Arquivo do blog

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

00:01 AM


Devemos prometer somente o que podemos entregar.
E entregar mais do que prometemos.
(Jean Rozwadowski)


Meia noite. O peso do mundo sobre os ombros. Um turbilhão de preocupações a cirandar pela mente. Sentimentos carrancudos (e com unhas alongadas) arranhando o coração. Naufrágio noturno num oceano de ansiedade, sem nenhum coleta salva-vidas no barco.  O corpo lancetado por dores, hematomas e infecções. Feridas abertas escondidas por debaixo de cicatrizes maquiadas. Perguntas inquietantes sem respostas conclusivas. O chão forrado de incertezas e o ar envolto numa névoa de opressão. E quando tudo parece irremediavelmente perdido, os fogos de artifício iluminam os céus. Sorrisos encharcados de champanhe se abrem num afã de esperança. Os abraços se multiplicam numa festa de cores e tons. O branco da paz. O amarelo da riqueza. O vermelho do amor.

Meia noite e um. A vida recomeça num passe de mágica. Todo passado é esquecido, soterrado nas areias do tempo. Renovação. Nada será como antes. O navio volta a navegar em águas tranquilas. As emoções se aninham como gatinhos recém nascidos. Não há mais motivos para chorar. Sem mazelas ou expectativas frustradas. Há respostas satisfatórias a todos os maiores enigmas da existência. Ano Novo. Vida Nova. Tudo Novo!

A visão poética que temos sobre os encerramentos de ciclos temporais, nem de longe condiz com a praticidade da vida. O relógio não interfere na essência do que somos. O calendário não determina o resultado de nossas colheitas. O que, de fato, acontece entre “meia noite” e “meia noite e um”, é exatamente a passagem temporal que corresponde a “um minuto”. Nada mais. E neste pequeno intervalo, não há tempo hábil nem mesmo para a tomada de novas resoluções, quanto mais, vivenciar seus resultados. Deus não nos presenteou com feijões mágicos. Ele nos ofertou a liberdade para escolher as sementes que queremos plantar. Feita a escolha, o que nos resta, é aguardar o processo de amadurecimento da planta, enquanto comemos os frutos de semeaduras passadas e ponderamos sobre o que semear na próxima estação.

Este exato ponto de sua vida (chamado “agora”), é um caminho que você mesmo pavimentou. O atual momento é reflexo direto de resoluções tomadas a muito tempo atrás. Para o bem, ou para o mal. Logo, não existem mudanças repentinas. Toda mudança num giro de 180° é feita de forma paulatina. Planejada. Não acontece por acaso. Então, tenha paciência. Talvez ainda existam algumas tempestades para se enfrentar, antes do sol brilhar em todo seu resplendor. Enquanto isso, dance na chuva. Faça um barquinho de papel e brinque na correnteza. Se não é possível mudar o mundo, podemos enxergá-lo diferente. Dá para tirar muita doçura de limões azedos. Limonada. Mousse. Torta. Sorvete... E por aí vai... 

Quando era criança, tínhamos um pé de “Laranja Cavala” no quintal de casa. Não se engane com o adjetivo “laranja”. O gosto desta fruta deve se assemelhar ao sabor de espaguete feito com as "crinas" de um cavalo que acabou de correr cem quilômetros. Com folhas de boldo! Aliás, esta deve ser a origem de seu nome, “Cavala” ou “Laranja Amarga”. O fato dela possuir aspectos medicinais não melhora a terrível experiência de algum desavisado que decide fazer um suco com ela. Ou chupá-la sob a sombra da árvore. Azeda. Rançosa. Intragável. Mas, era a fruta que tínhamos no pomar. Quem a plantou ali, sabia bem o que iria colher. Então, ao invés de reclamar do fruto e desperdiçar a oportunidade , é possível aprender a transformá-lo através da paciência. E de muita criatividade.

Minha mãe colhia a fruta, retirava a casca externa, fazia cortes transversais no mesocarpo (aquela película branca que envolve a fruta) e retirava toda a polpa (ironicamente, a parte mais amarga). Casca e polpa viravam adubo em nossa pequena horta.  O que sobrava, ia para uma tina de água condimentada, onde permanecia por vários dias. Depois de ser lavado repetidas vezes por toda a semana, o mesocarpo finalmente estava pronto para ir à panela. O gosto amargo já estava bem atenuado. E assim, após algumas horas no fogo alto, junto com açúcar, cravo e canela, estava pronta uma compota exótica e, inacreditavelmente, agradável ao paladar. Doce feito com o bagaço de uma fruta intragável.

Que linda metáfora para a vida, não?

Este é o segredo para começar bem o Ano Novo. O mês novo. O dia que se renova. Fuja das ilusões. Não se apegue a uma esperança tola e infantil. Mas, também não seja vencido pela desesperança. Não se entregue ao desespero. Encontre o equilíbrio. Entenda que mudanças significativas demandam tempo, esforço, abnegação e muita disciplina. Exatamente por isso, qual o propósito de tentar acelerar os acontecimentos? Comida de micro-ondas nunca vai ser melhor um feijãozinho feito no velho fogão a lenha. Para que sofrer de véspera? Se angustiar com o que pode (ou não pode) acontecer?

Sou parte da geração que vivenciou um momento histórico, e que dificilmente se repetirá. Na noite de 31 de dezembro de 1999, o mundo estava em suspensão. Em poucas horas, três ciclos temporais se fechariam simultaneamente, e um universo de novidades estaria ao alcance de nossos mãos. Ano Novo. Século Novo. Milênio Novo. Muitos sentiam a força cósmica de uma mudança poderosa. Outros se angustiavam com a possibilidade da história humana encontrar seu fim quando o relógio marcasse meia noite. O “bug”. As profecias de Nostradamus. Até cristãos incautos apregoavam o Apocalipse, baseados num famoso versículo registrado no Livro do Profeta Heresias:  - Até dois mil chegarás, mas de dois mil não passarás. A verdade, é que ninguém conseguia se manter impassível diante de tantas expectativas. Ansiedade globalizada.

Chegou à meia noite. Os fogos de artifício iluminaram os céus. Sorrisos encharcados de champanhe se abriram num afã de esperança. Os abraços se multiplicaram numa festa de cores e tons. O branco da paz. O amarelo da riqueza. O vermelho do amor. E mais nada aconteceu, além do que sempre acontece em datas similares. As mesmas angústias. As mesmas dores. Os mesmos motivos para continuar sorrindo. Tudo seguiu exatamente como estava antes. Exceto os dígitos do calendário. Tanta expectativa para pouca recompensa. Tanta ansiedade para nenhuma tragédia. E sabe o que é mais hilário (se não fosse trágico)? O tempo da espera é, muitas vezes, mais prazeroso que o tempo das recordações.

Então, um passinho de cada vez. Cabeça nas alturas e pés firmados no chão. Se prepare para o amanhã, começando por entregá-lo na mão de Deus. E descansando depois da entrega feita.

Antes de pensar no futuro, recorde do passado. Pense na história de sua vida. Na última década, quantas mudanças aconteceram? Algumas delas, você se quer percebeu. O processo da metamorfose é lento e natural. Não existem grandes traumas. A lagarta entra no casulo se rastejando e a borboleta sai, deste mesmo casulo, num voo esbelto e arrebatador. E toda esta transformação leva exatamente o tempo necessário. Nem mais, nem menos. Não existe magia, só a natureza seguindo o seu curso, habilmente delineado pelo próprio Deus. As estações do ano se alternam sem que você se preocupe com isto. A chuva cai, rega a terra e volta para os céus sem que você precise interferir no processo. O próprio Criador se encarrega destes ciclos. 

Não seria mais inteligente sentar no banco do passageiro, curtir a paisagem e deixar Deus na direção do carro? Até, porque, a viagem vai ser bem longa...

Meia noite e um. Você continuará sendo o mesmo. Gordo. Magro. Rico. Pobre. Amado. Desprezado. E se mudar as expectativas pode ser profundamente frustrante, conseguir alterar a própria perspectiva é sempre recompensador. Pense que “meia-noite” é o apogeu da escuridão noturna. Não tem como ficar mais escuro. Assim, “meia noite e um” é o primeiro passo na direção do amanhecer. Apenas o primeiro passo. O início de uma escada com muitos degraus. O bagaço da laranja amarga encontrando a água doce. E não é exatamente assim que as grandes jornadas começam. Um passinho de cada vez? Devagar e sempre? 

Tome a iniciativa de um verdadeiro recomeço, consciente e perseverante. Siga o fluxo, confiando plenamente em seu Deus. E então, mesmo que você não perceba de imediato, os efeitos das resoluções tomadas começarão a aparecer. Sutilmente. Gradativamente. Intensamente. Bum! Transformação completa. A vida mais bela, mesmo que o mundo se revela cada vez mais feio. Os dias amargos salpicados de açúcar. A bondade que reside nos olhos, transformando a fotografia granulada do ambiente.

Faça como aquela mulher, que ao acordar após seu tratamento de quimioterapia, notou que haviam apenas três fios de cabelo em sua cabeça. Ela ficou pensativa em frente ao espelho. Calada por muitos minutos, olhando preocupada para seu rosto. E então, finalmente decidiu: - Já sei. Vou fazer uma trança! E foi isto que ela fez. E o dia foi maravilhoso. Na manhã seguinte, só haviam dois fios. E mais uma vez, ela se pôs a pensar diante do próprio reflexo: - Hummm...  Acho que hoje vou repartir o cabelo ao meio. E mais uma vez, viveu experiências maravilhosas. No terceiro dia, restava apenas um único fio. A mulher pensou, pensou e decidiu: - Hoje vou sair usando um rabo de cavalo! E como ela se divertiu. Brincou com os filhos e beijou o marido, enquanto o vento balançava seu cabelo. No quarto dia, ao acordar, a mulher percebeu que já não havia um único fio de cabelo em sua cabeça. Seu olhar de espanto foi logo substituído por um sorriso genuíno. E então, ela exclamou com grande entusiasmo: - Yes! Hoje não tenho que me preocupar com penteados! E foi aproveitar o dia. Ser feliz enquanto a vida lhe dava esta oportunidade.

Então, meus amigos. Um pouco menos de lamúrias e doses cavalares de gratidão. As únicas pessoas que podem reclamar de um ano ruim, são exatamente as que sobreviveram à ele. E isto não é motivo para sermos gratos? Se as coisas não saíram conforme o planejado, OK! Revise o planejamento. Refaça o projeto. Gaste o tempo que for preciso com reavaliações. Faça o possível e confie que o impossível já está sob os cuidados de Deus. Cobre-se menos, e talvez com isto, você renda mais. Se permita fracassar, errar e tentar de novo. Quantas vezes forem necessárias.

Entenda que para cada texto escrito, dez folhas rascunhadas estão na lixadeira. A beleza da vida é a possibilidade do aperfeiçoamento. E entender os próprios limites é a primeira parte do processo. A outra, é compreender que Deus é por nós, em todos os momentos. E Ele sim, é ilimitado, imparável, incessável e infinito. Para Deus, o espaço temporal entre “meia noite e “meia noite e um” corresponde a uma semana inteira. Dá para criar o mundo outra vez (II Pedro 3:8). Então, deixe o Senhor do Tempo ser o Senhor dos seus dias. Entregue cada minuto nas mãos do teu Deus. Entre no casulo e não se apresse. Na hora certa, o Senhor te faz voar!


Um comentário:

  1. Lido, absorvido e (talvez) comentado. O milagre do presente, do futuro e do passado num minuto contado, vivido e vivenciado. Bem aventurado quem escreve, feliz quem vê, abençoado quem ouve, presenteado quem lê.

    ResponderExcluir