A providência
juntou na abelha a doçura do mel e a agudez do ferrão
(Baltasar
Gracián)
Fevereiro de 1994. Culto das Crianças.
Os pequenos se esbaldaram. Leitura de versículos, cânticos, jograis, poemas...
E para completar a noite, uma ministração voltada para... os
adultos. Ciente que havia algum descompasso nesta sistemática, o pastor se
voltou para o grupo infantil da igreja, lançando o desafio: - “No próximo
mês, quero ouvir uma criança pregando a Palavra de Deus neste altar!” Não
posso garantir que o pastor tenha levado a sério esta convocação, mas asseguro,
que entre as crianças, alguém levou.
E nos dias seguintes, aquele menino
devorou as páginas da Bíblia, rascunhando em “folhas de papel almaço” sua
mensagem expositiva. Assim, que recebeu a notícia que um dos “infantes” estava
se preparando para ser o preletor do culto “infantil”, o pastor ficou inquieto.
- Seria prudente confiar tamanha responsabilidade a um “pregador com cheiro de
leite”? Porém, a mãe do menino (coincidentemente, também
esposa do pastor) foi absolutamente categórica na intervenção: –
Você não queria uma criança pregando em seu altar? Pois agora, você tem esta
criança! Deixa o menino pregar!
E foi assim, que em 09 de março de
1994, aos nove anos de idade, eu ministrei meu primeiro sermão. E o tema
escolhido, retratava exatamente o momento vivido pela minha família: - “Jeová
Jireh! O Deus da Provisão!”
Ainda tenho uma dívida de gratidão com
toda a irmandade que pacientemente me ouviu naquela noite. Agradeço a Deus por
cada alma caridosa que retribuiu minha retórica inoperante com “Glórias e Aleluias”. Durante exatos
vinte e cinco minutos, corri desesperadamente entre as páginas de Gêneses e
Apocalipse, citando momentos da história, onde Deus entrou com providência
mediante as necessidades humanas. As roupas de Adão e Eva. A Arca de Noé. O
cordeiro de Abraão. A esposa de Isaque. O trono de Davi. A manjedoura de
Cristo. A visão de Bartimeu. A abertura dos selos presenciada por João. O Deus
que proveu. O Deus que ainda provê. O Deus que sempre proverá. O Jeová Jireh
que do “pouco” faz o “muito” transbordar. O Criador que utilizando o “nada”
como matéria prima trouxe “todas” as coisas a existência. E lá estava eu. Ponto
a ponto, destrinchando os tópicos que ensaiei por horas na frente do espelho da
velha penteadeira.
Mas, em determinado momento, lembro-me
perfeitamente de fechar a Bíblia sobre o altar, e deixar de lado o esboço
escrito à mão. Neste ponto da mensagem, comecei a compartilhar com a igreja, as
experiências vividas dentro de casa. Aquele era um tempo de vacas magras,
lavouras secas e cisternas rotas. Dias onde a nossa dispensa estava
completamente vazia, e mesmo assim, no almoço e na janta, o fogão se mantinha
ativo. A providência divina visitando nosso lar com uma precisão micrométrica,
infalível e eficaz.
Tenho muito orgulho em dizer que o
pastorado não deixou meu pai rico. Pelo contrário, materialmente, a entrega
sempre foi maior que qualquer benefício recebido. Cresci numa casa onde o altar
era dividido com os canaviais. A Bíblia em uma mão, e o facão bem amolado na
outra. As boquinhas famintas em casa, não permitiam que a fuligem do carvão
desaparecesse dos entornos daquelas unhas “pastorais”. E com o pouco dinheiro
ganho nas lavouras, papai sustentava a família, cuidava da casa e contribuía no
templo. Mas, haviam as entressafras. As estiagens. Os surtos de pragas nas
plantações. E neste ínterim de tempo, quando os recursos minguavam, é que mais
testemunhávamos o agir de um Deus provedor.
Não se preocupe. A intenção deste texto
não é fazer sensacionalismo e nem te impressionar com histórias mirabolantes.
Nunca choveu moedas em nossa sala, ou qualquer cheque milionário foi encontrado
na caixa de correios. Deus cuidava de nossa família com um maná diário, bem
mais singelo. A sistemática era simples. O armário da cozinha, onde
deveria ficar o estoque de mantimentos, estava absolutamente vazio. Nem as
aranhas queriam fazer suas teias ali, já que nenhum inseto tinha motivos para
transitar no local. Porém, quando se aproximava a hora do almoço, o fogão
começava suas atividades. Mamãe colocava as panelas no fogo e os filhos
famintos se agrupavam ao redor da mesa. Ninguém tido ido ao mercado. A venda da
esquina não marcava na caderneta. Mesmo assim, o chiado do caldeirão se fazia
ouvir.
-
De onde vinham as refeições?
As fontes eram sempre variadas. Às
vezes, pela manhã, nossa vizinha chamava no portão: - Dona Márcia...
Recebi uns parentes para a janta de ontem e sobrou muita comida. Estou com dó
de jogar fora... Tem macarrão e carne... Será que a senhora quer dar as sobras
para os cachorros? E lá estávamos, eu e meus irmãos, abanando o
rabinho e falando “au-au”. Almoço garantido. No cair da tarde, a saudosa irmã
Maria chegava em casa para uma visita “surpresa”. A tiracolo, trazia sua
sacolinha plástica azul: - Márcia, senti no coração de lhe trazer um
bocado de arroz e um gomo de linguiça. Faz para as crianças. E esta
era a nossa janta. No dia seguinte, o ciclo se repetia. As dez horas, provisão
para o almoço. Cinco da tarde, a providência do jantar.
Fazíamos uma refeição sem a menor ideia
de onde viria a próxima. E em nenhum destes dias de escassez, minha família
deixou de almoçar ou jantar. Se não tinha carne, Deus mandava batata. Se
faltava feijão, o Senhor nos agraciava com ervilhas. Quando o leite não era
entregue, alguém nos presenteava com nacos de queijo. E cada intervenção
providencial ficou gravada a fogo nas entranhas da nossa geração. Incrustadas
na memória de todos. Naquela noite chuvosa de quarta-feira, no templo da
Assembleia de Deus Madureira no Jardim Nova Odessa, na cidade de Mogi Guaçu, o
menino que pregava não estava apenas reproduzindo histórias bíblicas aprendidas
na Escola Dominical. Ele falava sobre a própria vida. A confiança na
providência divina, sustentada pela provisão diária de Deus. A lição prática
que ensina o homem a viver na dependência do milagre.
- Ora,
Miquéias... Para alguém que trabalha com as palavras, você deveria ser mais
cauteloso e pragmático... Ao invés de “milagre” por que não usa o termo
“coincidência”. Seu relato condiz muito mais com “golpes aleatórios de sorte”,
do que com “intervenções sobrenaturais do Todo Poderoso”.
Já ouvi muitas conversas deste tipo.
Nenhuma delas foi capaz de abalar minhas convicções. E sabe o porquê? Simples.
A nomenclatura, tanto faz. A interpretação interpessoal pouco me importa. Tudo
que sei, é que foram estas sucessões de “coincidências” que mantiveram nossas
barriguinhas cheias por muitos meses. Além disto, quantas “coincidências” eu
preciso enfileirar antes de entender que o milagre também reside nas pequenas
coisas?
Seria muito mais interessante contar
para você sobre as águias que desciam no quintal de nossa casa, trazendo nas
garras novilhos assados. Este relato ficaria muito mais interessante se
envolvesse uma misteriosa chuva de pão sobre a mesa. Possivelmente, vendaria
milhares de livros falando sobre a árvore de dólares que nasceu em nosso
jardim. Mas, tudo não passaria de mentira. Deus não precisou de nenhuma
traquitana miraculosa para sustentar minha família. Ele apenas se valeu dos
corações piedosos de seus servos.
Nosso problema, é que nos acomodamos a
este cuidado, e passamos a exigir do Senhor uma série de regalias. E se não
somos atendidos, fazemos biquinho e cara feia. Deus nos dá o pão diário, porém,
queremos ser o dono da padaria. O Senhor promete nos revestir de prosperidade,
e já planejamos a construção de uma caixa forte maior que a do Tio Patinhas. Na
ânsia pelo que é “melhor”, pisamos em tudo que já é “bom”. Nossa ingratidão
esbofeteia a face daquele que nos sustém. E este comportamento ignóbil, além de
deselegante, é trágico.
Exatamente por isto, tenho ótimas
lembranças (saudades, jamais) dos dias de escassez (que
ainda pontuam o calendário com regularidade). É mais fácil desenvolver um
senso de gratidão olhando para a dispensa vazia enquanto se tem nas mãos um
prato cheio, do que estando com a dispensa cheia, se pôr a reclamar por não ter
nada no prato. E esta foi uma lição que a vida me ensinou ainda criança. Eu não
preciso estar cercado de riquezas, para me sentir rico de verdade. Estar
debaixo da vontade de Deus e cercado de pessoas amáveis, é um bem tão precioso,
que nem mesmo todo o ouro do mundo poderia avalizar. E mesmo nas colheitas mais
minguadas, Deus faz brotar da terra ressequida todo este amor.
Preciso mesmo de qualquer outro motivo
para ser agradecido? O pequeno pregador tinha plena certeza que não. A graça de
Cristo lhe era mais que suficiente.
Aquele menino que se emocionava ao
falar do Jeová Jireh, cresceu e se tornou homem. Hoje ele passa mais tempo
entre as teclas de um notebook do que nos altares dos templos. Mas, continua pregando
a mesma mensagem, ainda que as palavras se mostrem mais rebuscadas: - “Confiança
plena num Pai que jamais abandona sua prole”. Assim como você, Ele
também não entende as escolhas que Deus faz, e nem compreende os caminhos que
foram pelo Senhor delineados. A provação bate na porta e o frio lhe percorre a
espinha. Ele escreve, e apaga. Mesmo assim, segue confiando num propósito maior,
mesmo que os anos tenham levado embora a parte mais lúdica da inocência. Em
cada linha digitada, lida, relida e editada, lá está ele, tendo fé que o
socorro bem presente nunca falha, mesmo que pareça demorar “um pouquinho”.
Ainda que o galho se resseque e as folhas venham a cair, existe sustança na
raiz. Uma experiência de vida que é o contraponto de luz nos mais escuros
prognósticos. A lembrança lançando fora qualquer dúvida. Recentemente, ele
estabeleceu um lema para sua vida e tem se esforçado bastante para
compartilhá-lo com o máximo de pessoas possíveis: - Quando menos
entendo, mais preciso confiar!
Isso implica em olhar para dispensáveis
vazias, mas nunca deixar faltar fósforo e gás. Na hora exata, antes da fome lhe
esmurrar o estômago, haverá pão sobre a mesa. Para ser sincero, não consigo
explicar como o departamento de suprimentos do céu realiza a sua logística. E
nem preciso. Basta confiar que o relógio de Deus não se atrasa, e o calendário
celeste, está sempre muitos dias à frente do meu. Tudo tem seu propósito.
Saiba esperar e confiar no socorro de
Deus, sem trocar os "pés pelas mãos". Lembre-se da filosófica
ponderação de Mário Quintana sobre a mosca e aranha. Enquanto uma espera
pacientemente seu alimento, a outra voa sem rumo banqueteando-se em lugares
inapropriados: - A mosca, a debater-se na teia exclama – “Não! Deus não
existe! Somente o acaso rege a terrena existência”. Enquanto isso, a aranha,
agradece: - “Glória a ti, Divina Providência, que à minha humilde teia esta
mosca atraíste”!
Nenhum comentário:
Postar um comentário