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terça-feira, 17 de abril de 2018

Entre a Vergonha e a Honra

Foi um grande conselho o que ouvi certa vez, dado a um jovem:
"Faça sempre o que tiver medo de fazer".
(Ralph Waldo Emerson)


Uma túnica colorida, rasgada e coberta de sangue. Jacó conhecia bem aquele pedaço de pano. Foi ele mesmo quem encomendou o tecido, escolheu as cores e recomendou a atendente que um laço azul turquesa adornasse a caixa de presente. Um traje digno de reis! O velho patriarca não poupou despesas. Sequer fez orçamentos. Pagaria o que fosse necessário. Até porque, quando um príncipe completa dezessete anos, a redução de custos deixa de ser prioridade. "O príncipe". Seu príncipe. Filho favorito. Filho de Raquel. Fruto do amor verdadeiro. A materialização de um milagre ardentemente desejado. A colheita de uma flor cuja semente foi plantada em oração e regada com lágrimas.

Jacó cai ajoelhado no chão, enquanto aperta o tecido contra o peito. O sangue já coagulado, se umidifica com as gotas quentes de um choro copioso, manchando de vermelho a longa e embranquecida barba

– Achamos a túnica no campo, pai.... Haviam pegadas de lobos em volta.... Mas, nenhum vestígio de José!  

Os irmãos, cinicamente, choram com o pai, enquanto sentem um misto de culpa e alívio. Haviam se livrado de José, o vendendo a mercadores ismaelitas que rumavam ao Egito. O pirralho fofoqueiro nunca mais poria os pés em Canaã novamente, e nenhum deles seria incriminado por isto. Ninguém é culpado se não existe crime. As feras do campo tinham se banqueteado com as vísceras de José. Apenas a natureza seguindo seu curso. Jacó nunca saberia que Simeão, Gade e Rubem rasgaram o tecido com as próprias mãos, enquanto Judá, Issacar e Naftali matavam uma ovelha do rebanho. Com o sangue recolhido, eles tingiram os farrapos, enquanto a silhueta de José desaparecia no horizonte. O álibi perfeito. E o pai, cujo amor pela prole cegava os olhos para uma verdade tão cruel, não tinha motivos para questionar a veracidade do relato.

Ele chorou a morte do filho. Passou noites velando um túmulo vazio. Estava farto de dias e cansado da vida. Tarde demais para ter esperanças outra vez. José tinha sido um raio de luz cortando o céu escuro da velhice. Os bons dias de milagres e providencias, certamente já não passavam de lembrança. Um raio, como todos sabem, não cai duas vezes no mesmo lugar.

Ou será que cai?

Rebeca era estéril. A gestação de José havia sido um milagre grandioso. Deus abriu-lhe a madre e a presenteou com um filho virtuoso. Revestido de promessas. Ela nunca chegaria a saber, mas a criança que amamentou em seus seios, num futuro muito próximo, seria chamada de "Safenate-Paneia". O Salvador do Mundo! Mas agora, naquele momento, tudo que Rebeca sabe, é a intensidade de uma dor sem precedentes. Ela nunca voltaria a ver seu rebento. O filho, cujo nome significava “Deus Acrescenta”, havia sido subtraído de seus braços. Uma mulher incompleta, cujo coração pulsava no peito de forma descompassada. Pudera. Faltava metade dele.

Raquel ainda se vestia de preto, quando percebeu um novo atraso em seu ciclo menstrual. O cheiro do guisado a enjoou, e sentiu profundo desejo de saborear mandrágoras com mel em plena madrugada. Ela já conhecia os sintomas. Sentia que um novo milagre desabrochava em seu ventre. Deus havia se compadecido dela mais uma vez. Observado suas lágrimas. - Um filho! Ele jamais poderia substituir José, mas, encheria a casa de vida e alegria. Uma criança correndo pela sala, abrindo a dispensa e jogando no chão toda a farinha, era exatamente o tipo de incentivo que o casal precisava para voltar a sorrir. E com a esperança renovada, Raquel decorava de azul, o quarto a tanto tempo mantido sob portas trancadas.

Porém, enquanto a dor no coração diminuía, o corpo de Raquel era lancetado pelo sofrimento. Tudo estava diferente. Haviam sangramentos. Desmaios. Excesso de vômitos. Alguma coisa estava errada. Não com o bebê, já que ele saltava em seu ventre como se fosse uma corça selvagem. O problema era ela. Raquel sorria, mesmo sentindo vontade de chorar. Tentava divagar os pensamentos para se esquivar da agonia. - No fim, tudo vai dar certo. Em poucas semanas, ela teria seu filho nos braços e ouviria o doce som da palavra “mamãe” sendo pronunciado mais uma vez. Apesar dos pesares, tudo ficaria bem.

E então, o grande dia chegou. Os espasmos. As contrações. Raquel estava com medo. Sentia-se fraca quando mais precisava de força. Percebia os olhares apreensivos das parteiras. Respirava, e o ar não entrava em seus pulmões. Tentava gritar, mas apenas murmúrios saiam de sua boca. A visão turva. Os lábios ressecados. A pelves dilacerada por um esforço sobre-humano. E então, sem maiores alardes, o cérebro começou a se desligar paulatinamente, poupando o corpo de tamanho sofrimento. Primeiro, a luz sendo cortada pela escuridão, depois a escuridão pontuada por fragmentos de luz. E foi por uma fresta iluminada que Raquel viu seu filho pela primeira (e última) vez. Mal ouviu o choro. Não identificou a cor da íris. Porém, estava esgotada demais para se sentir decepcionada. Ciente da própria condição, pediu para que Jacó se aproximasse, e num esforço descomunal lhe fez o pedido:

- O nome... Sussurrou.

- Calma, meu amor. - Disse, Jacó com ternura. – Não fale nada, apenas tente respirar...

- O nome... - Insistiu Rebeca.

- Depois pensamos nisto, querida. - Os olhos de Jacó se enchiam de lágrimas enquanto ele, com um lenço branco,  enxugava o suor que escorria pelo rosto da mulher que tanto amava. - Descansa meu bem. Por favor.... Feche os olhos e descanse...

- O nome dele... O nome do meu filho... Ele se chamará Benoni...

E então, Rebeca acatou o conselho do marido. Fechou seus olhos para nunca mais abri-los outra vez. Morreu, gerando vida, e no sofrimento, finalmente descansou.

Benoni. Você não encontrará este nome na genealogia de Jacó. Nenhum “benonita” foi contado entre o povo de Deus. Benoni significa “Filho da Dor”. "Filho da Tristeza”. “Filho da Vergonha”. Uma personificação do sofrimento, da angústia e do desespero. Em cada aniversário, um cortejo fúnebre. Quando alguém chamasse seu nome, o filho sentiria o peso da culpa pela morte da mãe. Jacó não permitiria isso. Quando os “lobos” devoraram José, sua felicidade foi servida como sobremesa. Agora, seria diferente. Mesmo que seu coração estivesse partido, ele homenagearia sua esposa amada, negando-se a realizar o último desejo dela. Uma ilha de felicidade no meio do oceano de tristeza e enlutamento.

- O nome dele será Benjamim!

Benjamim. O significado deste nome é uma mensagem poderosa. “Filho da minha Destra”. “Filho da Honra”. “Filho da Alegria”. Quando seu nome for chamado, o sorriso de Raquel será trazido a memória. Bons momentos serão revividos com intensidade e paixão. Deus será louvado pela vida, mesmo que a morte tenha levado embora familiares queridos. Benjamim foi amado intensamente por Jacó, e com a mesma intensidade também amou seu velho pai. Nenhum resquício de mágoa ou desprezo. O patriarca o enxergava como uma obra de arte, que no rodapé, levava tanto a assinatura Deus quanto a de Raquel. Todas as essências  de um amor multiforme concentradas num único recipiente. Eles ainda não sabiam, mas um dia, dentro do palácio do Egito, José e Benjamim se olhariam nos olhos, e abraçados, derramariam lágrimas de felicidade. “O Deus que Acrescenta” e o “Deus que Honra” entronizado no coração e na história daquela família.  

Assim como Jacó, Rebeca, José e Benjamim, também não sabemos qual é nosso real papel neste enredo chamado "vida". Os propósitos que o amanhã nos reserva, sempre serão uma incógnita. E isso não é mal. Nos permite viver a plenitude do hoje, cientes que o amanhã pertence a Deus. 

É a forma como enxergamos o agora, que ilumina os corredores da eternidade. Diariamente, nos é apresentada uma cartela de opções, sem possibilidade de negativas. Quais caminhos seguir? Qual direção olhar? Qual perspectiva adotar? Enxergar o “melhor” ou o “pior” das pessoas? A escolha efetuada é apenas a primeira peça do dominó sendo derrubada sobre as fileiras do tempo. Impacto na posteridade, sentido por gerações a perder de vista . A vida seguindo em frente, mesmo que você tenha desistido dela. A grande verdade, é que se a alegria não dura para sempre, a tristeza também não é permanente.

Sendo assim, siga em frente. Não se pode segurar o furacão entre os dedos ou acalmar o terremoto com os pés. Não se vence um “mano a mano” com a morte. Aquilo que os outros fizeram, independe de você. Foi decisão deles. Provocou lágrimas? Enxugue-as! Rasgou seu coração? Deixe-o se cicatrizar! Apenas recomece de onde decretaram seu fim, e não pare jamais. Por mais que tentem influenciar sua decisão, você é o dono das escolhas. Contrarie os prognósticos negativos e enxergue a vida com olhos mais positivos. Confie na sabedoria de Deus em amarrar pontas soltas. Até porque, elas nunca estiveram soltas de verdade. São linhas de chegada que marcam os novos ciclos da vida. Finais e recomeços. Ações e reações. Escolhas e consequências.

Entenda assim. Hoje Deus coloca diante de você uma decisão que mudará os rumos de sua vida e a história das pessoas que te cercam. O momento não é favorável para a tomada de decisões importantes, e Ele sabe disto. É proposital. Faz parte dos planos. O Senhor está testando seu coração e tudo que tem escondido nele. Calibrando a direção do olhar. Checando a intensidade da fé. Mas, fique tranquilo. Não será uma questão dissertativa onde cada argumento deverá ser embasado com provas científicas. É uma questão de múltipla escolha. Melhor que isso. Apenas duas alternativas. Não há certo e nem errado. Apenas você, o hoje e seus planos para o futuro. Então, mantenha a calma... Reflita, deseje e assinale uma das opções abaixo. 

Qual é o nome do teu amanhã?

(   ) Benoni  
(   ) Benjamim


Livremente inspirado nos textos de Gêneses 35 a 37

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