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terça-feira, 24 de abril de 2018

O Velho, o Menino e Eu

O fracasso é um evento, não uma pessoa.
Ontem terminou na noite passada. 
(Zig Ziglar)

  
Numa destas noites onde o sono demora a chegar, dormi inquieto e sonhei comigo mesmo. 

Estava num bosque repleto de ipês floridos, caminhando tranquilamente por entre crisântemos e madressilvas amarelas. Não haviam pensamentos estabelecidos na mente, apenas passos descompassados e aquele assobio inconsistente nos lábios. Por alguns instantes, nada tinha real importância. E então, eu o vi. Sob uma ponte de madeira cujo arco se lançava acima do cristalino riacho, o menino fitava o horizonte com tamanha devoção, que sequer percebeu minha presença. Sua silhueta era estranhamente familiar, e impelido pela curiosidade, me aproximei. Neste instante, a nuvem escura que bloqueava os raios solares se moveu pelos céus. A luz eclodiu intensamente, iluminando o rosto da criança.

Não poderia ser. Mas era.
Ele. Eu.

O menino não era bonito e muito menos charmoso. Mas tinha a vida sendo expelida em cada poro. Olhos vívidos e esperançosos. Carregava no rosto algumas marcas visíveis, cicatrizes que evidenciavam o amadurecimento precoce, o que não influenciava a infância reluzente em sua face. 

Pisei no primeiro degrau, e o som da madeira rangendo sob os sapatos, atraiu a atenção do garoto. Ele deu um passo para trás coagido pelo meu avanço.

– Calma! – Disse eu, apontando gentilmente para o próprio rosto. – Você não está me reconhecendo?

Ele meneou a cabeça negativamente. Pudera. A diferença era gritante. Eu mesmo não me reconheceria. (E não me reconheci). Cheguei mais perto. Com um gesto involuntário passei o dedo indicador sobre a cicatriz que nasce no canto esquerdo do meu lábio superior e corre até a base do nariz. Ele repetiu o gesto. Sorriu discretamente. Me lembrei que o menino nunca foi muito de sorrir. Faltavam alguns dentes na boca, e as narinas assimétricas deixavam qualquer sorriso penso. Estava mais acostumado a conviver com os risos alheios, e até que lidava bem com tudo isto. Afinal, tinha sonhos, projetos e objetivos na vida. Foco. Queria ser um pregador como o apóstolo Paulo. Mudar o mundo com o poder da voz. Os médicos disseram a seus pais que ele nunca falaria, e mesmo assim, Deus o tinha agraciado com a capacidade da fala. Se sentia grato por isso, e imensamente responsável por cada palavra dita. Eu o conhecia bem. Nunca esqueci seu rosto. Por muitos anos imitei o seu sorriso acanhado.

- Você não está me reconhecendo? - Repeti, decepcionado.

- Não! - O menino respondeu num assobio por entre as falhas dentárias.

Caminhei lentamente em sua direção, como que lhe dando tempo para se recordar. Cheguei próximo ao seu rosto e me inclinei, ao ponto de sentir a respiração tensa.

- Eu sou você!

Ele me olhou assustado.
Respirei profundamente e conclui.

- Estou mais velho. Mais gordo. Mais cansado. Mais decepcionado. Mais frustrado... Mesmo assim, ainda sou você!

O menino engoliu em seco. Baixou o olhar e suspirou baixinho. Seus olhos se encheram de lágrimas e os lábios deformados tremeram como se sentissem frio. Por longos minutos o mundo parou. Silêncio. Apenas o som das águas passando aceleradas por baixo da ponte se fazia ouvir. (Águas correndo na direção do futuro para nunca mais voltar). Até que finalmente, ele se recompôs. A voz soou firme, embora estivesse embargada, já que um nó de marinheiro duelava com suas amídalas.


- Posso te fazer uma pergunta?

- Mas é claro! -  Respondi. - Pergunte tudo o que quiser...

A próxima frase dita pelo menino, lacerou meu coração...


- Onde é que vou errar tanto, a ponto de me tornar você?

E eu, verborrágico incorrigível, simplesmente me calei, sem saber exatamente o que responder. Não me lembro onde deixei o brilho dos olhos e nem a vontade de fazer a diferença no mundo. Não me recordo do exato ponto onde a mediocridade se tornou minha amiga e a descrença começou a frequentar a mesa de jantar. Eu sei que muitas pessoas acreditavam no potencial daquele menino, e aos poucos, cada uma delas foi sucumbindo a decepção. Tinha tantos dons em desenvolvimento, mas se especializou em decepcionar as pessoas, incluindo, ele mesmo. Sonhos engavetados. Projetos esquecidos. Planos deixados de lado em detrimento a prioridades que se perderam no tempo. Trocou o tudo pelo nada, e ainda fez questão de pagar a diferença. Ele não mudou o mundo, mas o mundo mudou ele. O ensinou a sorrir, enquanto lentamente roubava toda a sua felicidade. Se especializou em teorias, e esqueceu de colocar a vida em prática. Simplesmente, deixou de ser a pessoa que nasceu para ter sido.

O menino que eu fui, jamais conseguiria reconhecer o homem que me tornei. Certamente teria preferido morrer em qualquer uma das muitas mesas cirúrgicas que visitou, ao invés de viver a plenitude do fracasso retumbante de todas as suas ideologias. E pior ainda. Se acostumar com o falhanço. Apadrinhá-lo. Mantê-lo aquecido e confortável no sótão da alma, como se fosse seu bichinho de estimação favorito.

A verdade golpeia com a potência de um peso pesado. Não se consegue assimilar o golpe e continuar de pé. E então, eu caí de joelhos. Cobrindo o rosto com as mãos, choraminguei amargamente. A vergonha do espelho. O desespero dos anos. A angustia pela linha vermelha cada vez mais próxima, enquanto a estrada deixada para traz se revela fria, vazia, escura e assustadoramente “inexpressiva”. De repente, uma frase de Jonh Kennedy rasgou minha mente como um gêiser irrompendo placas de gelo: - “O fracasso não tem amigos”. E como a muito tempo não acontecia, me senti completamente solitário. Terrivelmente sozinho.

O menino se aproximou de mim. Colocou a mão em meu queixou e me levantou o rosto. Limpou as minhas lágrimas com as mangas compridas de uma blusa azul e branca que mantinha amarrada na cintura:

- Por favor... Não chora!

- Como posso não chorar? - Argumentei ressentido - Olha o que fiz com a nossa vida! Eu simplesmente... (as palavras demoravam a sair) ... Matei você!

O menino me olhou com bondade.

- Você, pelo menos, ainda tem uma Bíblia, não é?

Enxuguei uma lágrima retardatária que insistia em brotar dos olhos...

- Tenho mais de cem versões da Bíblia dentro do meu notebook.

- Note “o quê”?

- Book. Notebook. Um computador portátil... Cabem milhares de Bíblias e livros na memória dele.  Um dia ele ainda vai ser a extensão de seu corpo. - Expliquei

- Tenho certeza que não preciso de tudo isto. Estou bem feliz com a Thompson que ganhei do pai... Uma biblioteca inteira! Talvez ter muito, esteja te desviando daquilo que realmente é importante...  Agora por exemplo, só precisamos de alguns versos...

O menino atravessou a ponte e parou sobre a grama. Gastou alguns segundos procurando alguma coisa algo entre as flores. Achou. Uma pedra calcaria em tons azulados. Enquanto ele voltava para o centro da ponte, me recompus. Se aproximou caminhando serenamente pelas tábuas de jacarandá, enquanto cantarolava: -  “Meu barco encheu com a fúria do mar, precisei de ajuda para não afundar”. Ainda tentava me lembrar a letra da música, quando o menino estendeu o braço direito em minha direção, e sem titubear, ordenou: – Toma! 

Entregou a pedra em minha mão.

- O que faço com isto?

- Se lembra do que Paulo disse em II Timóteo 2:13?

A lembrança emergiu rápido. Este sempre foi um dos meus textos favoritos:

- Mesmo que sejamos infiéis a Deus, Ele continua sendo fiel, porque a fidelidade faz parte de quem Ele é!

- Boa memória, velhinho! – Disse o menino, com um "meio" sorriso de aprovação. – Agora, jogue a pedra no rio!

Joguei. A pedra ricocheteou sobre a água, produzindo pequenas ondas circulares antes de afundar completamente. Olhei para ele, com genuína curiosidade: - E agora?

- Agora, nada. Me respondeu sem qualquer sarcasmo. E então, completou - O rio parou de correr por interferência da pedra?

- Obviamente que não. – Respondi. – É uma pedra contra o rio!

- Errado! - Ele me corrigiu. - É a tua infidelidade contra a fidelidade de Deus.

Eu conheço este conceito. Já escrevi sobre ele.

O rio caudaloso segue o fluxo sem se importar com as pedras que atingem seu leito. Por maior que seja o pedregulho, tudo o que ele pode fazer, é tumultuar uma pequena porção de água no entorno, para depois afundar vertiginosamente. Uma vez que atinja o fundo, ali ficará até desaparecer debaixo das algas. Já o rio, continuará seu caminho. Imparável. Irreprimível. Alguém pode até construir uma represa e negar vazão as correntes. Porém, quanto mais água for retida por detrás das paredes, maior será a explosão nos diques.  O rio não para. Não discute com barreiras. Apenas avança, retirando do caminho os empecilhos. Ou simplesmente, passando por cima de cada um deles. Infatigável. Incontrolável.

Assim é a fidelidade de Deus, seguindo sempre em frente, mesmo que muitos tentem impedir o avanço. E entre estes “muitos”, lá estou eu.

Ao longo desta vida, quantas pedras lancei no rio. Tentei desviar o curso, mudar a rota e impedir o fluxo. Regular a vazão. Este foi o meu maior erro. O mais retumbante fracasso. O decreto que arquivou muitos sonhos e alforriou pecados mantidos no cativeiro. Eu dizendo “não” a Deus, impedindo que o Pai se aproximasse de mim. Filho rebelde. Servo ingrato. Avesso a abraços. Propenso ao descaso. Mas, apesar da minha infidelidade aos propósitos, o Senhor se manteve fiel em cada promessa. O rio trazendo a pedra de volta para a superfície, como se fosse um barco de papel selado com o verniz vermelho carmesim, obtido na cruz do calvário. O Dono dos Mares recalculando a rota. O Arquiteto do Universo, (em pessoa), apontando o próximo retorno para a estrada principal.

Enquanto meditava na mensagem e repensava a minha vida, olhei para o sol poente. Só então percebi que uma simples canoa de madeira deslizando serena pelo rio, contornando o horizonte. Dentro dela, despreocupado e faceiro, um homem grisalho e muito solicito, acenava entre sorrisos. 

Sorrisos assimétricos.

- Sabe quem é? – Perguntou o menino.

- É claro que sei - Respondi. - Somos nós.

- Dá para acreditar que você vai conseguir envelhecer ainda mais! Quem diria que isso fosse possível!

O menino começou a rir alto. Naquele instante, os poucos dentes não eram um problema. Eu também gargalhei jocosamente. Uma alegria verdadeira como a muito tempo não sentia. E então, tudo ficou sério mais uma vez. O menino se virou na minha direção e com autoridade exclamou:

- Filipenses 4:6!

Ele se aproximou de mim e abraçou-me com força. – Por favor... Nunca se esqueça...

O velho no barco já era apenas uma silhueta desenhada no sol laranja que tingia de dourado a água do rio, porém sua voz reverberou correnteza acima:

- Aquele que começou a boa obra em minha vida, não vai deixá-la incompleta!

O menino e eu, descemos apressados da ponte e corremos pela margem do rio em direção ao sol poente, até a cansaço nos derrotar. O velho homem no barco sempre se mantinha muitos metros em nossa dianteira. Não se pode alcançar o futuro enquanto ainda se vive o presente. Deitamos sobre a relva afim de recuperar o fôlego e ponderar sobre a brevidade da existência. O tempo coexistindo e simultaneamente, acontecendo. Conversa boa. A maturidade desconfiada dialogando com a ousadia inocente. As lembranças futuras de um passado que ainda não aconteceu. E por mais paradoxal que tudo possa parecer, lá está Deus no controle absoluto do tempo/espaço. Criando, recriando e voltando a criar.   

- Estou muito cansado de tudo isso. Esgotado de corpo, mente e alma. Eu já não quero mais nadar contra a correnteza, se tenho a possibilidade de navegar com segurança ao lado de Cristo!

O menino se voltou na minha direção, meio que surpreendido com aquele desabafo. Sentamos na grama. Ele me olhou nos olhos e sorriu. Pela primeira vez naquele dia, se reconheceu em mim...

- Acho que você não me matou de verdade, velhinho.... Apenas me pôs para dormir.

Eu sorri encabulado.

- Então, acho que é hora de finalmente acordar!

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