Arquivo do blog

sexta-feira, 30 de março de 2018

CSI: Jerusalém



A história inteira é incompleta sem Jesus.
(Ernest Renan)


O quanto Deus odeia a cruz. Este era o ponto central de um acalorado debate “pseudo-teológico” que tive o desprazer de participar. Na verdade, fui literalmente “puxado” para a roda de discussão. Um dos debatedores me puxou pelo braço enquanto dizia: - Fala aí para eles, Miquéias, se eu não tenho razão... O argumento que eu deveria validar era simples e objetivo. Deus odiava a cruz, porque ela foi a arma que matou Jesus. E ainda havia um embasamento empático para a tese.

- Imagine que seu filho seja assassinado com um tiro. Você não sentiria raiva do revólver pelo resto da vida? Assim é Deus com a cruz. Ele a odeia! Ela matou seu único filho!

Como a vida é curta e o tempo segue em frente, não estava disposto a me desgastar com um assunto tão superficial. Era preciso “escavar um pouco mais fundo”. Então, sem maiores delongas, fiz apenas a observação mais pragmática possível: - Quem disparou o gatilho?

Depois de alguns segundos de silêncio (que pareciam horas), uma voz desconfiada arriscou a resposta óbvia: - Ué... O assassino. Corretíssimo! Simples assim. Pistolas não tomam decisões sobre quem deve morrer ou continuar vivo. Escopetas não escolhem para quais alvos irão apontar. Alguém precisa carregar a arma, focar a mira e atirar. E neste caso, quem é o verdadeiro vilão da história? O revólver que “cuspiu” a “bala” ou as mãos que lhe apertaram o pescoço até que o projétil fosse lançado para fora?

Se existe algum ódio a ser alimentado (jamais o alimente), não é pela arma usada no crime, mas sim, pelo criminoso que planejou e executou o assassinato (repetindo, não alimente o ódio). Dito isto, a reflexão pertinente está longe de ser a intensidade da aversão divina destinada ao madeiro. A grande questão é: - Quem matou Jesus? Em qual direção Deus deve lançar seu olhar de fúria?

Jesus incomodava gente poderosa. A pedra no sapato dos religiosos. A pulga atrás da orelha dos políticos. O eco reverberando incessantemente na consciência coletiva. Havia um consenso nos gabinetes da cidade. A voz tinha de ser calada. Planos secretos e estratégias sigilosas. A morte de Jesus precisava acontecer de forma natural, sem comprometer o sistema dominante. Para isto, seria necessário encontrar um indivíduo disposto a fazer o trabalho sujo. E para alívio dos conspiradores, existia este alguém. Caso de vida ou morte. Matar para não morrer. Muitos são os suspeitos que se encaixam no perfil. E assim começa o primeiro (e único) episódio de CSI: Jerusalém, apresentando seus principais personagens, enquanto te mantém no centro da investigação.

E lá estão eles. Por uma janela de vidro você observa suas ações, enquanto Cristo ainda agoniza na cruz. Com certeza, não há inocentes ali. Inúmeras motivações. Incontáveis ações contraditórias. - Sim.  Poderia ser qualquer um deles.

- Mas, qual?

Caifas está ajoelhado no templo, agradecendo a Deus pelo sucesso do julgamento tendencioso que presidiu na calada da noite.

Pilatos, com o rosto enrubescido pela vergonha, continua se lavando insistentemente, tentando se livrar do cheiro de covardia que lhe impregna o corpo.

Sobre a colina, o Centurião Romano lança um olhar vazio para o horizonte, segurando nas mãos, um martelo respingado de sangue.

No palácio, Herodes se banha numa tina repleta de especiarias, enquanto ri jocosamente se lembrando do “maluco beleza” que Nazaré produziu.

O Judeu na primeira fila, assiste entusiasmado a crucificação, vociferando palavras de ódio para o homem que sangra na cruz do meio.

 Judas, em desespero, corre sem rumo pelas vielas de Jerusalém, até que encontra um pedaço de corda jogado no chão empoeirado.

Pedro, escondido num quarto escuro, chora copiosamente, batendo seguidamente a cabeça na parede, repetindo melancolicamente frases de autoflagelamento emocional.

Barrabás, por sua vez, entorna outra caneca de vinho goela abaixo, enquanto conta para um velho desacordado, suas histórias de prisão.

Qual destes homens foi o responsável por puxar o gatilho? A calmaria de alguns gera desconforto e o desespero de outro provoca aflição. Todos possuem algum motivo escuso. Trama religiosa? Assassinato político? Discípulos vingativos se livrando de um mestre opressor? Quem mais se beneficia com a morte de Jesus?

Aí está a chave do mistério. Lucro. Ganho. Benesse. Procure pelo indivíduo que mais proveito obteve com a crucificação do Cristo, e certamente você ficará frente a frente com resposta do enigma. Pense. Reflita. Ligue os pontos. Olhe no espelho. - Quem dependia da morte de Jesus para viver? Quem tinha uma dívida tão alta, que somente preço de sangue poderia pagar? Qual o nome do pecador condenado, que recebeu o salvo conduto emitido na cruz?

Neste exato instante, enquanto a verdade lhe esbofeteia o rosto, ouça a maçaneta da porta girar. Os oficias entram na sala e você levanta os braços em rendição. Culpado! Sem direito ao contraditório. Você matou Jesus! Eu matei Jesus. Caifás, Pilatos, Herodes, Judas, Pedro, o judeu verborrágico e o centurião disperso. Culpados! Um grande esquadrão da morte que engloba todos os homens desde Adão. Os nossos pecados prenderem Cristo na viga de madeira. Nossas iniquidades esbofetearam seu rosto. O madeiro apenas o abraçou. Foi atravessado pelos mesmos cravos. Absorveu litros de sangue. Se existe um alvo para a ira de Deus, não é a cruz. Sou eu. É você. Quando Jesus expirou, ganhamos na loteria, mil vezes seguidas. A condenação eterna foi suspensa. O inocente morreu enquanto os pecadores celebravam a vida. Se minha existência fosse livre de pecados, Jesus não teria motivos para morrer. Matei, o meu Salvador!

Deus me odeia por isso?

Absolutamente não. A ideia foi Dele. Por amor, Deus nos entregou seu Filho, afim de resgatar da morte toda uma família (Efésios 3:15). E Cristo se deixou morrer. Não precisava. Não queria. Mas, aceitou. Em suas mãos foram cravados os pregos que estavam destinados à mim. Na sua cabeça, uma coroa de espinho que você deveria usar. Sem sacrifício não há remissão de pecados. E na culpa, não existe sacrifício. Então, o inocente morreu no meu lugar. Tudo foi por mim.

Eu sou o culpado. E também o absolvido. Deus não odeia a cruz, porque ela foi o caminho escolhido para chegar até a mim. O Cristo na cruz pavimentou a estrada que estava cheia de buracos. Reconstruiu a ponte quebrada no Éden. Restaurou a comunicação perdida no Jardim. Deus não odeia os assassinos de seu filho. Ele nos ama. Permitiu a morte. Garantiu a vida. Em Cristo, os valores se revertem, a ordem se inverte e todas as coisas se renovam. Jesus morreu por mim e por você, enquanto ainda usávamos a máscara do carrasco. O mais emocionante, é que Cristo faria tudo outra vez se fosse preciso. Mesmo sem ter qualquer obrigação. O amor é uma motivação tão intensa que soterra a desmotivação gerada pela dor. Parafraseando Came Deltanu, “se existisse somente você no mundo, ainda assim, Ele morreria naquela cruz, só por você!”

Processo encerrado. O assassino inocentado pela vítima. O juiz advogando em favor do culpado. Em Cristo, o pecado deixa de existir, e o crime se torna nulo mediante a resolução do caso. Afinal, quem é que pode ser condenado pela morte de alguém, que  três dias depois volta  a viver? O túmulo vazio, é o álibi definitivo de todo pecador!  

A cruz maldita se fez bendita. A tristeza em alegria se tornou. A noite escura revelou-se dia. Na morte a vida começou. Amados, jamais odiados. Inocentes, não mais culpados.

segunda-feira, 26 de março de 2018

Paciente Nº 0


 Todas as tristezas da fé reunidas, não se igualam em amargura,
a uma gota das tristezas do pecado.
(C. H. Spurgeon)


NOTA: Para um melhor entendimento deste texto, é recomendado a leitura previa de Jeremias 13. 

Algumas diretrizes apontadas por Deus são difíceis de seguir. Outras nem tanto. Quando Jeremias, (habituado as missões árduas imputadas a ele com certa regularidade), recebeu do Senhor a ordem para fazer compras na melhor loja “moda masculina” da cidade, se sentiu especialmente confortável. Dinheiro não lhe faltava, o tempo para cuidar de si mesmo é que andava escasso. Mas agora, avalizado por Deus, o profeta faria uma visitinha produtiva ao “Anatote´s Shopping Tower”, onde finalmente poderia repaginar seu guarda roupa já desbotado.

Sinceramente, não faço a menor ideia do tamanho da compra realizada por Jeremias e nem o valor final da fatura. Teria ele pagado tudo em dinheiro ou aproveitado a comodidade de um crediário previamente aprovado? Informações como estas são irrelevantes. Para entendermos o propósito desta história, basta saber que um dos itens adquiridos pelo profeta havia sido exigido pelo próprio Deus. Modelo, cor e número. Com recomendações de lavagem a seco.

- Compre um cinto de linho, coloque-o em volta da cintura e não o deixe entrar em contato com a água!

Jeremias estava faceiro em sua roupa nova. Um cinto de linho finíssimo, num branco tão intenso que faria a neve parecer cinzenta. Por alguns dias, o profeta caminhou pelas ruas de Anatote, mostrando a todos, sua mais recente aquisição. Mesmo sem entender os propósitos, se manteve obediente à Deus. Não tiraria o cinto do corpo, enquanto a voz do Senhor não ordenasse, mesmo que com o passar dos dias, o pedaço de tecido “clamasse” por uma visita ao tanque para um encontro “necessário” com sabão e amaciante.

Finalmente, uma nova orientação foi destinada ao profeta. Desta vez, absolutamente incompreensível.

- Vá até o Eufrates. Na fenda de uma rocha, enterre o cinto, e o deixe ali.

Tem horas que Deus parece estar de testando nossa paciência. Ele simplifica, para depois, complicar. Primeiro proíbe que roupas sujas sejam lavadas. E agora ordena que a mesma peça do vestuário seja levada até o Eufrates e enterrada sob uma pedra cheia de limbo. Qual o sentido desta catarse?

Jeremias estava vivendo na pele, o dilema do interlocutor. Por maior que seja a dificuldade na transmissão de uma mensagem, é imensamente mais fácil pregá-la, do que vivê-la. Seria muito simples, se Deus revelasse ao profeta o conteúdo do sermão, e o mensageiro por sua vez, apenas retransmitisse o recado divino aos destinatários. Mas, estaria Deus sendo justo se facilitasse desta maneira a vida do pregador? Certamente, nesta condição, o senso de responsabilidade seria drasticamente diminuído e o impacto da mensagem reduzido a zero.

Como acreditar em alguém que não acredita?
Como respeitar aquele que não se deu ao respeito?
Como absorver ensinamentos de um professor que nunca foi ensinado? 

Exatamente por isso, Deus leva o pregador a vivenciar sua própria pregação. Aprender para poder ensinar. A fé sendo provada e aprovada. Sem vivenciar toda a intensidade da mensagem que transmite, o profeta se priva do amadurecimento. Limita seu crescimento ministerial. Atrofia o desenvolvimento emocional. E Deus jamais “cederá” um milímetro, se algum prejuízo espiritual este recuo provocar. O Senhor complica, para que nos tornamos hábeis na arte de descomplicar. Os “nós” estão no caminho, esperando que aprendamos a desatá-los. Qualquer orador que almeja que sua audiência seja impactada pelas palavras que irá proferir, precisa entender que “ele mesmo” é o ouvinte “zero”. Se a mensagem não modificar o pregador que a transmite, vai causar mudanças em quem?

A distância entre Anatote (cidade natal de Jeremias) e Perate (as margens do grande rio Eufrates) era de aproximadamente quinhentos quilômetros. Jornada custosa demais, se o objetivo fosse apenas esconder um pedaço de tecido na fenda de uma rocha úmida. - Não haviam pedras em Anatote? - As águas do Eufrates seriam mais “molhadas” que os leitos fluviais de Gibeá? Apesar de existirem centenas de contra-argumentos, Jeremias cumpriu à risca, as ordens de seu Deus. Na verdade, estava feliz em se livrar daquele “trapo” mal cheiroso, impregnado de suor, gordura e poeira. Este pensamento diminuiu em “centenas de metros” a extenuante caminhada, e quando retornou para casa, o profeta se sentia bem mais leve, como se alguns quilos tivessem saído de seu lombo.

Como é recompensadora a sensação de uma mensagem entregue com totalidade. Em conteúdo e temor. As pernas param de tremer e o estômago deixa de revirar. Um suspiro de alívio sempre sucede o "amém". - Deixei no altar, aquilo que Deus me entregou! Vou embora sem levar comigo uma única grama de maná. Nenhuma palavra presa na garganta. Nos sentimos exatamente como Jeremias, deixando no Eufrates o cinto de linho. Nem desconfiamos que a "entrega" não é o fim da mensagem. Apenas sua introdução. 

Enquanto a palavra é “pregada”, todos “observam”, a grande maioria “ouve”, alguns “entendem”, poucos “assimilam”, mas, é o pregador quem a vive com total intensidade. A ministração, é apenas a ponta de um iceberg. A plateia não tem visibilidade de tudo que está abaixo da superfície. A rocha submersa. Orações, lágrimas e dores. A inspiração forjada no fogo. A oratória malhada a ferro frio. Para cada prego cravado no coração dos ouvintes, centenas de marteladas esmiuçaram os dedos do “marceneiro”. Se a alma de quem ouve sangra, o coração do pregador já se liquefez há bastante tempo. E todo este processo, é apenas o estágio inicial. A viagem de volta para Anatote, não faz o Eufrates desaparecer. Ele continua lá, guardando na fenda de uma rocha, o cinto de linho que ainda pertence a você.

A metáfora do cinto de linho é bem simples. O tecido branco representava Judá. Deus desejava estar perto de seu povo, desfrutar de plena intimidade com Jerusalém, sua filha mais querida. Assim como o cinto se apega a cintura da pessoa que o usa, o Senhor atraiu Israel, e com cordas de amor, o amarrou em seu dorso. Orgulhosamente, Deus caminhou pelas galáxias com sua roupa favorita. Porém, o tempo deu consciência ao tecido. O cinto achou que podia viver sua própria vida, longe da cintura que lhe dava forma e propósito de existir. O tecido se sujou. O mau cheiro do pecado o impregnou. E ele, arrogante nas tolas convicções pessoais, negava-se ao privilégio das águas purificadoras. Gostava de estar imundo. Acomodou-se ao cheiro pútrido das iniquidades. Mesmo assim, Deus insistia na proximidade. As narinas do Altíssimo queimavam por causa do odor, porém, o amor se revelava sempre mais forte. O problema, é que Deus não pode se vestir com roupas sujas, isto afrontaria sua pureza e santidade. Então, o cinto precisou ser guardado em uma gaveta.

O grandioso rio Eufrates era uma defesa natural de Israel contra invasores estrangeiros. De uma forma poética, as margens flertavam com o “sagrado” e o “profano”. Apenas suas águas separavam a “benção” da “maldição”. Neste lugar emblemático, Jeremias deixou seu cinto de linho. Um ponto de decisão sobre em qual dos lados se almeja realmente estar.

Muitos dias se passaram até que a voz do Senhor bradou dos céus novamente. – Jeremias, vá até o Eufrates, desenterre o cinto escondido e o incorpore novamente ao seu guarda roupa. Porém, quando o profeta retirou a pedra e removeu da fenda o tecido habilmente dobrado, sentiu o ar a sua volta impregnando-se com o cheiro da podridão. Os vermes se emaranhavam entre as fibras. O branco tinha sido consumido por um marrom esverdeado que provocava náuseas apenas pela aparência. Cheiro de morte. O profeta não precisou de um segundo olhar para seu diagnóstico definitivo: 

- Senhor! Como posso voltar a vestir este cinto? Ele se tornou imprestável e inútil!

Sim Jeremias. A mensagem de Deus chegou as narinas de Judá através de seu cinto apodrecido. Caminhar pelas ruas numa tarde de verão usando um adorno trabalhado em lodo e parasitas, ilustra perfeitamente o paradoxo do pregador. O linho corroído faz menção a decadência religiosa. O branco contaminado enfatiza o efeito do pecado em contraponto a santidade requerida. O mau cheiro exalado demostra a condição humana diante da Deus. Os trapos de hoje, exemplificam o resultado de escolhas equivocadas no passado. Aqueles que conscientemente se afastam do Senhor, inevitavelmente serão consumidos por suas próprias iniquidades. Inutilizados. Cintos esquecidos sob as pedras do Eufrates. Cada indivíduo da cidade, pode observar em Jeremias, o espelho que revelava a imagem escondida no interior de todos.

E aqui está o paradoxo. Deus poderia exigir que cada morador de Jerusalém vestisse farrapos apodrecidos. Que o pecador sentisse o cheiro da sua própria condição pecaminosa. Poderia. Mas, não funcionaria. Seus narizes já estavam necrosados e as roupas espirituais tão imundas quanto a lama de um chiqueiro. Não haveria contra ponto. Nem confrontamento. Apenas mais uma pinta no corpo do leopardo. Então, Deus vestiu um homem santo com trapos imundos. Uma listra negra no lençol branco. Improvável não ver. Impossível não se notar. Pregadores são por essência, perturbadores da ordem falsificada imposta pelo caos. Agitadores de águas mornas. Seguram em suas mãos as brasas vivas com potencial de incendiar o mundo. Pagam o preço para que outros desfrutem gratuitamente de Graça e Misericórdia. E não importa o meio pelo qual a mensagem será transmitida. O bônus da pregação é ser o pregador. O ônus também.

Jeremias é morador da cidade que será incendiada. A Babilônia também deporta profetas. E o pregador recebe a revelação com antecedência.  Não é agraciado com a benção da ignorância. Não tem o benefício da dúvida. Ele sabe a verdade. Sobe numa montanha russa com total ciência que os trilhos estão danificados. Grita a exaustação anunciando a tragédia iminente, e ninguém escuta a voz exaurida. A apatia de seu povo, é a dor mais lacerante de um profeta. E mesmo assim, lá está ele. Rouco, cansado e vestido com trapos apodrecidos. Vivendo a mensagem que prega. Sentido na alma o amor de Deus, enquanto a pele recebe saraivadas da justiça divina. O ouvido mais próximo do trovão. O primeiro a ser golpeado pela espada de dois gumes, cujo corte é tão afiado e preciso, que atravessa juntas e medulas, perfurando a alma e o espírito. 

E antes que um golpe de "arrogância" lhe derrube da torre de vigia, pondere vagarosamente sobre a sabedoria das escolhas divinas. Se Deus te escolhe para transmitir determinada mensagem, é bem provável que o alvo prioritário seja exatamente você.

Pense num carrasco empunhando o chicote nas mãos. Lá está ele, afoito por açoitar um “Zé Qualquer”. Então, para executar seu propósito, ergue o braço num ângulo de cento e oitenta graus. É pouco. Para ter mais força no golpe, ele dobra o cotovelo em noventa graus. Tudo isto em questão de segundos. Antes de atingir as costas do alvo, o primeiro estalar do chicote, será no lombo de quem o empunha. Lembre-se: Cada vez que seu dedo "Indicador" estiver apontando para alguém, o "Médio", o "Anelar" e o "Mindinho" estarão contra você. Com apenas um "Polegar" tentando defendê-lo. Simples assim. Despidos de superioridades. Apenas servos. Mais um nome na lista negra. Para denunciar o pecado, por vezes Deus nos reveste de podridão.

É justo isto? Sinceramente, eu acho que não. Mas, quem sou eu para achar qualquer coisa? Mal consigo entender Deus. Que argumentos tenho eu para questionar? Tudo o que sei, é que antes de um parágrafo ser escrito, o Senhor já me fez sentir na alma a intensidade de cada palavra digitada. O mesmo vale para o altar. Sempre que choro durante a ministração de alguém, me ponho a pensar em quantas lágrimas o pregador derramou sobre aquele esboço. A mensagem rasga de dentro para fora. Se não há renovação na vida do mensageiro, não existe motivos para a mensagem ser pregada.

Jeremias era um homem pregando a justiça, mesmo sendo injustiçado. Clamando por santidade, ainda que seu figurino incluísse moscas varejeiras e vermes do lodo. O exterior resiste a contaminação se o interior estiver livre de mácula. Antes da palavra sair pela boca, ela precisa reverberar no coração. Fortalecer o caráter. Aniquilar o velho homem. Crer acima da crença. Ser o primeiro a dizer “AMÉM”, mesmo que a mensagem confronte o próprio pregador.  (Jeremias 11:1-5).

Testemunhei pastores pregando que Jesus cura, enquanto eram devorados pelo câncer. Outros, bradando libertação, mesmo tendo filhos atrás das grades. Mensagens de alegria, se contrastando com travesseiros banhados em lágrimas. Palavras de esperança, enquanto se esperava o fim. Conselheiros matrimoniais, lutando para salvar o próprio casamento. Exterior e interior em aparente conflito, quando na verdade, predominava a paz absoluta. A "palavra" harmonizando as divergências. A "pregação" provando a fé do pregador, e o pregador sendo aprovado. O "remédio" fazendo efeito no "Paciente N° 0". Cura eficiente e que apenas se sente, quando se entende o conceito de eternidade.

Lembro-me do dia que desabafei com minha irmã Ruth sobre como as coisas estavam indo de mal a pior. Projetos fracassados. Sonhos que renasciam para simplesmente morrerem outra vez. – Eu não entendo o que Deus está querendo de mim. Tem horas que dá vontade de jogar tudo pra cima! 

A resposta que ela me deu foi simples e objetiva, incluindo apenas uma pergunta retórica: - Qual é mesmo o nome do seu "blog”?  Engoli em seco, antes que as palavras alcançassem a língua. Depois de uma longa pausa reflexiva, me fitando com aqueles olhos verdes incandescente, ela concluiu: - Quando você menos entende, mais precisa confiar.

Nascia ali, um lema de vida, que preciso visitar e revisitar todos os dias. E sempre que o repito (seja num texto, num vídeo ou numa pregação), tenho plena certeza que a mensagem está sendo pregada para mim mesmo. As demais pessoas impactadas, são apenas um efeito colateral bem sucedido da minha carência pessoal por edificação. Este é o meu cinto de linho. Preciso usá-lo com responsabilidade, gostando ou não da cor.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Você aceita ser um milionário?

  A adversidade é nossa mãe; a prosperidade é apenas uma madrasta.
(Barão de Montesquieu)


- Há alguém aqui em nosso meio que gostaria de aceitar a Jesus como seu único e suficiente Salvador?

Tenho ouvido esta pergunta (ou seria convite?) nas últimas três décadas sem jamais me cansar dela. Na verdade, se um culto termina sem que este apelo seja repetido à exaustão, alguma coisa fica terrivelmente fora do lugar. Nada é mais prazeroso ao cristão, do que testemunhar uma alma se rendendo ao Senhor Jesus. Celebração na terra e festança no céu.

Particularmente, eu prefiro reformular a pergunta para deixá-la mais contextualizada com essência da “oferta e procura”. Cristo não é uma mercadoria sendo exposta na prateleira para possíveis compradores. Ele não é item de catálogo à ser avaliado por consumidores. Quem é o homem para estabelecer parâmetros que justifiquem o “ACEITO” / “NÃO ACEITO”? Assim, me soa bem mais pertinente o convite feito de maneira irrecusável (louco é quem o recusa), colocando Jesus - O Cristo, no posto que realmente lhe faz jus:

- Há alguém em nosso meio que deseja entregar sua vida para Jesus Cristo, nosso único e suficiente Salvador?

Questões de semântica. O que realmente importa é que Jesus Cristo seja anunciado a toda humanidade. Absoluto. Suficiente. Não se faz necessários maiores benefícios. Sim, é claro que Jesus cura, batiza, transforma, liberta, resgata, regenera, justifica, abençoa e purifica. Mas, estes são apenas detalhes. Jesus salva! Este é o ponto. Todo o resto é bônus. Nada de direitos adquiridos, apenas favores imerecidos.

Infelizmente, nossa geração é gananciosa. Filhos da Sanguessuga (Provérbios 30:15). No afã por “conquistar o impossível”, desprezamos o possível. Banalizamos o essencial. A Salvação encontrada em Cristo deixou de ser suficiente. Visando este "mercado", as denominações concluíram a mesma coisa. É preciso oferecer mais que Jesus. Ter um produto exclusivo que atraia consumidores. E não se engane. Todas as igrejas, independente do placa, nome ou escola teológica, tem seu catalogo à disposição. Umas oferecem liberdade, outras ofertam legalismo. Música. Arte. Exorcismo. Dogma. O “cardápio” no restaurante da fé é vasto. Prato para todos os gostos. E se a consumação mínima for respeitada, Jesus é cedido como uma cortesia. Brinde no canto da bandeja.

E nada é mais atraente para as massas que o evangelho mercantilista. Aquele que equipara Jesus a uma espécie de “Rei Midas”, capaz de transformar a cruz inerente a jornada cristã, em barras cruzadas de ouro. A riqueza prometida estampada nos cartazes, enquanto o nome de Jesus aparece apenas nas letras miúdas. Templos abarrotados por multidões ansiosas pelo sucesso, buscando nada mais que dinheiro e poder. Prosperidade. Casas. Carros. Viagens. Glamour. Ofertas de seis dígitos para gerar contas bancárias de zeros infinitos.

E os lobos que se alimentam apenas com a carne das ovelhas, já descobriram a fórmula do crescimento instantâneo. Ministérios “miojos”. Basta mudar completamente a pergunta que por anos tem transformado a vida de milhares. Não com o propósito de melhor contextualizá-la, mas sim, para deturpar sua essência, e torná-la mais atrativa. 

- Você quer entregar sua vida para Jesus?  Imagine esta indagação sendo feita a cada indivíduo existente na terra. Pergunta simples e direta. Sem explicações. Apenas duas alternativas. Qual a porcentagem das pessoas que diriam “SIM”? Baixíssima, creio eu... Descaso, desinteresse, desconhecimento. Seriam muitos os argumentos justificando a baixa aceitação.

Vamos revisitar o questionário. Imagine-se diante de cada morador deste planeta, repetindo para todos a mesma pergunta, porém, sob nova perspectiva: – Você deseja ser um milionário? Aceite a Jesus, Ele certamente te deixará rico! Qual seria a porcentagem de aceitação? Provavelmente, centenas de vezes maior! Jesus se torna mais atrativo, quando seu nome vem rodeado de cifrões.

Talvez você esteja neste instante, torcendo a nariz para estas palavras. Sente-se afrontado com meu pensamento "miserável" e desprovido de “ambição gospel”. Provavelmente já puxou pela memória algum versículo que justifique a doutrina do “querer é poder” pulverizada na cristandade moderna.

- A Bíblia diz que uma vez que entregamos nossa vida para Jesus, todas as coisas boas deste mundo, aquelas que sonhamos e desejamos, também nos serão entregues.  A promessa de Deus para seus filhos é que eles serão prósperos!

Sério? Onde foi lavrado este contrato, porque ainda não o assinei. Acho que preciso me reunir com o RH dos Céus e rever algumas cláusulas. Me sinto injustiçado já que Deus ainda não me deixou rico, mesmo depois de décadas me devotando ao seu Reino. Talvez, o que precisamos mesmo, é urgentemente revisitar a essência do evangelho, e reaviar os próprios conceitos de riqueza, sucesso e prosperidade.

Prosperidade vem do latim “prosperĭtas”, que remete a ideia de “êxito naquilo se pretende fazer”. O termo também pode ser entendida como uma situação favorável, boa sorte ou sucesso. Pois é exatamente isso que a Bíblia promete a todos os que se mantem fiel ao Senhor e buscam seu Reino acima de tudo. Entretanto, nossa geração tem confundido prosperidade com riqueza material, e este erro, infelizmente, mina e deteriora a fé de muitos cristãos, que erroneamente tem se proposto a viver do evangelho por achar que assim, todos os seus desejos serão realizados e que irão, em tempo integral, navegar num mar de rosas sob céu de brigadeiro.

Davi foi categórico ao afirmar que em toda a sua vida nunca havia visto um justo desamparado ou os seus filhos mendigando pão (Salmo 37:25). Mas, ter pão em casa, não significa necessariamente que haverá uma mesa farta para o café da manhã. Como já disse o filosofo inglês Francis Bacon, “a prosperidade não está isenta de muitos temores e desprazeres, assim como a adversidade não está desprovida de conforto e esperança” A promessa para o cristão fiel é sim de “prosperidade”. Sucesso diário em seus afazeres. E isto significa que Deus proverá aos seus filhos os "viveres básicos", como roupas e alimentos. Pode não sobrar, mas certamente, nunca faltará. E o texto bíblico que deixa está verdade mais límpida que as águas cristalinas da Ilha Linapacan, é o exato verso que lhe reverbera na mente como se André Agassi e Roger Federer jogassem tênis usando como bola os seus pensamentos. Mateus 6:33:

Buscai, assim, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas.

Muitos pregadores modernos usam este verso para ensinar seus ouvintes que uma vez buscado o Reino de Deus, todas as coisas serão agregadas automaticamente em vidas. O bom e o melhor. O “muito” e o “mais ainda”.  Nada disto. Esta espiritualização do material é uma interpretação incorreta do ensinamento de Jesus. Aqui, o mestre não fala de “todas as coisas”, mas sim, sobre “estas coisas”. E que “coisas” seriam estas?

Sermão da Montanha. Basta uma leitura rápida no contexto para entender que Jesus ensinava aos seus discípulos o “A-B-C” do cristianismo. Percebendo neles certa preocupação com os subsídios materiais para se lançar intensamente na pratica da fé (abandonar as redes certamente abriria um rombo no orçamento doméstico), lhes expôs uma nova realidade espiritual:

-  Não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas? E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura? 

E, quanto ao vestuário, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; e eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé?


Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos? Porque todas estas coisas os gentios procuram. Decerto vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas. Buscai, assim, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas (Mateus 6:25-33).

Jesus fez sim uma promessa de prosperidade aos seus discípulos, dizendo a eles que a “fidelidade” na busca pelo Reino de Deus resultaria em provisão diária do que comer, beber e vestir. O grande Jeová Jireh cuida de seus filhos providenciando os víveres básicos inerentes ao dia a dia (lembre- se da oração modelo: “o pão nosso de CADA DIA nos daí HOJE”). Se estamos alimentados, saciados e vestidos, Deus tem sido fiel com sua promessa. Somos, de fato, prósperos e muito bem-sucedidos. 

Se aprendemos a viver sobre o cuidado de Deus, e o Senhor por sua vez, não tem negado seu cuidar, toda a nossa vida passa a fazer completo sentido. Sucesso absoluto. Êxito total. Minhas roupas desbotadas provam a minha prosperidade. A marmita que levo para o trabalho prova a minha prosperidade. A garrafa PET com água na geladeira de casa prova a minha prosperidade. O maná caindo dos céus toda manhã. Sobrevivência garantida, enquanto em Cristo, encontro propósito, segurança, refrigério e salvação. Dá para ter mais sucesso que isto? Como sempre diz meu pai, Pr. Wilson Gomes, “a maior prosperidade de um homem é deitar-se em sua cama e conseguir dormir em paz”

Mas, Deus é bom além da nossa compreensão. Quando nos rendemos a supremacia de Jesus, permitindo que Ele seja absoluto em nosso viver, as janelas dos céus se abrem.  Somos presenteados comum novo alvorecer a cada dia, repleto de novas possibilidades. O Senhor renova nossas forças e nos propicia o fôlego de vida, para que possamos lutar por regalias adicionais. O possível é um sonho que repousa na mão direita, apenas aguardando o momento de acordar. E o despertador está na esquerda. Faça a sua parte, enquanto Deus faz a Dele. Lembre-se sempre das palavras de C.S Lewis: - Deus sussurra a nós na saúde e prosperidade, mas, sendo maus ouvintes, deixamos de ouvir a voz de Deus. Ele gira o botão do amplificador por meio do sofrimento. Aí então ouvimos o ribombar de sua voz.

Aceite o convite. Entregue-se a Cristo. Por que Ele é. E então, Ele faz. A despensa do crente pode estar vazia, mas sobre sua mesa haverá alimento diário. Em sua alma também. Priorize ao "Senhor das Bênçãos", ao invés de priorizar as "Bênçãos do Senhor".  Deste modo, mesmo em tempos de guerra, você encontrará regaços de paz. Ainda que o mundo a sua volta esteja desmoronado, sua casa permanecerá firmada e tua família se manterá em pé. Maior prosperidade, duvido existir.

domingo, 18 de março de 2018

Fora da fila. Ignorado na lista

Muitas vezes descobre-se que aquilo que se despreza
vale mais do que aquilo que se exalta.
(Fedro - Platão)


Eliabe tinha porte de rei. Alto, forte e com uma vitoriosa carreira militar no curriculum. Sua presença era imponente e transmitia a sensação de segurança desejada por todos os moradores do reino. Seu olhar austero era revestido de seriedade, mesmo que um meio sorriso no rosto lhe desse aquele simpático ar jovial. Ele era a aposta certeira de Jessé: - Se um dos meus filhos nasceu para ser rei, certamente é Eliabe! Este menino é minha fonte de orgulho e felicidade, desde o dia de seu nascimento. Minha primícia! Meu primogênito! 

Entenda:

Saul, governante em vigência, havia sido rejeitado por Deus. Suas ações imprudentes não condiziam com a responsabilidade do posto que ocupava. Então, o profeta Samuel foi incumbido pelo Senhor de encontrar e ungir um novo rei para Israel. Mas, desta vez, a escolha teria que ser mais seletiva. Não seriam considerados critérios humanos, como porte físico e destreza bélica. Deus estava interessado em um “coração nobre”, e não em meros “comportamentos reais”. Na casa de Jessé, havia alguém que preenchia este requisito, e exatamente por isso, Samuel encheu um chifre de carneiro com azeite, e desceu até a cidade de Belém. Antes que a noite chegasse, o trono hebreu teria um novo postulante.

Assim que foi informado sobre o propósito da visita realizada pelo profeta, Jessé lhe apresentou Eliabe. E a preferência paterna fazia todo o sentido biológico. Assim que viu o moço, sem maiores avaliações, Samuel se pôs em pé e exclamou: - Com certeza, este é o homem a quem o Senhor deseja ungir como rei! Porém, neste mesmo instante, a voz de Deus reverberou nas entranhas do profeta: - Ah, Samuel! Depois de velho, perdeste o juízo? Não considere a aparência de Eliabe, e nem mesmo a sua altura, pois eu, o reprovo totalmente. O homem se vislumbra com a aparência, mas o Senhor, enxerga o coração! (I Samuel 16:7).

Eliabe. Exterior aprovado pelos homens. Coração reprovado pelo próprio Deus. Jessé demorou alguns minutos para assimilar a negativa. - Se não fosse Eliabe, quem seria? Impacto assimilado, o velho belemita lançou mão de todas as opções. E assim, um a um, seus filhos passaram pelo crivo visual do profeta, enquanto Deus sabatinava intensamente, a alma de todos eles. Seis jovens promissores, fortes e destemidos. Elegantemente vestidos e exalando nobreza pelos poros. Samuel poderia fechar os olhos e, fazendo “Uni-Duni-Tê”, escolher qualquer um deles. A expressão “tanto faz” deve ter sido cunhada naquele dia. Porém, a resposta do profeta a cada nova apresentação era sempre a mesma: - Este não é o homem a quem o Senhor escolheu!

Abnadabe. Reprovado.
Samá. Reprovado.
Netanel. Reprovado.
Radai. Reprovado.
Ozen. Reprovado.

Neste ponto. A sala de espera já estava vazia. Não haviam mais candidatos aguardando sua vez. Samuel coçou a cabeça, enquanto o pai desconsolado lhe lançava um olhar revestido em decepção: - Sinto muito, Jessé. O Senhor não escolheu nenhum deles!

Estaria “Samuel” na casa do “Jessé” errado? O GPS de Deus teria dado defeito na mais crucial das horas? O profeta ponderou por alguns minutos, e pleno de certeza que a sabedoria de Deus é inerrante, chegou a conclusão lógica: - Ainda falta alguém!

Por qual motivo, naquele momento familiar histórico, um membro importante do clã seria propositalmente deixado de fora? Particularmente, acredito que Jessé amava intensamente todos os seus filhos, do maior ao menor. Porém, um deles não se encaixava no contexto. Sua presença poderia ser uma fonte de constrangimento para todos, incluindo, ele mesmo. Estaria Jessé poupando seu rebento de uma competição na qual não existia a menor possibilidade de vitória?

Nunca fui um exemplo de atleta. Nas aulas de educação física no colégio, os capitães dos times brigavam por mim. – Pode ficar com o Miquéias – Não.... Fica com o Miquéias você! Eu estava sempre entre os últimos a serem escolhidos para compor as equipes. Só entrava em algum time por exigência do “professor”. E esta era uma sensação muito desconfortável. Se o assunto fosse “Olimpíadas de Matemática” ou “Concurso de Redação”, meu nome figura na lista de favoritos, mas se tratando de esporte, ninguém me queria usando a mesma cor de uniforme. Assim, nunca tive a alegria de ver meu nome no topo da lista dos convocados para a seleção do colégio, mesmo gostando muito de “correr” pela quadra enquanto os demais “jogavam futebol”.  

Pois é. Estar no fim da fila é sempre desagradável. Ler seu nome na última linha da lista, é desolador. Mas, poderia ser pior.

E quando você é proibido de entrar na fila?
E quando o seu nome fica de fora da lista?

Samuel olhou para Jessé com desconfiança: - Tem certeza que todos os seus filhos já me foram apresentados?

E então, neste momento, o pai se lembrou do caçula. Quando Samuel bateu na porta buscando um rei, o menino sequer foi considerado como um possível candidato. Não fazia o tipo. Não se encaixava no estereótipo. Não atendia as exigências requeridas.

Jovem demais.
Imaturo demais.
Franzino demais.
Pequeno demais.

Inúmeras eram as deficiências de Davi para postular o trono de Israel. Filho mais novo. Apenas dezessete anos. Enquanto os irmãos eram homens já formados, morenos espadaúdos de musculatura torneada, Davi era um ruivinho de sorriso fácil, cujas vértebras se destacavam sobre a pele quase albina. O menino não impunha respeito. Não tinha experiência militar. Passava seus dias no campo, cuidando de ovelhas, cantarolando suas canções favoritas. Algumas, que ele mesmo compôs em sua harpa gasta e manchada pelo verde dos gramados.

- Ainda tem Davi! Respondeu Jessé! - Mas, creio que ele não atenderá as suas expectativas. É o mais jovem de todos, e tudo o que sabe da vida é cuidar de ovelhas. Nada mais!

- Pois, bem! Ponderou Samuel. – Mande chamá-lo agora mesmo. Vim a sua casa para ungir o novo rei de Israel. E só sairei daqui, com minha missão concluída. Nesta casa, ninguém come uma migalha de pão, enquanto este menino chamado Davi, não se unir ao restante da família!

Davi. O maior rei da história de Israel. Sua estrela real ainda está centralizada na bandeira israelita. Matador de gigantes. Destruidor de exércitos. O terror dos filisteus. O maior salmista da história. Arquiteto do grandioso Templo. O homem cujo coração Deus aprovou pessoalmente. Mas, antes da glória, dantes da vitória, aquém da fama, ele era apenas o caçulinha, esquecido pela família nos pastos da vida, e cujo nome sequer, foi contado entre os postulantes ao sucesso. Fora da fila. Ignorado na lista. Não havia uma senha reservada para ele. Jessé tinha sete filhos, mas no momento da unção, haviam apenas seis cadeiras circundando a mesa de jantar.

Davi. O palácio não o fez rei. Foi o pasto. O anonimato. A multidão que o carregou nos braços após a vitória contra Golias, não testemunhou suas batalhas secretas. O leão. A ursa. Suas composições, que ainda hoje são cantadas por milhares de pessoas, por muitos anos embalaram apenas o sono de ovelhas e carneiros. Nenhum homem viu. Nenhum familiar ouviu. Mas, Deus sempre esteve atento. Sondando as intenções do pastorzinho de Belém. Jeito de plebeu. Coração real. Um pastor disposto a lutar com feras para salvar a vida de uma única ovelha, preenche integralmente os requisitos celestes de governo, domínio e honra.

E então, Davi entrou pela porta. Esbaforido. Veio correndo assim que soube da convocação do profeta. Não deixaria o homem de Deus o esperando. Pronto para o serviço. Disposto a obediência. Ele não teve tempo para trocar de roupa. Vestir seu melhor terno. Sequer, lhe foi permitido uma pausa para o banho. Se apresentou ao profeta impregnado pelo cheiro das ovelhas. A roupa incrustada de espinhos. Os cabelos vermelhos adornados com folhas e gramas. Havia pressa no ar. O cheiro de comida vindo da cozinha impregnava o ambiente, e uma dezena de homens famintos estavam desesperados por um naco de novilho assado. Davi foi empurrado sala a dentro. Todos só queriam se livrar do entrave criado por Samuel.  

- Muito bem, velho decrépito! Aí está Davi... Avalie você mesmo a “impresteza” deste imprestável. O reprove logo, como reprovou a todos nós, para que possamos pelo menos, nos refestelar de pão e guisado!

Samuel olhou o menino e sorriu para ele. A aparência do moço não era impressionante, mas sua presença se fazia gentil. Realmente, Jessé tinha razão. Davi não tinha nada que o credenciasse ao trono. Nem de longe se parecia com um rei.  Magro. Infantil. Pequeno. Inexperiente. Não possuía o porte atlético de seus irmãos. - Seria este menino, filho legítimo de Jessé? A discrepância era gritante. Enquanto Samuel vagueava em seus pensamentos, e se conformava com a possibilidade de voltar para casa com o azeite da unção intacto no invólucro, a voz do Senhor bradou dos céus, e fez tremer as estruturas de seu profeta!

- Samuel! Levante-se! Tome nas mãos o azeite e unja o menino. Este é o homem que meu coração deseja. Este é o rei a quem tenho escolhido!

Então, diante de seus irmãos, Davi foi ungido rei. O menor governaria sobre os maiores. O pastor de ovelhas, seria soberano de uma nação. E a partir deste instante, o Espírito de Deus, se apoderou de Davi, e seu treinamento definitivo teve início. A jornada entre o pasto e o trono seria longa e demorada. Mas, um homem segundo o coração de Deus, sabe esperar o tempo de Senhor, e viver intensamente cada linha da história escrita pelo grandioso Autor da Vida. Sem filas. Sem listas. Sem senhas.

Não se preocupe com o tempo. Não se desanime com as avaliações negativas. A história de Deus para sua vida já foi escrita, selada e registrada no cartório da eternidade. Ninguém toma seu lugar. Enquanto Davi estiver esquecido no pasto, Saul estará na sala do palácio, apenas para com seu manto dourado, lustrar o trono de Israel, afim de que o brilho do ouro faça jus ao coração resplandecente do futuro rei. Apenas deixe a fila andar. Quando seu nome finalmente for chamado, a sala de espera estará vazia, e seu encontro com Deus será intimo, pessoal e transformador.


terça-feira, 13 de março de 2018

Exercício de Memória

A providência juntou na abelha a doçura do mel e a agudez do ferrão
(Baltasar Gracián)



Fevereiro de 1994. Culto das Crianças. Os pequenos se esbaldaram. Leitura de versículos, cânticos, jograis, poemas... E para completar a noite, uma ministração voltada para... os adultos. Ciente que havia algum descompasso nesta sistemática, o pastor se voltou para o grupo infantil da igreja, lançando o desafio: - “No próximo mês, quero ouvir uma criança pregando a Palavra de Deus neste altar!”  Não posso garantir que o pastor tenha levado a sério esta convocação, mas asseguro, que entre as crianças, alguém levou. 

E nos dias seguintes, aquele menino devorou as páginas da Bíblia, rascunhando em “folhas de papel almaço” sua mensagem expositiva. Assim, que recebeu a notícia que um dos “infantes” estava se preparando para ser o preletor do culto “infantil”, o pastor ficou inquieto. - Seria prudente confiar tamanha responsabilidade a um “pregador com cheiro de leite”?  Porém, a mãe do menino (coincidentemente, também esposa do pastor) foi absolutamente categórica na intervenção: – Você não queria uma criança pregando em seu altar? Pois agora, você tem esta criança! Deixa o menino pregar!

E foi assim, que em 09 de março de 1994, aos nove anos de idade, eu ministrei meu primeiro sermão. E o tema escolhido, retratava exatamente o momento vivido pela minha família: - “Jeová Jireh! O Deus da Provisão!”

Ainda tenho uma dívida de gratidão com toda a irmandade que pacientemente me ouviu naquela noite. Agradeço a Deus por cada alma caridosa que retribuiu minha retórica inoperante com “Glórias e Aleluias”. Durante exatos vinte e cinco minutos, corri desesperadamente entre as páginas de Gêneses e Apocalipse, citando momentos da história, onde Deus entrou com providência mediante as necessidades humanas. As roupas de Adão e Eva. A Arca de Noé. O cordeiro de Abraão. A esposa de Isaque. O trono de Davi. A manjedoura de Cristo. A visão de Bartimeu. A abertura dos selos presenciada por João. O Deus que proveu. O Deus que ainda provê. O Deus que sempre proverá. O Jeová Jireh que do “pouco” faz o “muito” transbordar. O Criador que utilizando o “nada” como matéria prima trouxe “todas” as coisas a existência. E lá estava eu. Ponto a ponto, destrinchando os tópicos que ensaiei por horas na frente do espelho da velha penteadeira.

Mas, em determinado momento, lembro-me perfeitamente de fechar a Bíblia sobre o altar, e deixar de lado o esboço escrito à mão. Neste ponto da mensagem, comecei a compartilhar com a igreja, as experiências vividas dentro de casa. Aquele era um tempo de vacas magras, lavouras secas e cisternas rotas. Dias onde a nossa dispensa estava completamente vazia, e mesmo assim, no almoço e na janta, o fogão se mantinha ativo. A providência divina visitando nosso lar com uma precisão micrométrica, infalível e eficaz.

Tenho muito orgulho em dizer que o pastorado não deixou meu pai rico. Pelo contrário, materialmente, a entrega sempre foi maior que qualquer benefício recebido. Cresci numa casa onde o altar era dividido com os canaviais. A Bíblia em uma mão, e o facão bem amolado na outra. As boquinhas famintas em casa, não permitiam que a fuligem do carvão desaparecesse dos entornos daquelas unhas “pastorais”. E com o pouco dinheiro ganho nas lavouras, papai sustentava a família, cuidava da casa e contribuía no templo. Mas, haviam as entressafras. As estiagens. Os surtos de pragas nas plantações. E neste ínterim de tempo, quando os recursos minguavam, é que mais testemunhávamos o agir de um Deus provedor.

Não se preocupe. A intenção deste texto não é fazer sensacionalismo e nem te impressionar com histórias mirabolantes. Nunca choveu moedas em nossa sala, ou qualquer cheque milionário foi encontrado na caixa de correios. Deus cuidava de nossa família com um maná diário, bem mais singelo. A sistemática era simples. O armário da cozinha, onde deveria ficar o estoque de mantimentos, estava absolutamente vazio. Nem as aranhas queriam fazer suas teias ali, já que nenhum inseto tinha motivos para transitar no local. Porém, quando se aproximava a hora do almoço, o fogão começava suas atividades. Mamãe colocava as panelas no fogo e os filhos famintos se agrupavam ao redor da mesa. Ninguém tido ido ao mercado. A venda da esquina não marcava na caderneta. Mesmo assim, o chiado do caldeirão se fazia ouvir.

- De onde vinham as refeições?

As fontes eram sempre variadas. Às vezes, pela manhã, nossa vizinha chamava no portão: - Dona Márcia... Recebi uns parentes para a janta de ontem e sobrou muita comida. Estou com dó de jogar fora... Tem macarrão e carne... Será que a senhora quer dar as sobras para os cachorros? E lá estávamos, eu e meus irmãos, abanando o rabinho e falando “au-au”. Almoço garantido. No cair da tarde, a saudosa irmã Maria chegava em casa para uma visita “surpresa”. A tiracolo, trazia sua sacolinha plástica azul: - Márcia, senti no coração de lhe trazer um bocado de arroz e um gomo de linguiça. Faz para as crianças.  E esta era a nossa janta. No dia seguinte, o ciclo se repetia. As dez horas, provisão para o almoço. Cinco da tarde, a providência do jantar.

Fazíamos uma refeição sem a menor ideia de onde viria a próxima. E em nenhum destes dias de escassez, minha família deixou de almoçar ou jantar. Se não tinha carne, Deus mandava batata. Se faltava feijão, o Senhor nos agraciava com ervilhas. Quando o leite não era entregue, alguém nos presenteava com nacos de queijo. E cada intervenção providencial ficou gravada a fogo nas entranhas da nossa geração. Incrustadas na memória de todos. Naquela noite chuvosa de quarta-feira, no templo da Assembleia de Deus Madureira no Jardim Nova Odessa, na cidade de Mogi Guaçu, o menino que pregava não estava apenas reproduzindo histórias bíblicas aprendidas na Escola Dominical. Ele falava sobre a própria vida. A confiança na providência divina, sustentada pela provisão diária de Deus. A lição prática que ensina o homem a viver na dependência do milagre.

- Ora, Miquéias... Para alguém que trabalha com as palavras, você deveria ser mais cauteloso e pragmático... Ao invés de “milagre” por que não usa o termo “coincidência”. Seu relato condiz muito mais com “golpes aleatórios de sorte”, do que com “intervenções sobrenaturais do Todo Poderoso”.  

Já ouvi muitas conversas deste tipo. Nenhuma delas foi capaz de abalar minhas convicções. E sabe o porquê? Simples. A nomenclatura, tanto faz. A interpretação interpessoal pouco me importa. Tudo que sei, é que foram estas sucessões de “coincidências” que mantiveram nossas barriguinhas cheias por muitos meses. Além disto, quantas “coincidências” eu preciso enfileirar antes de entender que o milagre também reside nas pequenas coisas? Seria muito mais interessante contar para você sobre as águias que desciam no quintal de nossa casa, trazendo nas garras novilhos assados. Este relato ficaria muito mais interessante se envolvesse uma misteriosa chuva de pão sobre a mesa. Possivelmente, vendaria milhares de livros falando sobre a árvore de dólares que nasceu em nosso jardim. Mas, tudo não passaria de mentira. Deus não precisou de nenhuma traquitana miraculosa para sustentar minha família. Ele apenas se valeu dos corações piedosos de seus servos.

          

Nosso problema, é que nos acomodamos a este cuidado, e passamos a exigir do Senhor uma série de regalias. E se não somos atendidos, fazemos biquinho e cara feia. Deus nos dá o pão diário, porém, queremos ser o dono da padaria. O Senhor promete nos revestir de prosperidade, e já planejamos a construção de uma caixa forte maior que a do Tio Patinhas. Na ânsia pelo que é “melhor”, pisamos em tudo que já é “bom”. Nossa ingratidão esbofeteia a face daquele que nos sustém. E este comportamento ignóbil, além de deselegante, é trágico.

Exatamente por isto, tenho ótimas lembranças (saudades, jamais) dos dias de escassez (que ainda pontuam o calendário com regularidade). É mais fácil desenvolver um senso de gratidão olhando para a dispensa vazia enquanto se tem nas mãos um prato cheio, do que estando com a dispensa cheia, se pôr a reclamar por não ter nada no prato. E esta foi uma lição que a vida me ensinou ainda criança. Eu não preciso estar cercado de riquezas, para me sentir rico de verdade. Estar debaixo da vontade de Deus e cercado de pessoas amáveis, é um bem tão precioso, que nem mesmo todo o ouro do mundo poderia avalizar. E mesmo nas colheitas mais minguadas, Deus faz brotar da terra ressequida todo este amor. 

Preciso mesmo de qualquer outro motivo para ser agradecido? O pequeno pregador tinha plena certeza que não. A graça de Cristo lhe era mais que suficiente.
Aquele menino que se emocionava ao falar do Jeová Jireh, cresceu e se tornou homem. Hoje ele passa mais tempo entre as teclas de um notebook do que nos altares dos templos. Mas, continua pregando a mesma mensagem, ainda que as palavras se mostrem mais rebuscadas: -  “Confiança plena num Pai que jamais abandona sua prole”. Assim como você, Ele também não entende as escolhas que Deus faz, e nem compreende os caminhos que foram pelo Senhor delineados. A provação bate na porta e o frio lhe percorre a espinha. Ele escreve, e apaga. Mesmo assim, segue confiando num propósito maior, mesmo que os anos tenham levado embora a parte mais lúdica da inocência. Em cada linha digitada, lida, relida e editada, lá está ele, tendo fé que o socorro bem presente nunca falha, mesmo que pareça demorar “um pouquinho”. Ainda que o galho se resseque e as folhas venham a cair, existe sustança na raiz. Uma experiência de vida que é o contraponto de luz nos mais escuros prognósticos. A lembrança lançando fora qualquer dúvida. Recentemente, ele estabeleceu um lema para sua vida e tem se esforçado bastante para compartilhá-lo com o máximo de pessoas possíveis:  - Quando menos entendo, mais preciso confiar!

Isso implica em olhar para dispensáveis vazias, mas nunca deixar faltar fósforo e gás. Na hora exata, antes da fome lhe esmurrar o estômago, haverá pão sobre a mesa. Para ser sincero, não consigo explicar como o departamento de suprimentos do céu realiza a sua logística. E nem preciso. Basta confiar que o relógio de Deus não se atrasa, e o calendário celeste, está sempre muitos dias à frente do meu. Tudo tem seu propósito.

Saiba esperar e confiar no socorro de Deus, sem trocar os "pés pelas mãos". Lembre-se da filosófica ponderação de Mário Quintana sobre a mosca e aranha. Enquanto uma espera pacientemente seu alimento, a outra voa sem rumo banqueteando-se em lugares inapropriados: - A mosca, a debater-se na teia exclama – “Não! Deus não existe! Somente o acaso rege a terrena existência”. Enquanto isso, a aranha, agradece: - “Glória a ti, Divina Providência, que à minha humilde teia esta mosca atraíste”!