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terça-feira, 13 de março de 2018

Exercício de Memória

A providência juntou na abelha a doçura do mel e a agudez do ferrão
(Baltasar Gracián)



Fevereiro de 1994. Culto das Crianças. Os pequenos se esbaldaram. Leitura de versículos, cânticos, jograis, poemas... E para completar a noite, uma ministração voltada para... os adultos. Ciente que havia algum descompasso nesta sistemática, o pastor se voltou para o grupo infantil da igreja, lançando o desafio: - “No próximo mês, quero ouvir uma criança pregando a Palavra de Deus neste altar!”  Não posso garantir que o pastor tenha levado a sério esta convocação, mas asseguro, que entre as crianças, alguém levou. 

E nos dias seguintes, aquele menino devorou as páginas da Bíblia, rascunhando em “folhas de papel almaço” sua mensagem expositiva. Assim, que recebeu a notícia que um dos “infantes” estava se preparando para ser o preletor do culto “infantil”, o pastor ficou inquieto. - Seria prudente confiar tamanha responsabilidade a um “pregador com cheiro de leite”?  Porém, a mãe do menino (coincidentemente, também esposa do pastor) foi absolutamente categórica na intervenção: – Você não queria uma criança pregando em seu altar? Pois agora, você tem esta criança! Deixa o menino pregar!

E foi assim, que em 09 de março de 1994, aos nove anos de idade, eu ministrei meu primeiro sermão. E o tema escolhido, retratava exatamente o momento vivido pela minha família: - “Jeová Jireh! O Deus da Provisão!”

Ainda tenho uma dívida de gratidão com toda a irmandade que pacientemente me ouviu naquela noite. Agradeço a Deus por cada alma caridosa que retribuiu minha retórica inoperante com “Glórias e Aleluias”. Durante exatos vinte e cinco minutos, corri desesperadamente entre as páginas de Gêneses e Apocalipse, citando momentos da história, onde Deus entrou com providência mediante as necessidades humanas. As roupas de Adão e Eva. A Arca de Noé. O cordeiro de Abraão. A esposa de Isaque. O trono de Davi. A manjedoura de Cristo. A visão de Bartimeu. A abertura dos selos presenciada por João. O Deus que proveu. O Deus que ainda provê. O Deus que sempre proverá. O Jeová Jireh que do “pouco” faz o “muito” transbordar. O Criador que utilizando o “nada” como matéria prima trouxe “todas” as coisas a existência. E lá estava eu. Ponto a ponto, destrinchando os tópicos que ensaiei por horas na frente do espelho da velha penteadeira.

Mas, em determinado momento, lembro-me perfeitamente de fechar a Bíblia sobre o altar, e deixar de lado o esboço escrito à mão. Neste ponto da mensagem, comecei a compartilhar com a igreja, as experiências vividas dentro de casa. Aquele era um tempo de vacas magras, lavouras secas e cisternas rotas. Dias onde a nossa dispensa estava completamente vazia, e mesmo assim, no almoço e na janta, o fogão se mantinha ativo. A providência divina visitando nosso lar com uma precisão micrométrica, infalível e eficaz.

Tenho muito orgulho em dizer que o pastorado não deixou meu pai rico. Pelo contrário, materialmente, a entrega sempre foi maior que qualquer benefício recebido. Cresci numa casa onde o altar era dividido com os canaviais. A Bíblia em uma mão, e o facão bem amolado na outra. As boquinhas famintas em casa, não permitiam que a fuligem do carvão desaparecesse dos entornos daquelas unhas “pastorais”. E com o pouco dinheiro ganho nas lavouras, papai sustentava a família, cuidava da casa e contribuía no templo. Mas, haviam as entressafras. As estiagens. Os surtos de pragas nas plantações. E neste ínterim de tempo, quando os recursos minguavam, é que mais testemunhávamos o agir de um Deus provedor.

Não se preocupe. A intenção deste texto não é fazer sensacionalismo e nem te impressionar com histórias mirabolantes. Nunca choveu moedas em nossa sala, ou qualquer cheque milionário foi encontrado na caixa de correios. Deus cuidava de nossa família com um maná diário, bem mais singelo. A sistemática era simples. O armário da cozinha, onde deveria ficar o estoque de mantimentos, estava absolutamente vazio. Nem as aranhas queriam fazer suas teias ali, já que nenhum inseto tinha motivos para transitar no local. Porém, quando se aproximava a hora do almoço, o fogão começava suas atividades. Mamãe colocava as panelas no fogo e os filhos famintos se agrupavam ao redor da mesa. Ninguém tido ido ao mercado. A venda da esquina não marcava na caderneta. Mesmo assim, o chiado do caldeirão se fazia ouvir.

- De onde vinham as refeições?

As fontes eram sempre variadas. Às vezes, pela manhã, nossa vizinha chamava no portão: - Dona Márcia... Recebi uns parentes para a janta de ontem e sobrou muita comida. Estou com dó de jogar fora... Tem macarrão e carne... Será que a senhora quer dar as sobras para os cachorros? E lá estávamos, eu e meus irmãos, abanando o rabinho e falando “au-au”. Almoço garantido. No cair da tarde, a saudosa irmã Maria chegava em casa para uma visita “surpresa”. A tiracolo, trazia sua sacolinha plástica azul: - Márcia, senti no coração de lhe trazer um bocado de arroz e um gomo de linguiça. Faz para as crianças.  E esta era a nossa janta. No dia seguinte, o ciclo se repetia. As dez horas, provisão para o almoço. Cinco da tarde, a providência do jantar.

Fazíamos uma refeição sem a menor ideia de onde viria a próxima. E em nenhum destes dias de escassez, minha família deixou de almoçar ou jantar. Se não tinha carne, Deus mandava batata. Se faltava feijão, o Senhor nos agraciava com ervilhas. Quando o leite não era entregue, alguém nos presenteava com nacos de queijo. E cada intervenção providencial ficou gravada a fogo nas entranhas da nossa geração. Incrustadas na memória de todos. Naquela noite chuvosa de quarta-feira, no templo da Assembleia de Deus Madureira no Jardim Nova Odessa, na cidade de Mogi Guaçu, o menino que pregava não estava apenas reproduzindo histórias bíblicas aprendidas na Escola Dominical. Ele falava sobre a própria vida. A confiança na providência divina, sustentada pela provisão diária de Deus. A lição prática que ensina o homem a viver na dependência do milagre.

- Ora, Miquéias... Para alguém que trabalha com as palavras, você deveria ser mais cauteloso e pragmático... Ao invés de “milagre” por que não usa o termo “coincidência”. Seu relato condiz muito mais com “golpes aleatórios de sorte”, do que com “intervenções sobrenaturais do Todo Poderoso”.  

Já ouvi muitas conversas deste tipo. Nenhuma delas foi capaz de abalar minhas convicções. E sabe o porquê? Simples. A nomenclatura, tanto faz. A interpretação interpessoal pouco me importa. Tudo que sei, é que foram estas sucessões de “coincidências” que mantiveram nossas barriguinhas cheias por muitos meses. Além disto, quantas “coincidências” eu preciso enfileirar antes de entender que o milagre também reside nas pequenas coisas? Seria muito mais interessante contar para você sobre as águias que desciam no quintal de nossa casa, trazendo nas garras novilhos assados. Este relato ficaria muito mais interessante se envolvesse uma misteriosa chuva de pão sobre a mesa. Possivelmente, vendaria milhares de livros falando sobre a árvore de dólares que nasceu em nosso jardim. Mas, tudo não passaria de mentira. Deus não precisou de nenhuma traquitana miraculosa para sustentar minha família. Ele apenas se valeu dos corações piedosos de seus servos.

          

Nosso problema, é que nos acomodamos a este cuidado, e passamos a exigir do Senhor uma série de regalias. E se não somos atendidos, fazemos biquinho e cara feia. Deus nos dá o pão diário, porém, queremos ser o dono da padaria. O Senhor promete nos revestir de prosperidade, e já planejamos a construção de uma caixa forte maior que a do Tio Patinhas. Na ânsia pelo que é “melhor”, pisamos em tudo que já é “bom”. Nossa ingratidão esbofeteia a face daquele que nos sustém. E este comportamento ignóbil, além de deselegante, é trágico.

Exatamente por isto, tenho ótimas lembranças (saudades, jamais) dos dias de escassez (que ainda pontuam o calendário com regularidade). É mais fácil desenvolver um senso de gratidão olhando para a dispensa vazia enquanto se tem nas mãos um prato cheio, do que estando com a dispensa cheia, se pôr a reclamar por não ter nada no prato. E esta foi uma lição que a vida me ensinou ainda criança. Eu não preciso estar cercado de riquezas, para me sentir rico de verdade. Estar debaixo da vontade de Deus e cercado de pessoas amáveis, é um bem tão precioso, que nem mesmo todo o ouro do mundo poderia avalizar. E mesmo nas colheitas mais minguadas, Deus faz brotar da terra ressequida todo este amor. 

Preciso mesmo de qualquer outro motivo para ser agradecido? O pequeno pregador tinha plena certeza que não. A graça de Cristo lhe era mais que suficiente.
Aquele menino que se emocionava ao falar do Jeová Jireh, cresceu e se tornou homem. Hoje ele passa mais tempo entre as teclas de um notebook do que nos altares dos templos. Mas, continua pregando a mesma mensagem, ainda que as palavras se mostrem mais rebuscadas: -  “Confiança plena num Pai que jamais abandona sua prole”. Assim como você, Ele também não entende as escolhas que Deus faz, e nem compreende os caminhos que foram pelo Senhor delineados. A provação bate na porta e o frio lhe percorre a espinha. Ele escreve, e apaga. Mesmo assim, segue confiando num propósito maior, mesmo que os anos tenham levado embora a parte mais lúdica da inocência. Em cada linha digitada, lida, relida e editada, lá está ele, tendo fé que o socorro bem presente nunca falha, mesmo que pareça demorar “um pouquinho”. Ainda que o galho se resseque e as folhas venham a cair, existe sustança na raiz. Uma experiência de vida que é o contraponto de luz nos mais escuros prognósticos. A lembrança lançando fora qualquer dúvida. Recentemente, ele estabeleceu um lema para sua vida e tem se esforçado bastante para compartilhá-lo com o máximo de pessoas possíveis:  - Quando menos entendo, mais preciso confiar!

Isso implica em olhar para dispensáveis vazias, mas nunca deixar faltar fósforo e gás. Na hora exata, antes da fome lhe esmurrar o estômago, haverá pão sobre a mesa. Para ser sincero, não consigo explicar como o departamento de suprimentos do céu realiza a sua logística. E nem preciso. Basta confiar que o relógio de Deus não se atrasa, e o calendário celeste, está sempre muitos dias à frente do meu. Tudo tem seu propósito.

Saiba esperar e confiar no socorro de Deus, sem trocar os "pés pelas mãos". Lembre-se da filosófica ponderação de Mário Quintana sobre a mosca e aranha. Enquanto uma espera pacientemente seu alimento, a outra voa sem rumo banqueteando-se em lugares inapropriados: - A mosca, a debater-se na teia exclama – “Não! Deus não existe! Somente o acaso rege a terrena existência”. Enquanto isso, a aranha, agradece: - “Glória a ti, Divina Providência, que à minha humilde teia esta mosca atraíste”!



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