Eu nasci no super-estimado “berço evangélico”. E lá se vão mais de três décadas. Posso dizer que testemunhei em loco um longo processo de transformação. Vim de uma época onde a “bateria” era proibida em muitas igrejas por ser um instrumento inventado por Satanás. Recentemente, estávamos tocando um “rock gospel” durante um louvorzão, quando me lembrei deste ensinamento datado, e pensei: - Quem diria! 

Mas, quem é o dono da razão? Os saudosos pastores aversos ao repique de chimbals, bumbos e tom-tons, ou os líderes modernos que transformaram o punk, o folk, o pop e o rap em ferramentas de evangelismo e louvor?

Eu sei que você nem titubeou para responder. Para este assunto, as posições ideológicas são muito bem estabelecidas. As convicções são raízes de berço. 

E se eu te disser que não temos uma resposta definitiva para esta questão?

Até onde sei, não existe um manual divino que classifique instrumentos e ritmos musicais em “santificados” e “amaldiçoados”. O céu não nos enviou um CD com as “10 + do Paraíso”, afim de termos um parâmetro se os hits celestes são forrós, pagodes, tangos ou frevos. 

Tenho certeza, que neste exato momento, alguém imediatamente se lembrou de Mateus Iensen, Irmãs Falavinha, Luiz de Carvalho, Feliciano Amaral, Alceu Pires e Josias Meneses, como exemplos de "hinos" que agradam a Deus. Outros, sequer, sabem quem são estes “velhos”, e acreditam que nas rádios do céu, o "hit parade" é liderado por Damares e Cassiane. Ou Tales e Anderson Freire. Eu ouvi alguém gritando Voz da Verdade?

Não se engane pelas emoções. A verdadeira adoração nunca está vinculada a rótulos. Ela excede os nossos gostos pessoais. Uma música não é menos abençoada (ou abençoadora) por que não gostamos dela. E nem o contrário.

A grande verdade, é que uma boa música cristã, independente do gênero, estilo ou período, só pode ser considerada genuinamente espiritual, se tiver a influência do Espírito Santo em sua composição. E em cada execução. Caso contrário, será apenas uma boa música. Agrada aos ouvidos, mas não edifica.

A palavra “música” é relativamente nova, e vem do grego “mousikê”, que significa “arte das musas”. Os historiadores recorrem a pré-história para tentar encontrar sua origem nos rituais religiosos de povos primitivos. Mas, é claro, que como cristãos, sabemos que a música antecede as origens da própria terra, e seu propósito é muito maior que honrar meras divindades ficcionais. 

A música é a arte mais influente no mundo, estando presente em todas as sociedades do planeta, desde os acordes bem delineados das grandes orquestras europeias, até os murmúrios silábicos dos cantos tribais.  O fato de cantar, ou ouvir uma música, pode desencadear poderosos efeitos emocionais (e espirituais) num indivíduo. Exatamente por isso, as mídias mais influentes sempre transmitem sua mensagem aliada a uma bem planejada trilha sonora. Pense em um filme memorável e logo uma melodia ecoará em seus ouvidos.  A música rotula mortais como deuses, estabelece padrões de comportamento, elege políticos que nada tem a oferecer ao seu eleitorado (exceto um bom "jingle") e transforma grupos sociais em manadas guiadas por timbres eletrônicos ensandecidos.

Nas mãos humanas, a música, que em essência é neutra, se torna uma poderosa ferramenta para manobras de massa. Então, a grande questão é como devemos usá-la, e esta resposta pode ser encontrada nas páginas da Bíblia.  

Podemos dizer que a música não é uma invenção humana, já que ela está presente no céu. Antes dos homens existirem, estrelas e anjos já cantavam para louvar ao Criador, e os seres angelicais faziam uso de instrumentos musicais criados pelo próprio Deus (Jó 38-4-7 / Ezequiel 28:13-15). Como a música chegou ao homem ainda nos é um mistério, mesmo que seja possível pelo texto bíblico, vislumbrar o Éden como a porta de entrada. 

Desde os primeiros capítulos da Bíblia, encontramos a música como uma importante ferramenta de comunicação, seja entre os homens, ou da humanidade para com Deus. Em Gêneses 4:21, somos apresentados a um descendente de Caim chamado Jubal, identificado como o primeiro grande musicista da história, pai de todos os harpistas e flautistas.

A partir daí, de acordo com o livre arbítrio concedido ao homem, a música está sempre presente, seja em rituais religiosos, cerimonias sociais, convocações de guerra e cultos a divindades variadas. Assim como na tecnologia, na medicina e até nas redes sociais, o bem e o mal não está na ferramenta usada, e sim, nas mãos que a utiliza. Se Nabucodonosor usou a música como uma forma de opressão e ameaça (Daniel 3:15), Davi preferiu usar seus dons musicais para trazer conforto e libertação (I Samuel 16: 19-23). O céu nos entrega presentes valiosos, mas nós escolhemos como usá-los. 

Entre os maiores exemplos bíblicos do bom uso da música como uma ferramenta de louvor, adoração e edificação, podemos citar o rei Josafá, que preferiu cânticos ao invés de armas na maior guerra que enfrentou (II Crônicas 20), Paulo e Silas, que promoveram um avivamento na cidade de Felipo, adorando ao Senhor dentro da prisão (Atos 16), e o próprio Jesus Cristo, que num momento de grande angustia as vésperas de sua morte, cantou um hino com seus discípulos (Mateus 26:30 / Marcos 14:26). O povo de Israel era versado na arte dos cânticos e impressionavam as nações contemporâneas pela sua qualidade musical (Salmo 126). O Velho Testamento possui um verdadeiro hinário que conta através de canções memoráveis a profícua relação entre Deus e seu povo, que é o livro de Salmos, dos quais muitos eram cantados já na escadaria do Templo.

Em todos estes casos, a música fez parte de um contexto de adoração. Adorar é mais que cantar. A música em si não adora ao Senhor. Nossas ações sim.

Meu irmão mais novo, Jhonatas, liderava um grupo de coreografias na igreja. Aprendi muito cedo, que a “dança” era um pecado horroroso, e agora, estava assistindo a verdadeiros “números musicais” durante o culto, com direito a coreografia artística e efeitos especiais. Um dia, perguntei a ele qual era a sua motivação interior para adorar a Deus através de movimentos ritmicos e artísticos. Não seria melhor pregar, cantar ou falar em línguas? Sua resposta foi simples e poética: 

- Estamos ensaiando! Somos a Noiva de Cristo o esperando para a maior dança da história!

Não concorda? Este é um direito seu. Mas, conheço algumas pessoas que concordariam com este argumento em gênero, número e grau. Após a travessia do Mar Vermelho, Miriam liderou as mulheres hebreias numa celebração de ritmos e danças (Êxodo 15:20). Ao ver a Arca da Aliança voltando para Jerusalém, Davi louvava a Deus “bailando e saltando” (II Samuel 6:16). 

Em Apocalipse 4, ao narrar sua visão na Ilha de Patmus, João testemunha que ao redor do Trono do Altíssimo, acontecia um espetáculo de adoração que saltava aos olhos: relâmpagos, trovões, vozes, lâmpadas de fogo, os vinte e quatro anciões que em meio ao louvor executavam movimentos ritmados com suas coroas, e a representação quase teatral dos seres viventes de múltiplas faces (leão, águia, boi e homem). Isso sem contar a exímia coreografia das asas angelicais descritas pelo profeta em Isaías 6:2, que reverenciavam a santidade de Deus. Habilidades artísticas, sendo usadas para adorar ao Altíssimo. Na Terra e no Céu.

A arte pode ser definida como uma habilidade (ou disposição) dirigida para a execução de uma finalidade prática ou teórica, que é realizada de forma consciente, controlada e racional. Por esta definição pragmática, já é possível um entendimento que a arte pode (e deve), ser usada como uma ferramenta de adoração, já que nosso culto ao Senhor, também deve ser consciente, controlado e racional.

Em Romanos 12:1, o apóstolo Paulo nos ensina que devemos apresentar o nosso corpo à Deus, como um “sacrifício vivo”, santo e agradável, é que este seria nosso culto racional. No grego, o termo equivalente a culto é “latreya”, que significa “serviço”. Já a palavra “racional” vem de “logikos”, que nos remete a ideia de algo prático, lógico, raciocinado.

Considerando que o ato de sacrificar constitui-se no fato de imolar uma vítima como oferta a uma divindade afim de expiar uma culpa ou oferecer oblação, o que Paulo nos ensina é que, diante do Senhor, devemos sacrificar nossos desejos e intenções, matar nossas próprias ambições, e usar nossas habilidades e disposições com o único propósito de agradá-lo. E este processo serviente, apesar de santificado, precisa ser realizado de forma consciente, controlada e racional.

Um “artista” é alguém envolvido na produção da arte, empregando sua criatividade e habilidades para a transmissão de uma mensagem. Assim, todo artista pode usar sua arte para o bem ou para o mal, seja buscando transmitir valores corrompidos, ou honrando ao Senhor com seu serviço. Tudo passa pela consciência. 

No século XVIII, os europeus desenvolveram o conceito das belas-artes, classificando inicialmente seis delas: MÚSICA, DANÇA, PINTURA, ESCULTURA, ARQUITETURA e POESIA. Já no fim século XIX, os irmãos Lumière, desenvolveram a tecnologia cinematográfica (CINEMA), que através do “Manifesto das Sete Artes” (escrito pelo italiano Ricciotto Canudo), passou a ser conhecido como a sétima arte. De forma extraoficial, outras manifestações artísticas passaram a integrar esta lista a partir do último século: FOTOGRAFIA, QUADRINHOS e GAMES.

Todas estas manifestações artísticas são prodigiosas formas de se transmitir uma mensagem, estabelecer conceitos e transformar a sociedade na qual são disseminadas. Assim, todo artista é um formador de opiniões, um influenciador de gerações e um artesão de mentes.  Exatamente por isso, as artes são uma poderosa ferramenta de evangelização e discipulado, o que nos remete automaticamente a adoração do serviço racional. E estas ferramentas já são usados por homens e mulheres de Deus a muito tempo. Elas ultrapassam até mesmo os limites da existência humana.

Adorar a Deus é uma entrega sincera de corpo, alma e espírito, libertando-se de convenções e legalismo, sem abrir mão da racionalidade, para da forma mais sincera possível, e usando aquilo que temos de melhor, celebrar ao Criador do Universo, cantando, gritando, dançando, falando em línguas ou até mesmo em contido e profundo silêncio.

Independentemente de sua arte, o “ADORARTISTA”, ou seja, o “artista adorador”, precisa derramar seu coração no altar, demostrando amor ao Senhor de forma honesta, pura e perfeita, sendo verdadeiro consigo e com Deus. Não existe qualquer demérito em ser extravagante, ousado e criativo, desde que estas habilidades sejam depositadas aos pés de Jesus (Lucas 7:37-38). 

Na adoração, não existem regras absolutas pré-definidas por padrões humanos, mas, sempre haverá uma condição a ser seguida, estabelecida pelo próprio Cristo: Espírito e Verdade (João 4:23).

sábado, 25 de março de 2017

Apenas um toque

Coragem é a resistência ao medo, domínio do medo, e não a ausência do medo.
(Mark Twain)


Quando lemos o livro de Levíticos, nos deparamos com diversos pontos da lei mosaica, que de forma muito peculiar, nada mais são do que um imenso cuidado com a saúde pública de Israel. Entre muitos exemplos, podemos citar a proibição ao consumo de alguns alimentos, o rigor exigido nos rituais de purificação e o isolamento obrigatório dos portadores de certas enfermidades. Obviamente, para olhos ocidentais, alguns tópicos da lei soam cruéis e arbitrários, mas, é inegável que esta legislação serviu ao seu propósito junto a um povo de “dura cerviz” (Deuteronômio 9:6).

A Lei de Moisés foi fundamental para o estabelecimento de Israel como nação, fazendo com que o bem comum sobrepujasse qualquer individualidade. A lei era fria e imparcial, e não permitia concessões. Porém, quando aproximamos nossos olhos da história, percebemos que este mecanismo funcional e muito bem engendrado, ao mesmo tempo em que beneficiava o coletivo, era responsável pelo drama vivido na individualidade de muitos. E um  destes muitos casos, tornou-se  muito conhecido, podendo ser encontrado nas páginas do Novo Testamento.

Numa época onde não existiam “absorventes higiênicos”, “sabonetes íntimos” ou “consultas regulares ao ginecologista”, o ciclo menstrual das mulheres era tratado de maneira rudimentar. Segundo Levíticos 15:19-28, 18:19 e 20:18, durante sua menstruação, uma mulher era considerada “imunda” e por duas semanas, não poderia ser tocada por ninguém, nem mesmo pelo marido. Os sete primeiros dias consistiam no período de “imundice” e os demais seriam destinados para a purificação.

Na prática, esta era uma forma de coibir a transmissão de qualquer doença que pudesse ser contraída pelo contato com secreções humanas, e acabava contribuindo diretamente para a alta taxa de natalidade entre hebreus, já que as relações sexuais sempre aconteciam no período de maior fertilidade das mulheres. Este era um ciclo rotineiro dentro daquela cultura, porém podia ser agravado em casos de distúrbios hormonais ou períodos menstruais prolongados... Enquanto houvesse sangramento, a mulher seria considerada imunda e estaria privada do contato direto com qualquer outra pessoa, até mesmo própria família, não podendo, sequer, compartilhar de talheres, roupas ou assentos.

Mateus, Marcos e Lucas registram a história de uma mulher que sofria de hemorragia constante, estando a mais de doze anos privada do toque de seus entes queridos. Não sabemos o seu nome e nem sua idade, mas, as poucas informações dadas pelos evangelistas são o suficiente para entendermos a gravidade da situação. Antes da hemorragia, ela tinha uma vida feliz e abastada com sua família. Mas, a partir do momento que o fluxo contínuo teve início, seu mundo desabou. Na tentativa de encontrar uma solução para o mal, aquela mulher empregou todos os seus recursos em consultas médicas improdutivas e medicamentos ineficientes. Nada surtiu efeito. Pelo contrário, a sua saúde só fazia piorar. A cada dia a pobre mulher estava mais debilitada.

Conviver com uma hemorragia contínua, já em si um grande fardo a carregar. Cólicas constantes, dores lombares e abdominais, desarranjo hormonal e odores desagradáveis nem eram os maiores incômodos daquela mulher. Ela sofria de um mal ainda maior: a solidão. Seu sofrimento físico, com a perda diária de muito sangue, só não era maior que a opressão psicológica provocada pela privação familiar e social. Sem mais dinheiro para investir em tratamento, nada sobrava para lhe dar esperança. Uma mulher em sua condição era proibida por lei de frequentar lugares públicos. Ela não podia fazer compras, passear com os filhos, tomar  chá com suas amigas ou participar do Culto ao Senhor. Além de conviver com seus “demônios interiores”, ainda era preciso exteriorizar a miséria, pois sempre que alguém se aproximasse, era sua obrigação civil informar a própria condição condição: “Sou Imunda! ”. Como deveria se sentir cada vez que precisava proferir essas palavras? Aos olhos da lei, ela não passava de um agente contaminador.

Sem amparo na medicina de seu tempo, aquela mulher teve um novo lampejo de esperança quando ouviu falar de um jovem pregador, que por onde passava, deixava para traz um rastro de prodígios miraculosos. Até ali, Jesus já tinha curado leprosos e aleijados, expulsado demônios, transformado água em vinho, multiplicados pães e feito o mar se acalmar. Tudo isso, o credenciava como um grande operador de milagres. O único capaz de dar um fim para aquele imenso sofrimento. E ela iria as últimas consequências para tocar em suas vestes, pois tinha certeza que isto bastaria.

Jesus estava apregoando seu evangelho na província dos gadarenos quando um homem de alta posição social chamado Jairo, se lançou aos pés do Senhor, pedindo que Ele socorresse sua filha que estava muito doente. Algumas horas depois, aquela menina seria trazida de volta a vida por Jesus, mas, é no trajeto até sua residência que iremos testemunhar um ato de muita fé e coragem memorável.

Enquanto Jesus caminhava, uma grande multidão se aglomerava ao seu redor. Discípulos, seguidores, simpatizantes e curiosos se amontoavam em torno do Messias, formando uma barreira humana quase intransponível. Seria impossível chegar até Ele sem esbarrar em ninguém. Aquela mulher sabia que só teria uma chance na vida de encontrar-se com o Salvador, mesmo que para isso, tivesse que atravessar uma multidão, tocando em muitas pessoas. Seria inevitável a contaminação pública, o que certamente, implicaria nas punições previstas em lei.

Mas, uma certeza absoluta lhe dava coragem para seguir: - “Eu só preciso de um toque”.

Fraca e debilitada, ela começou a jornada por entre aquele mar de gente. Certamente, tentou não tocar em ninguém, mas, bastaram alguns segundos para que o primeiro transeunte esbarasse nela. A culpa a corroeu por ter “contaminado” um inocente. Porém, era muito tarde para desistir. Já que tinha chegado até ali, deveria continuar. O progresso foi milimétrico e pesaroso. Os anos de sofrimento a transformaram num farrapo humano. A sua frente, homens empolgados e mulheres plenas de saúde disputavam cada pequeno espaço. O esforço seria sobre-humano. Exaurida, quase ao ponto de desmaiar, viu pela primeira vez um relance de Jesus. Podia vê-lo, mas não o alcançar. Para isso, era necessário avançar ainda mais.

Ela então, retirou forças da única fonte que ainda restava, a fé.... Agora faltava pouco. Seu milagre estava muito perto... Então, alguém correu afoito contra ela. Seu corpo não aguentou o impacto e caiu. O chão estava mais próximo do que Cristo, e o Mestre parecia se afastar rapidamente. Teria que ser naquela hora.... - Mas, como? A esquelética mulher esticou seu braço até sentir os ossos estalarem. Os milímetros pareciam quilômetros. Câimbras terríveis laceravam a ínfima musculatura. Ela cerrou os olhos, implorando a ajuda de sua alma.  - Por favor! Só mais um pouco. Um último esforço! Infelizmente, não havia mais nada ali...

E de repente, algo acontece. Jesus desacelera propositalmente o passo. Uma brisa suave corta a multidão e sopra o manto de Cristo. O último estender de um braço. O sútil lufar do vento. Ela sente a ponta de seu dedo médio encostar no tecido. Na orla do manto... O mundo em câmera lenta... Seu corpo é abraçado pelo calor. Ela sente o sangue parar de escorrer. Uma força a muito perdida move seu corpo do chão. A mulher se levanta. Ela está estática e as pessoas seguem apressadas, deixando-a para trás. E, então, Jesus para também. Ele se volta a turba e diz: -  - Alguém me tocou... Pedro estranha o comentário, pois centenas de pessoas o estão tocando desde que desembarcou na praia.

Então, o Senhor Jesus revela o quão poderoso um toque de fé pode ser: - Alguém me tocou de um modo muito especial... Pois de mim saiu virtude!

Quando aquela mulher anônima tocou a orla de seu manto, em uma fração de segundo, Jesus pode contemplar seu coração e sua mente. Ele sentiu a dor, testemunhou o sofrimento, "ouviu" cada lágrima. Cristo foi impactado pela  convicção, coragem, e acima de tudo... por sua fé.  Para quem se viu abraçada a tantas esperanças enganosas, ela buscou a verdade. Diante do poder ameaçador da morte, sua opção foi recorrer a vida. Jesus não bateu na porta de sua casa, não lhe enviou um convite formal, não a chamou pelo nome, não lançou um olhar exclusivo para ela.  Não haveria garantias de que Jesus a iria atender, e ela nem esperava por tamanha complacência. Aquela mulher entendeu que o milagre dependia “dela” e não “Dele”. Pela fé, tinha certeza absoluta, que em Jesus, estava a cura e o fim de seu sofrimento. Em sua condição, ela se negava a tocar "em" Jesus, pois sentia-se indigna de tamanha ousadia. Tudo o que almejava era tocar na sua “roupa”, e armada apenas por uma crença, ela foi e o tocou. Jesus sentiu o poder da fé que nela residia, e mediante o toque sutil, liberou virtude abundante. A cura física foi instantânea. A força do milagre imediatamente a tirou do chão. Enquanto olhava para suas mãos amareladas ganhando novas cores, ela escutou a voz de seu Salvador dizendo: - Quem me tocou?  

Antes de receber o convite para visitar a casa do centurião romano Cornélio, o apóstolo Pedro teve uma visão, onde vários animais considerados impuros pela lei lhe eram oferecidos como alimento. Ele recusou terminantemente a oferta, dizendo que jamais em sua vida, havia comido algo impuro e aquela não seria a primeira vez. Surpreendentemente, Pedro foi repreendido pelo Senhor, pois nenhum homem pode banalizar algo que o próprio Deus santificou” (Atos 10:15). 

Quando olhamos a história da mulher do fluxo de sangue pelas “lentes” da lei, o que vemos é uma gigantesca aberração moral. Em seu trajeto até Jesus, ela teve contato direto com dezenas de pessoas, tornando "impura" cada uma delas. Estas pessoas tocaram em outras pessoas, e assim se desencadeou uma rede de contaminação social, que culminaria em Jesus, o único toque realmente premeditado pela mulher.  Para olhos pragmáticos, Jesus agora também estava impuro, e quem ele tocasse, se contaminaria também. A lei generaliza, se faz valer de dados e estatísticas. Enxerga o todo e age em prol dele. Jesus olha a multidão, mas, enxerga pessoas. Ele sabe quem está “puro” diante da lei, mas carrega manchas em seu coração. E também enxerga os esquecidos e humilhados, “impuros” diante da sociedade, mas cujo interior é tão alvo quanto a neve.

- Quem me tocou? 

A pergunta provocou um silêncio sepulcral na multidão. Jesus parecia bastante incomodado com alguma atitude desrespeitosa vinda de alguém camuflado entre os seus seguidores. E agora? Deve a mulher se expôr e arcar com as consequências de seus atos? Ou seria mais prudente manter-se anônima e ir para casa abraçar a família? Não houve tempo para este tipo de questionamento, pois ela prontamente atendeu a voz de seu Senhor. Imergindo da multidão, pela primeira vez voltou seu olhar para os olhos de Cristo, e confessou: - Foi eu quem te tocou! 

Ainda tremula, ela se aproxima de Jesus esperando uma repreensão. Seria justo. Uma mulher tocando em um homem. Uma “impura” profanando a pureza. Uma excluída diante do rabi.  Uma “pecadora” diante do Santo. Mas, o que recebe de Jesus é um olhar de compaixão... Encorajada pelos olhos ternos do Cristo, ela testifica de sua condição e de como fora curada instantaneamente (Lucas 8:47). Jesus, com a autoridade de um mestre da lei a conforta: - Não tenha medo de represálias e vá em paz para a sua casa. Com a autoridade do Filho de Deus, ele retribui o gesto da mulher, tocando profundamente sua alma: - A tua fé te salvou!  E uma multidão embasbacada aprendeu na prática uma lição que Pedro precisaria revisar anos mais tarde:

Ninguém pode declarar “imundo” a quem o próprio Cristo “purificou”!  

Quando Jesus é o destino, até mesmo o que parece ser um rastro de imundície se revela um caminho de Salvação!

quinta-feira, 23 de março de 2017

Vasos de Barro

A humildade é a única base sólida de todas as virtudes.
(Confúcio)


Os primeiros raios de sol entravam pela sua janela, quando voz do Senhor acordou Jeremias: - Levanta-se, vá até uma olaria, porque ali, tenho algo para te falar. Ainda meio sonolento, o profeta levantou, lavou o rosto, se vestiu e caminhou pelas ruas de Jerusalém até chegar à casa do oleiro. Quando lá chegou, o artesão preparava a argila com a qual moldaria um belo vaso.

Jeremias se assentou em um banquinho de madeira, enquanto observava o oleiro trabalhar. A argila, previamente amassada para ganhar consistência e uniformidade, foi colocada sobre uma pequena mesa circular ligada a polias e pedais. Enquanto o oleiro fazia a mesa girar com seus pés, as mãos hábeis moldavam o barro. Pouco a pouco, aquela massa marrom começou a ganhar contornos e formas. Uma base robusta, um tronco afilado, uma boca habilmente esculpida. As mãos do artista corriam com agilidade por toda a estrutura, moldando-a por fora, enquanto esvaziava seu interior. Um belíssimo vaso estava surgindo.

Porém, um pequeno acidente colocou em risco toda a fabricação. O vaso se quebrou ainda nas mãos do oleiro. Jeremias se levantou assustado, numa tentativa nula de oferecer ajuda. O que poderia ele fazer? Percebeu que a serenidade do oleiro não condizia com a gravidade da situação. Tranquilamente, o artesão pegou o vaso quebrado, o levou para a mesa de preparo, e o amassou até virar barro novamente. Ele iria recomeçar do zero.

Ao final daquele dia, um vaso novo e perfeito estava pronto para ser queimado na fornalha da olaria. Uma matéria prima abundante e comum, havia se transformado em obra de arte, mesmo que durante o processo, tenha sido necessário um recomeço. E qual a mensagem de Deus para o profeta após esta aula prática de artesanato?

- Não poderei eu fazer de vós como fez este oleiro, ó casa de Israel? Diz o Senhor. Eis que, como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão, ó casa de Israel. (Jeremias 18:6)

Barro nada mais é do que a mistura de argila e água. Basicamente, é o pó da terra bem hidratado. Foi esta a matéria prima escolhida por Deus na criação do homem. O barro "in natura" é abundante e não possui valor comercial elevado. Mas, em mãos talentosas, se transforma em peças valiosas, disputadas por colecionadores em leilões da alta elite. O mérito não é do barro. É do oleiro.

Fomos feitos do barro para que Deus manifestasse sua glória através de nossa existência. Sem competições egocêntricas. Podemos dizer que o Espírito Santo de Deus que habita em nós é uma pepita de ouro depositada num recipiente de argila. Se fossemos feitos de ouro, a vaso teria mais valor que o tesouro nele guardado.  O apóstolo Paulo nos advertiu em II Coríntios 4:7 que a excelência do poder que há em nós, vem (e é) de Deus, e Ele deposita seus tesouros dentro de vasos comuns.

Mas, não se sinta menosprezado por ser feito de barro. É exatamente esta condição que atrai sobre nós a misericórdia e o cuidado de Deus. Paulo se alegrava desta fragilidade. Quando se sentia fraco, na verdade estava mais forte, já que o poder de Deus se aperfeiçoava em suas fraquezas (II Coríntios 12:9-10). No Salmo 103, Davi faz uma dissertação ainda mais aprofundada sobre o tema, concluindo que “as quebras” são inerentes ao processo de fabricação do vaso. A matéria prima é quebradiça, e Deus conhece estas limitações.

Davi começa o Salmo 103 conclamando sua alma para bendizer ao Senhor com todas as forças do seu ser. O motivo desta adoração é citado já no verso abaixo: - “Não se esqueça de nenhuma de suas bênçãos” (Salmo 103:2). Deus está inabalável no seu Santuário e nenhuma ação humana pode desestabiliza-lo. Ele é o dono do universo e tem cada fragmento da imensidão sobre seu controle. Deus não tem nenhuma obrigação para com o ser humano, já que este tem lhe voltado as costas e traído sua confiança desde os primórdios do tempo. Mesmo assim, o Senhor tem cuidado de nós, desde quando ainda éramos informes (Salmo 139:15-16).

Deus move suas mãos em nosso favor sem que haja qualquer obrigação nisto. Ele cuida de nós simplesmente porque assim o deseja. De uma forma inexplicável, Deus nos ama acima de tudo. Dele provém a vida, o ar que respiramos, o alimento que nos sustenta, a água que sacia nossa sede, a força vital que nos mantem em pé. Se Deus decidisse cessar seus cuidados para conosco no dia de hoje, poderíamos viver outros cem anos, que ainda faltariam dias para agradecer pelo que ele já nos tem feito.

Porém, nossa ingratidão fala sempre mais alto, e tratamos Deus como um gênio da lâmpada com a obrigação de atender nossos desejos mesquinhos. Se isso não acontece, o substituímos em nosso coração. Mas, ao contrário do homem, tão reciproco em suas relações, Deus se mantem fiel apesar de nossas infidelidades, e seu cuidar nunca cessa (II Timóteo 2:13 / Salmo 103:17).

Ser grato é demostrar reconhecimento por alguém que prestou um benefício, favor ou auxilio. É uma dívida de honra que deve ser quitada para não manchar a índole ou o caráter de um indivíduo. É um ato de nobreza obrigatório e uma virtude que ressalta aos olhos de Deus aqueles que o amam de coração. A verdadeira gratidão não é aquela mostrada quando conseguimos um bom emprego, conquistamos a casa própria, trocamos de carro, fazemos a viagem dos sonhos ou obtemos uma promoção ministerial. Apesar de também precisamos ser gratos por cada benção alcançada (bem como pelas que ainda não conseguimos ou sequer vamos alcançar), devemos primeiramente ser gratos a Deus pelo que Ele “é” e não pelo que Ele “faz”. Deus sabe que somos feitos de pó, e mesmo assim revela em nos a sua glória (Salmo 103:14). Não porque somos merecedores, mas, por que Ele é generoso. E paciente.

No Salmo 103, Davi não conclama sua alma para ser grata pelas vitórias alcançadas, pelas riquezas acumuladas, pelo palácio luxuoso ou pelo crescimento monumental de Jerusalém. Ele quer que sua alma louve ao Senhor por coisas muito mais valiosas, que transformam as preciosidades da terra em latarias enferrujadas:

- Bendiga ao Senhor a minha alma! Bendiga ao Senhor todo o meu ser! É ele que perdoa todos os seus pecados e cura todas as suas doenças, que resgata a sua vida da sepultura e o coroa de bondade e compaixão.  O Senhor faz justiça e defende a causa dos oprimidos. O Senhor é compassivo e misericordioso, mui paciente e cheio de amor. Não acusa sem cessar nem fica ressentido para sempre; não nos trata conforme os nossos pecados nem nos retribui conforme as nossas iniquidades, ele afasta para longe de nós as nossas transgressões. Como um pai tem compaixão de seus filhos, assim o Senhor tem compaixão dos que o temem. (Salmo 103:1-14 – NVI ‘resumo’).

Deus é um oleiro que trata seus vasos como filhos. Deus é um pai que esculpe seus filhos como um vaso. Ele conhece muito bem o vaso e ainda melhor o barro.

O cristão precisa ter a consciência de que é proveniente do pó da terra. Assim sendo, somos vasos de barro na mão do oleiro e é necessário que estes vasos estejam desembocados para que o Espírito Santo os encha com o óleo precioso da unção. Uma vez que o crente entende que ser cheio do Espírito é uma dádiva concedida e não um mérito conquistado, ele estará apto a exercer com dignidade as atribuições que o Espírito lhe conceder. Vasos se sujeitam integralmente ao oleiro. Filhos respeitam e são gratos aos seus pais.


terça-feira, 21 de março de 2017

Quanto vale a fé?

Aprendi que deveríamos ser gratos a Deus por não nos dar tudo que lhe pedimos.
(William Shakespeare)


O mundo é cada vez mais voraz, e a sociedade de hoje, se tornou frívola e hedonista. Vivemos em prol do capitalismo, buscando obter cada vez mais, afim de padronizarmos nosso estilo de vida as comodidades hodiernas. A necessidade de possuir coisas novas constantemente, inibe nosso senso de gratidão por tudo que já temos. Almejamos mais potência, mais beleza, mais interatividade, maior capacidade de armazenamentos de dados, melhor sinal de satélite, maior cobertura de rede, 4G, wi-fi, tv a cabo, wireless...

São tantas novidades para consumir, que na verdade, acabamos consumidos por elas. E nem percebemos. Num mundo que se comunica com imediatismo, as pessoas quase não se olham nos olhos. Movemo-nos cada vez mais rápido, e a cada ano, um número maior de indivíduos não consegue chegar ao seu destino. A agilidade nos tirou a paciência, o imediatismo nos roubou a esperança, e o consumismo matou a gratidão.

Até o Evangelho, puro e simples, tem sido deturpado por líderes gananciosos que constroem impérios megalomaníacos pregando mensagens recheadas de revanchismo, egoísmo e ambições. Fé virou moeda de barganha, e o Reino Espiritual, passou a ser medido por bens materiais. De muitos púlpitos, estúdios de rádio ou TV, somos bombardeados com promessas de prosperidade, riqueza e fartura. Infelizmente, por falta de maturidade espiritual, muitos sucumbem a esta irresponsabilidade religiosa, e inadvertidamente, acabam decepcionados com “DEUS” quando as coisas não vão bem.

A grande verdade, é que vivemos em uma geração espiritualmente fraca, teologicamente rasa e miseravelmente ingrata.

Em 31 de outubro de 1517, Martin Lutero afixou na porta da Abadia de Westminster – Alemanha, suas 95 teses contra as doutrinas dogmaticas do Catolicismo Romano. A gota d´água que entornou o balde da Reforma Protestante, foi exatamente, a cobrança de indulgências praticada nos templos, onde fieis incautos “pagavam” para “reduzir” sua estada no “purgatório”.

Pagava-se para ver o osso de um apóstolo ou os cravos da cruz de Cristo. Assim, dependendo do “valor” investido, horas, dias e anos iam sendo abatidos no tempo em que a pessoa ficaria no limbo espiritual.  Os reformadores entendiam que lucrar com a fé alheia, é o mais baixo nível que uma instituição religiosa pode descer. Lutero baseou toda a sua tese no texto de Habacuque 2:4, repetido em Romanos 1:17 e Hebreus 10:38: 

- O justo viverá da fé

E fé, é algo que não se negocia.

A palavra indulgência vem do latim e pode ser interpretada como "disposição para perdoar", generosidade, clemência, misericórdia ou absolvição. Nada disso se compra. Se recebe. É gratuito. Na doutrina católica do século XV, a indulgência era a forma do pecador obter perdão parcial de seus pecados fora dos sacramentos. 

Perdão parcial? Fora dos sacramentos?

Biblicamente falando, só existe uma fórmula para a salvação. Crer em Jesus (Marcos 16:16). Esta é a regra. A salvação em Cristo é plena. Não há parcelamento, amortização ou descontos. Valor total e pago a vista através do sangue derramado na cruz. Só Jesus perdoa. Só Jesus tem o poder de salvar.  Ninguém salva a si mesmo. O homem, por mais rico que seja, não tem condições de pagar o preço da redenção: 

- Nenhum deles, de modo algum, pode remir a seu irmão, ou dar a Deus o resgate dele. Pois a redenção da sua alma é caríssima (Salmo 49:7-8).

Não se compra a salvação. Não se barganha a alma. Não se negocia a fé.

Mas, como diriam os antigos, Martin Lutero e todos os reformadores devem estar se “revirando em seus túmulos” com os rumos tomados pelo protestantismo. Líderes de grandes comunidades cristãs tem se dedicado a reinventar, inovar e atualizar a velha indulgência romana. 

Vassouras que varrem o mal da casa. 
Travesseiros que garantem bons sonhos. 
Frascos com ás águas do Rio Jordão. 
Canetas ungidas para assinar grandes contratos. 
Lenços para curar a gripe demoniaca. 
Sal para abençoar o alimento. 
Camisa com marcas de sangue apostólico. 
Taxas. Taxas. Taxas.

Tudo a preço de varejo. E sim. Aceita-se cartão de crédito. Qualquer bandeira.

Como diria minha mãe, não confunda “bife de caçarolinha” com “rifle de caçar rolinha”. Estimular a fé de alguém é uma atitude louvável. Negociá-la é bem diferente. Estas práticas enchem os templos com uma multidão de aleijados espirituais, que não conseguem caminhar sozinhos pela fé. Se acomodaram com suas muletas. Confiam em homens sem confiar em Deus. Pagam por um milagre, sendo que a igreja recebeu a autoridade para realizá-los, sem custo financeiro algum. 

E fica pior. Quando o milagre acontece, o crédito é dado ao “fulano de tal”, amado líder e mentor espiritual. Mas, se nada acontecer, aí, a culpa é de Deus. Está tudo errado. Não fomos chamados ao comércio, e sim, para a adoração. Para prestar culto ao Senhor.

No contexto religioso, “o culto” pode ser definido como a mais alta homenagem que se presta a uma divindade. Outros sinônimos para o termo na língua portuguesa são: “veneração”, “homenagem”, “admiração”, “reverência” e “adoração”. Fato inegável, é que desde o Éden, período em que o homem esteve diariamente na companhia de Deus, a humanidade tem sofrido com a ausência desta relação intimista com seu Criador, sem ao menos compreender que suas maiores inquietações são oriundas da falta de um contato íntimo e pessoal com Deus.

Todo homem é composto de corpo, alma e espírito, e este espírito veio de Deus e anseia voltar para Deus. E como muitas vezes, nos desligamos completamente do espiritual em prol de coisas efêmeras e temporais, nosso espírito se conturba na ânsia de estar na presença do Senhor, causando a deficiência da tão desejada “paz de espírito”. Um culto é exatamente a exteriorização desta necessidade, quando abrimos mão de afazeres hodiernos e compromissos extraordinários, para dedicarmos um tempo específico ao nosso Deus. 

Em síntese, ele pode ser definido como sendo o encontro do “homem com Deus”, podendo ser praticado individualmente ou de forma coletiva. 

A motivação correta para prestação de um culto é a adoração. Exaltar ao Senhor sobre todas as coisas. Ofertar-lhe todos os aspectos de nossa vida. Uma vez que assim procedemos, algumas benesses recaem sobre nós através da graça e da misericórdia do nosso Deus, como por exemplo, o fortalecimento da nossa fé, a aquietação de nosso espírito e a compreensão do sobrenatural.

Infelizmente, temos prestado “cultos” deturpados tanto na essência, quanto no propósito. Templos religiosos ficam abarrotados de crentes superficiais que buscam apenas seus próprios interesses. Ao invés de prezarem por uma adoração genuína, entregando seu melhor para Deus, só querem “receber” um “milagre” ou ouvir uma palavra direcionada que massageie o seu ego.

A Igreja do Senhor Jesus tem atravessado nestes últimos anos por ondas de modismos e invencionices, que se enveredam rapidamente para o território negro das heresias. Líderes que são adorados quase como seres divinais. Públicos que se engalfinham para ter acesso as gotas “santificadas” do suor de seus pregadores. Templos faraônicos de pura ostentação que trazem de volta ritos e celebrações, que para a Igreja, já foram abolidos na cruz. Desvios doutrinários e teologia forjada em interesses. 

Qual é a saída para homens e mulheres sinceros que desejam apenas cultuar ao seu Deus em “Espírito e Verdade?” 

A resposta passa primeiro pela conscientização da simplicidade do Evangelho, cuja doutrina inalterável pelos séculos é a diminuição do próprio “eu” para que “Cristo” se destaque (João 3:3).

No culto genuíno, não existe lugar para dois senhores. É preciso se esvaziar de toda soberba humana, para que Deus seja entronizado de maneira soberana, e sua palavra seja a única regra de fé a nos guiar. É preciso ter a consciência que não existe avivamento fora da PALAVRA, pois é ela quem liberta, cura, transforma, traz paz e promove a salvação através da Fé. Sem que seja necessária nenhuma dessas peripécias e galhofadas modernas, que são realizadas supostamente em nome de Jesus. 

Aliás, se hoje, Jesus voltasse para a Terra com um chicote nas mãos, poucos templos escapariam de sua fúria (Mateus 21:12-13). 

A triste verdade é que temos investido cada vez mais em cultos pirotécnicos que aprazem aos homens, e menos em cultos sinceros, que agradam ao nosso Deus. A maior benção que podemos receber em um culto, nem de longe é uma cura miraculosa, uma revelação portentosa ou uma descarga poderosa de poder. Mas sim, o simples fato de desfrutar da presença gloriosa de Deus. Recebemos mais, quando pedimos menos.

E quer saber? Reforma já!

sábado, 18 de março de 2017

Janelas do Corpo

Breve é a loucura, longo o arrependimento.
(Friedrich Schiller)


É difícil se desvencilhar de antigos hábitos, e ainda mais complexo, se libertar de vícios adquiridos. Em Romanos 7:15-24, Paulo refere-se a si mesmo como um “vendido sob o pecado”. Em seu entendimento, ele fazia coisas que não aprovava, e o que gostaria de fazer, não fazia. O mal e o pecado insistiam em transformar suas boas intenções, em ações pecaminosas. Então, o apostolo exclama angustiado: - Miserável homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?

A resposta para esta inquietante pergunta já havia sido dada pelo próprio Paulo alguns versos antes, quando o apóstolo apontava aos irmãos de Roma uma saída para o ciclo pernicioso de pecado e iniquidade que nos acompanha desde a queda do primeiro casal:

- Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores, assim pela obediência de um, muitos serão feitos justos. Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça (Romanos 5:19-20).

Sim, existe uma cura para o pecado. Ela atua sobre os sintomas e a causa raiz. O tratamento é eficaz, porém, deve ser contínuo. Pela fé no sacrifício de Cristo somos curados, mas não imunizados. O “vírus” do pecado ainda está no ar, e é preciso evitá-lo a qualquer custo. Todo cuidado é pouco.

Quando os hebreus retornaram do exílio na Babilônia, apesar de muita fé e boa vontade, ainda estavam impregnados com a cultura caldeia. O povo esteve exposto ao paganismo de babilônicos, medos e persas por longos setenta anos. No retorno para casa, muitos erros cometidos pelos repatriados eram derivados da vontade de querer fazer o “certo”, mas não saber “como”.

Deus então levantou alguns profetas para instruir o povo neste difícil recomeço, exortando-os e admoestando-os nos princípios da Lei do Senhor, promovendo um grande discipulado nacional. E um destes homens foi o profeta Ageu.

Determinante na retomada da construção do Templo de Jerusalém, Ageu inspirou o povo com palavras e ações, já que também foi um dos edificadores. Com a obra concluída, e a promessa de uma glória ainda maior sobre aquela casa, o profeta pode se dedicar ao ensinamento, convocando os sacerdotes para uma conversa franca e instrutiva sobre a santificação.

A nação israelita nasceu como um padrão de ética, moral e santidade para todos os povos da Terra. O propósito de Deus era ter uma relação tão íntima com seu povo, que os mesmos refletiriam a glória do Altíssimo aos olhos de toda gente. Vivendo em obediência, retidão e temor, os hebreus atraíram sobre si toda sorte de bênçãos, o que levaria as nações ao seu redor a imitar seu comportamento. Não foi o que aconteceu. Israel se encantou com os costumes e ritos pagãos, se enveredou por caminhos de idolatria e prostituição, e o resultado desta rebeldia espiritual foi o exílio. Agora, Ageu quer expôr para os discipuladores do povo, o caminho da santificação, bem como identificar a origem da corrupção.

Seguindo a ordenação do Senhor, e tendo como base doutrinária a Lei Mosaica, Ageu faz a seguinte indagação aos sacerdotes:

Se alguém tiver um pedaço de carne consagrada presa na borda de sua roupa, e a mesma tocar num pão, ou em algo cozido, ou ainda no vinho ou no azeite, o alimento que foi tocado também ficará consagrado? 

Em uníssono, os sacerdotes responderam que não. A consagração de um objeto ou a santificação de um indivíduo não é conseguida através de um simples toque externo. Ela precisa partir de dentro para fora. Ageu concordou com a resposta e propôs mais uma questão: 

- Se alguém tocar em um cadáver, e de acordo com a lei, ficar impuro, se ele por sua vez tocar numa outra pessoa, ela automaticamente estará impura também? 

Mais uma vez a resposta foi unânime. – Sim, a pureza só existe até o primeiro toque da impureza. Mas uma vez o profeta concordou com os sacerdotes, pois a impureza vem do exterior e contamina o interior do homem.

Com estes exemplos, Ageu quis ilustrar a condição pecaminosa do povo, que com sua impureza, estava maculando a Casa de Deus (Ageu 2:11-23). Deste sermão do profeta, podemos extrair uma grande lição que se contextualiza com o dilema vivido por Paulo. 

A impureza que vem de fora, contamina todo o nosso interior. É este é uma perigo ao qual estamos expostos todos os dias.

Uma criança nasce pura, livre de pecado e maculação. Pouco a pouco, o seu caráter começa a ser desenvolvido baseado nas influências externas as quais fica exposta. Nossos desejos são construídos através do que vemos, ouvimos e tocamos. Nosso corpo é o tato da alma e o coração de nosso espírito. É ele quem absorve os nutrientes espirituais que irrigam nosso interior, sejam eles bons ou maus.

Por maior que seja nosso esforço para mantermos nosso interior puro e imaculado, basta um toque externo de impureza, lascívia ou perniciosidade, para que respingos escuros saltem de nossas vestes brancas. Assim, é preciso se esquivar de todo ponto de contaminação, fugindo constantemente de qualquer coisa que até mesmo apenas “aparente” ser má (I Tessalonicenses 5:22). 

Em seu mais famoso sermão, Jesus instruiu os discípulos a terem um cuidado especial com os seus olhos, sendo extremamente seletivos quanto “ao que se olhar”: 

- Os olhos são como lâmpadas para o corpo. Se seus olhos se focarem em coisas boas, todo o seu corpo (incluindo alma e espírito), serão cheios de luz. Mas se seus olhos estiverem voltados para coisas más, todo o seu corpo (incluindo alma e espírito), estará cheio de trevas (Mateus 6:22-23). 

Em resumo, podemos dizer que um simples toque naquilo que é imundo tem o poder de contaminar nosso espírito, e basta olhar na direção da maldade, para que nossa alma se encha de escuridão. Vigilância, prevenção, cuidado e caldo de galinha, não faz mal a ninguém.

A lógica apresentada pelo profeta é embasada pelo ensino de Jesus. Não há para onde fugir. Quem se deixa contaminar, também se torna um agente contaminador. Pecado gerando mais pecado.

Ainda bem que as trevas de nossos olhos podem ser dissipadas como o uso diário do colírio celestial (Apocalipse 3:18). Pela graça de Deus é possível mudar os hábitos, se libertar dos vícios, e quebrar o pernicioso ciclo do pecado. E repetir o processo, sempre que for necessário. Porque sera!