O
fracasso é um evento, não uma pessoa.
Ontem
terminou na noite passada.
(Zig Ziglar)
Numa destas noites onde o sono demora a chegar,
dormi inquieto e sonhei comigo mesmo.
Estava num bosque repleto de ipês floridos, caminhando tranquilamente por entre crisântemos e madressilvas amarelas. Não haviam pensamentos estabelecidos na mente, apenas passos descompassados e aquele assobio inconsistente nos lábios. Por alguns instantes, nada tinha real importância. E então, eu o vi. Sob uma ponte de madeira cujo arco se lançava acima do cristalino riacho, o menino fitava o horizonte com tamanha devoção, que sequer percebeu minha presença. Sua silhueta era estranhamente familiar, e impelido pela curiosidade, me aproximei. Neste instante, a nuvem escura que bloqueava os raios solares se moveu pelos céus. A luz eclodiu intensamente, iluminando o rosto da criança.
Estava num bosque repleto de ipês floridos, caminhando tranquilamente por entre crisântemos e madressilvas amarelas. Não haviam pensamentos estabelecidos na mente, apenas passos descompassados e aquele assobio inconsistente nos lábios. Por alguns instantes, nada tinha real importância. E então, eu o vi. Sob uma ponte de madeira cujo arco se lançava acima do cristalino riacho, o menino fitava o horizonte com tamanha devoção, que sequer percebeu minha presença. Sua silhueta era estranhamente familiar, e impelido pela curiosidade, me aproximei. Neste instante, a nuvem escura que bloqueava os raios solares se moveu pelos céus. A luz eclodiu intensamente, iluminando o rosto da criança.
Não poderia ser. Mas era.
Ele. Eu.
O menino não era bonito e muito menos charmoso.
Mas tinha a vida sendo expelida em cada poro. Olhos vívidos e esperançosos.
Carregava no rosto algumas marcas visíveis, cicatrizes que evidenciavam o
amadurecimento precoce, o que não influenciava a infância reluzente em sua
face.
Pisei no primeiro degrau, e o som da madeira rangendo sob os sapatos, atraiu a atenção do garoto. Ele deu um passo para trás coagido pelo meu avanço.
Pisei no primeiro degrau, e o som da madeira rangendo sob os sapatos, atraiu a atenção do garoto. Ele deu um passo para trás coagido pelo meu avanço.
– Calma! – Disse
eu, apontando gentilmente para o próprio rosto. – Você não está me reconhecendo?
Ele meneou a cabeça negativamente. Pudera. A
diferença era gritante. Eu mesmo não me reconheceria. (E não me reconheci).
Cheguei mais perto. Com um gesto involuntário passei o dedo indicador sobre a
cicatriz que nasce no canto esquerdo do meu lábio superior e corre até a base
do nariz. Ele repetiu o gesto. Sorriu discretamente. Me lembrei que o menino
nunca foi muito de sorrir. Faltavam alguns dentes na boca, e as narinas
assimétricas deixavam qualquer sorriso penso. Estava mais acostumado a conviver
com os risos alheios, e até que lidava bem com tudo isto. Afinal, tinha sonhos,
projetos e objetivos na vida. Foco. Queria ser um pregador como o apóstolo
Paulo. Mudar o mundo com o poder da voz. Os médicos disseram a seus pais que
ele nunca falaria, e mesmo assim, Deus o tinha agraciado com a capacidade da
fala. Se sentia grato por isso, e imensamente responsável por cada palavra
dita. Eu o conhecia bem. Nunca esqueci seu rosto. Por muitos anos imitei o seu
sorriso acanhado.
- Você
não está me reconhecendo? - Repeti, decepcionado.
- Não! - O
menino respondeu num assobio por entre as falhas dentárias.
Caminhei lentamente em sua direção, como que lhe
dando tempo para se recordar. Cheguei próximo ao seu rosto e me inclinei, ao ponto
de sentir a respiração tensa.
- Eu sou
você!
Ele me olhou assustado.
Respirei profundamente e conclui.
- Estou
mais velho. Mais gordo. Mais cansado. Mais decepcionado. Mais frustrado...
Mesmo assim, ainda sou você!
O menino engoliu em seco. Baixou o olhar e
suspirou baixinho. Seus olhos se encheram de lágrimas e os lábios deformados
tremeram como se sentissem frio. Por longos minutos o mundo parou. Silêncio.
Apenas o som das águas passando aceleradas por baixo da ponte se fazia ouvir. (Águas
correndo na direção do futuro para nunca mais voltar). Até que finalmente, ele
se recompôs. A voz soou firme, embora estivesse embargada, já que um nó de
marinheiro duelava com suas amídalas.
E eu, verborrágico incorrigível, simplesmente me calei, sem saber exatamente o que responder. Não me lembro onde deixei o brilho dos olhos e nem a vontade de fazer a diferença no mundo. Não me recordo do exato ponto onde a mediocridade se tornou minha amiga e a descrença começou a frequentar a mesa de jantar. Eu sei que muitas pessoas acreditavam no potencial daquele menino, e aos poucos, cada uma delas foi sucumbindo a decepção. Tinha tantos dons em desenvolvimento, mas se especializou em decepcionar as pessoas, incluindo, ele mesmo. Sonhos engavetados. Projetos esquecidos. Planos deixados de lado em detrimento a prioridades que se perderam no tempo. Trocou o tudo pelo nada, e ainda fez questão de pagar a diferença. Ele não mudou o mundo, mas o mundo mudou ele. O ensinou a sorrir, enquanto lentamente roubava toda a sua felicidade. Se especializou em teorias, e esqueceu de colocar a vida em prática. Simplesmente, deixou de ser a pessoa que nasceu para ter sido.
- Posso te fazer uma pergunta?
- Mas é claro! - Respondi. - Pergunte tudo o que quiser...
A próxima frase dita pelo menino, lacerou meu coração...
- Onde é que vou errar tanto, a ponto de me tornar você?
E eu, verborrágico incorrigível, simplesmente me calei, sem saber exatamente o que responder. Não me lembro onde deixei o brilho dos olhos e nem a vontade de fazer a diferença no mundo. Não me recordo do exato ponto onde a mediocridade se tornou minha amiga e a descrença começou a frequentar a mesa de jantar. Eu sei que muitas pessoas acreditavam no potencial daquele menino, e aos poucos, cada uma delas foi sucumbindo a decepção. Tinha tantos dons em desenvolvimento, mas se especializou em decepcionar as pessoas, incluindo, ele mesmo. Sonhos engavetados. Projetos esquecidos. Planos deixados de lado em detrimento a prioridades que se perderam no tempo. Trocou o tudo pelo nada, e ainda fez questão de pagar a diferença. Ele não mudou o mundo, mas o mundo mudou ele. O ensinou a sorrir, enquanto lentamente roubava toda a sua felicidade. Se especializou em teorias, e esqueceu de colocar a vida em prática. Simplesmente, deixou de ser a pessoa que nasceu para ter sido.
O menino que eu fui, jamais conseguiria reconhecer
o homem que me tornei. Certamente teria preferido morrer em qualquer uma das
muitas mesas cirúrgicas que visitou, ao invés de viver a plenitude do fracasso
retumbante de todas as suas ideologias. E pior ainda. Se acostumar com o
falhanço. Apadrinhá-lo. Mantê-lo aquecido e confortável no sótão da alma, como
se fosse seu bichinho de estimação favorito.
A verdade golpeia com a potência de um peso
pesado. Não se consegue assimilar o golpe e continuar de pé. E então, eu caí de
joelhos. Cobrindo o rosto com as mãos, choraminguei amargamente. A vergonha do
espelho. O desespero dos anos. A angustia pela linha vermelha cada vez mais
próxima, enquanto a estrada deixada para traz se revela fria, vazia, escura e
assustadoramente “inexpressiva”. De repente, uma frase de Jonh Kennedy rasgou minha mente como um gêiser irrompendo placas de gelo: -
“O fracasso não tem amigos”. E como a muito tempo não acontecia, me senti
completamente solitário. Terrivelmente sozinho.
O menino se aproximou de mim. Colocou a mão em meu
queixou e me levantou o rosto. Limpou as minhas lágrimas com as mangas
compridas de uma blusa azul e branca que mantinha amarrada na cintura:
- Por
favor... Não chora!
- Como
posso não chorar? - Argumentei ressentido - Olha o que fiz com a nossa vida! Eu simplesmente... (as palavras
demoravam a sair) ... Matei você!
O menino me olhou com bondade.
- Você,
pelo menos, ainda tem uma Bíblia, não é?
Enxuguei uma lágrima retardatária que insistia em brotar dos olhos...
- Tenho
mais de cem versões da Bíblia dentro do meu notebook.
- Note “o
quê”?
- Book.
Notebook. Um computador portátil... Cabem milhares de Bíblias e livros na
memória dele. Um dia ele ainda vai ser a
extensão de seu corpo. - Expliquei
- Tenho
certeza que não preciso de tudo isto. Estou bem feliz com a Thompson que ganhei
do pai... Uma biblioteca inteira! Talvez ter muito, esteja te desviando daquilo
que realmente é importante... Agora por
exemplo, só precisamos de alguns versos...
O
menino atravessou a ponte e parou sobre a grama. Gastou alguns segundos
procurando alguma coisa algo entre as flores. Achou. Uma pedra calcaria em tons
azulados. Enquanto ele voltava para o centro da ponte, me recompus. Se
aproximou caminhando serenamente pelas tábuas de jacarandá, enquanto
cantarolava: - “Meu barco encheu com a fúria
do mar, precisei de ajuda para não afundar”. Ainda tentava me lembrar a
letra da música, quando o menino estendeu o braço direito em minha direção, e
sem titubear, ordenou: – Toma!
Entregou a pedra em minha mão.
Entregou a pedra em minha mão.
- O que
faço com isto?
- Se lembra
do que Paulo disse em II Timóteo 2:13?
A lembrança emergiu rápido. Este sempre foi um dos
meus textos favoritos:
- Mesmo
que sejamos infiéis a Deus, Ele continua sendo fiel, porque a fidelidade faz
parte de quem Ele é!
- Boa
memória, velhinho! – Disse o menino, com um "meio" sorriso de aprovação. – Agora, jogue a pedra no rio!
Joguei. A pedra ricocheteou sobre a água,
produzindo pequenas ondas circulares antes de afundar completamente. Olhei para
ele, com genuína curiosidade: - E agora?
- Agora,
nada. Me respondeu sem qualquer sarcasmo. E então, completou - O rio parou de correr por interferência da
pedra?
-
Obviamente que não. – Respondi. – É
uma pedra contra o rio!
- Errado! - Ele me
corrigiu. - É a tua infidelidade contra a
fidelidade de Deus.
Eu conheço este conceito. Já escrevi sobre ele.
O rio caudaloso segue o fluxo sem se importar com
as pedras que atingem seu leito. Por maior que seja o pedregulho, tudo o que
ele pode fazer, é tumultuar uma pequena porção de água no entorno, para depois
afundar vertiginosamente. Uma vez que atinja o fundo, ali ficará até
desaparecer debaixo das algas. Já o rio, continuará seu caminho. Imparável. Irreprimível.
Alguém pode até construir uma represa e negar vazão as correntes. Porém, quanto
mais água for retida por detrás das paredes, maior será a explosão nos
diques. O rio não para. Não discute com
barreiras. Apenas avança, retirando do caminho os empecilhos. Ou simplesmente,
passando por cima de cada um deles. Infatigável. Incontrolável.
Assim é a fidelidade de Deus, seguindo sempre em
frente, mesmo que muitos tentem impedir o avanço. E entre estes “muitos”,
lá estou eu.
Ao longo desta vida, quantas pedras lancei no rio.
Tentei desviar o curso, mudar a rota e impedir o fluxo. Regular a vazão. Este
foi o meu maior erro. O mais retumbante fracasso. O decreto que arquivou muitos
sonhos e alforriou pecados mantidos no cativeiro. Eu dizendo “não” a Deus,
impedindo que o Pai se aproximasse de mim. Filho rebelde. Servo ingrato. Avesso
a abraços. Propenso ao descaso. Mas, apesar da minha infidelidade aos
propósitos, o Senhor se manteve fiel em cada promessa. O rio trazendo a pedra
de volta para a superfície, como se fosse um barco de papel selado com o verniz
vermelho carmesim, obtido na cruz do calvário. O Dono dos Mares recalculando a
rota. O Arquiteto do Universo, (em pessoa), apontando o próximo retorno para a
estrada principal.
Enquanto meditava na mensagem e repensava a minha
vida, olhei para o sol poente. Só então percebi que uma simples canoa de madeira deslizando serena pelo rio, contornando o horizonte. Dentro dela,
despreocupado e faceiro, um homem grisalho e muito solicito, acenava entre
sorrisos.
Sorrisos assimétricos.
Sorrisos assimétricos.
- Sabe
quem é? – Perguntou o menino.
- É claro
que sei - Respondi. - Somos
nós.
- Dá para
acreditar que você vai conseguir envelhecer ainda mais! Quem diria que isso
fosse possível!
O menino começou a rir alto. Naquele instante, os
poucos dentes não eram um problema. Eu também gargalhei jocosamente. Uma
alegria verdadeira como a muito tempo não sentia. E então, tudo ficou sério
mais uma vez. O menino se virou na minha direção e com autoridade exclamou:
-
Filipenses 4:6!
Ele se aproximou de mim e abraçou-me com força. – Por favor... Nunca se esqueça...
O velho no barco já era apenas uma silhueta
desenhada no sol laranja que tingia de dourado a água do rio, porém sua voz
reverberou correnteza acima:
- Aquele
que começou a boa obra em minha vida, não vai deixá-la incompleta!
O menino e eu, descemos apressados da ponte e
corremos pela margem do rio em direção ao sol poente, até a cansaço nos
derrotar. O velho homem no barco sempre se mantinha muitos metros em nossa
dianteira. Não se pode alcançar o futuro enquanto ainda se vive o presente.
Deitamos sobre a relva afim de recuperar o fôlego e ponderar sobre a brevidade
da existência. O tempo coexistindo e simultaneamente, acontecendo. Conversa
boa. A maturidade desconfiada dialogando com a ousadia inocente. As lembranças
futuras de um passado que ainda não aconteceu. E por mais paradoxal que tudo
possa parecer, lá está Deus no controle absoluto do tempo/espaço. Criando,
recriando e voltando a criar.
- Estou
muito cansado de tudo isso. Esgotado de corpo, mente e alma. Eu já não quero
mais nadar contra a correnteza, se tenho a possibilidade de navegar com
segurança ao lado de Cristo!
O menino se voltou na minha direção, meio que
surpreendido com aquele desabafo. Sentamos na grama. Ele me olhou nos olhos e
sorriu. Pela primeira vez naquele dia, se reconheceu em mim...
- Acho
que você não me matou de verdade, velhinho.... Apenas me pôs para dormir.
Eu sorri encabulado.
- Então,
acho que é hora de finalmente acordar!