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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

As Virgens de Jabes-Gileade

A virgindade é ao mesmo tempo obstáculo, desafio e doação.
(Carlos Drummond de Andrade)


A Bíblia não é composta apenas de belas histórias. Existem muitas tragédias contadas ali. Porém, nem mesmo a narrativa mais sangrenta deixa de ser significativa. Sempre há uma alegoria a ser aplicada em nosso modo de vida. Um parâmetro comparativo para o comportamento humano. A Sagrada Escritura é enfática ao nos apresentar os resultados catastróficos resultantes de erros crassos, e com isso, aponta a direção oposta aos perigos inerente à escolhas erradas:  - Fujam deste caminho, pois o final dele é dor, sofrimento e morte.

Os últimos capítulos do livro de Juízes nos contam uma história assim. Se Hollywood fizesse a adaptação cinematográfica destas páginas, o resultado seria um filme proibido para menores de idade. Logo, a leitura deste texto, segue por sua conta e risco. Haverá muito sangue nas próximas linhas.

Tudo começou quando um homem que habitava nas regiões montanhosas de Efraim, desceu para cidade de Belém-Judá. Enquanto caminhava pelas ruas do povoado, se encantou com a beleza de uma moça belemita. Foi paixão à primeira vista. Sem pensar duas vezes, declarou seu amor em praça publica e a tomou por esposa. O problema, é que a bela mulher tinha um vasto histórico de amantes, e o casamento não aplacou estes instintos libidinosos. Pouco tempo depois do matrimônio, como era esperado, ela voltou a se envolver com outros homens, e fugiu para a casa de seu pai, onde permaneceu escondida por quatro meses. O marido, ainda apaixonado, viajou  para Belém, afim de trazer sua amada esposa de volta ao lar. O reencontro foi emocionante. A moça, arrependida de seus erros, correu ao encontro do marido e o beijou. Eles se abraçaram demoradamente e trocaram juras de amor eterno. Perdão incondicional. Somente a morte os poderia separar. O sogro do rapaz, comovido com a reconciliação, convidou os pombinhos para jantarem (e pernoitarem) em sua casa. E o casal se hospedou ali por mais cinco dias.

Carentes de privacidade, marido e mulher decidiram voltar para casa. E assim, com o sol sobre a cabeça e a paixão estampada no rosto, iniciaram o longo caminho de volta a Efraim.  E a jornada corria em paz, afinal,  quando se tem amor, todo o resto é superficial. Será?  

Quando a tarde chegou, eles estavam próximos a cidade de Jebus. Os servos que faziam a escolta, aconselharam ao casal para dormirem em alguma hospedaria local, mas o marido se negou. Ele planejava chegar até Gibeá, no território de Benjamim, onde estaria seguro entre seus “compatriotas”. Já era noite quando chegaram à cidade. As estalagens estavam abarrotadas e nenhuma casa de família queria dar abrigo para desconhecidos. Sem ter onde ir, o casal se assentou na praça da cidade, enquanto pensavam em alguma solução. Um homem velho (e mui simpático), que voltava do pesado trabalho na lavoura, se afeiçoou a história do casal, e lhes ofereceu abrigo em seu lar. O anfitrião tinha muito vinho na adega, e todos beberam sem moderação. A conversa fluía solta e as horas se passaram rapidamente. Embriagados, eles não perceberam a movimentação fora da residência. A casa tinha sido cercada por homens mal-intencionados. Eles queriam ter uma “conversinha” com os visitantes. Filhos de Belial. Carniceiros. Seres inescrupulosos que tinham um passatempo bem tenebroso. Assassinar estrangeiros.

O dono da casa tentou aplacar os ânimos. Ele queria proteger seus convidados. Conhecia a mente perversa de seus vizinhos. Mas, o diálogo não adiantou. Os invasores ficavam cada vez mais exaltados e violentos. A porta da casa não seria uma barreira por muito tempo, pois os tricos começavam a ceder.  E foi então, que para se proteger dos agressores impassíveis, o “esposo apaixonado e perdoador”, simplesmente jogou sua esposa às feras. A mulher foi trancada para fora de casa, para com seu corpo, satisfazer uma legião bacântica. O verdadeiro amor expulsa o medo, mas a paixão, sucumbe diante do temor.  E durante toda aquela longa noite, a pobre moça foi estuprada por centenas de homens pervertidos, enquanto dentro da casa, o marido dormia em segurança. 

O abuso só chegou ao fim, quando os primeiros raios de sol surgiram no horizonte. A mulher, ensanguentada, se arrastou até a varanda da casa. E ali, com a mão no limiar da porta, ela morreu.

Ao acordar, o marido tomou a jovem em seus braços. Acreditava que a coitada tivesse suportado aquele calvário vexatório. - Ela sabia muito bem como lidar com homens luxuriosos! - Pensou ruborizado. Agora, diante do cadáver ferido, entendeu a real dimensão da sua covardia, e a culpa bateu forte. Era preciso vingar-se! Tamanha desonra implorava por justiça. O que "sobrou" da moça foi carregado nos lombos de um jumento até as montanhas de Efraim. Quando chegou em sua casa, o homem tomou um cutelo em suas mãos, e partiu o corpo da esposa em  pedaços. Depois, enviou partes para as tribo de Israel, relatando aos líderes tribais, a barbárie ocorrida no território de Benjamim. A indignação foi geral. Aquela era uma demonstração de “violência gratuita” difícil de aceitar. E nos conselhos convocados por toda Canaã, o consenso foi unânime: - Ponderar, consultar e não se calar.

Juízes 20 nos apresenta a terrível resolução tomada por uma assembleia geral que uniu as tribos israelitas, exceto Benjamim. Todas as cidades existentes nos territórios de Israel foram convocadas para este concílio gigantesco e emergencial. Após ouvirem o depoimento do marido enlutado, os líderes do povo enviaram soldados à Gibeá, exigindo que os agressores fossem entregues para julgamento e execução. Não houve acordo. Os benjamitas protegeriam seus irmãos, fossem eles inocentes ou culpados. Nenhum filho de Benjamim morreria por se "relacionar" sexualmente com uma mulher acostumada a se deitar com vários homens. Toda a cidade conhecia  a fama da moça. A  decisão era irrevogável. 

Estava deflagrada a guerra. Ambos os lados se levantaram em armas. O exército de Benjamim contava com vinte e seis mil soldados. Contra eles, mais de quatrocentos mil homens se apresentaram com espadas em punho, ávidos por extirparem aquele mal do território de Israel. O resultado inevitável foi um massacre sem precedentes, que feriu profundamente a dignidade (e a identidade) nacional. 

E então, chegamos ao segundo capítulo desta história..

Poucos foram os sobreviventes de Benjamim, e a existência da tribo estava profundamente comprometida. Sem Benjamim, Israel também estaria incompleto. O futuro da nação questionado. O sonho de unificação destruído. Era preciso investir na reconstrução da tribo esfacelada, e atenuar os efeitos deste erro histórico. E é neste ponto, que a cidade de Jabes-Gileade, se torna peça fundamental para a narrativa. Para se estancar a sangria, mais sangue precisava ser derramado.

Entenda.

Quando todas as cidades do território de Israel foram convocadas para a batalha, Jabes-Gileade ignorou a convocação. E tal resolução, em si, também era uma declaração de guerra. Jabes-Gileade estava se levantando em insurgência contra a assembleia geral. Um grito de ousadia a ser silenciado. Um ato de rebeldia. E toda rebelião deveria ser contida. Mais precisamente, eliminada. Então, os líderes de Israel, enviaram um exército formado por doze mil homens contra a cidade. Todos os moradores deveriam ser sumariamente executados. Homens, mulheres e crianças. Ninguém poderia escapar. A revolta seria exterminada na raiz. Jabes-Gileade jamais teria força para se levantar contra a autoridade nacional outra vez.

E assim como foi fora ordenado por seus generais, os soldados israelitas não demostraram compaixão. Todos em Jabes-Gileade morreram naquele dia. Exceto, quatrocentas moças. Todas virgens.

E aqui estão elas. As virgens de Jabes-Gileade. As únicas sobreviventes de um povo exterminado. Raios de sol surgindo depois de uma noite escura. Vestes brancas que não foram salpicadas com o "vermelho sangue" da guerra. A semente da existência plantada num solo adubado por cadáveres apodrecidos e laminas cegas. Foram elas que possibilitaram o recomeço de Benjamim. Os sobreviventes da tribo "quase exterminada" se unindo com as virgens da "cidade dizimada". E a vida recomeçando do caos.

Esta trágica história, cheia de atitudes egoístas e comportamentos bestiais, traz em seu bojo, uma alegoria espiritual bem interessante. Como já disse no início deste texto, nem mesmo as mais grotescas narrativas bíblicas foram inseridas nas escrituras sagradas por mero acaso. Há lições para serem aprendidas. Indicações de caminhos à serem evitados. Dizem que os homens inteligentes aprendem com seus próprios erros, e os sábios, com o erro de outros. E nas entrelinhas deste relato funesto, pode se aprender com a experiência alheia. A medicação ministrada sem ser preciso experimentar o gosto amargo do remédio. Cura por osmose. Esta é uma lição expositiva nos mostrando os benefícios do viver pautado em pureza, longe das contaminações do mundo. A santidade é um escudo que nos blinda contra as adagas da morte. Um ingresso perpétuo garantindo acesso irrestrito ao mais seguro esconderijo do universo: - sob as asas do altíssimo.

O ciclo de morte crescente que se espalhou entre Gibeá e Jabes- Gileade teve início com um único ato de impureza. Uma mulher que deixou suas vestes brancas serem salpicadas com os gotejos imundos do hedonismo. E a partir deste ponto, temos uma nuvem de moscas carnívoras rodopiando ao redor do estrume. Um abismo chamando o próximo abismo, ainda mais profundo. Nenhuma ação é justificada pela anterior, porém, poderia ser evitada, caso alguém tivesse tomado uma decisão diferente.

E se a paixão fosse mais responsável?
E se o casamento não tivesse acontecido?
E se a esposa nunca tivesse saído de casa?
E se o esposo tivesse pernoitado em Jabes?
E se os moradores de Gibeá tivessem ido dormir mais cedo?
E se os pedaços do corpo nunca fossem enviados?
E se a assembleia tomasse uma resolução diferente?
E se os belemitas tivessem entregue os estupradores para julgamento?
E se Jabes-Gileade tivesse atendido a convocação?
E se existissem mais virgens na cidade?
E se a fidelidade nunca fosse banalizada?

São muitos “se´s” para ponderar. E a vida não nos permite este tipo de análise pretérita. - "Poderia ser diferente"! Não foi. É com as consequências das ações praticadas no passado, que lidamos no presente. E não existe alternativa para esta revelação cruel. Toda grande tragédia, é na verdade, um amontado de erros displicentes e omissões desveladas. As facilidades do “lugar comum” nos incentivando a agir “de qualquer maneira”. Sem medir consequências. Sem calcular os riscos. Um flerte constante com o perigo. Ignoramos que toda correnteza insuperável, foi antes o fino veio de uma nascente. 

Vestes sujas com a lama do pecado só podem ser lavadas com sangue. Esta é uma regra mais antiga que as fundações do universo. Que preço caríssimo a se pagar por coisas fúteis e desnecessárias. Prazeres momentâneos parcelados em centenas de vezes. Juros altíssimos e boletos diários. E sem Jesus no contexto, de onde virá o sangue? Vale a pena trocar uma vida eterna de felicidade por placebos ineficazes de alegria?

E então, temos a metáfora das virgens de Jabes-Gileade. Vestes límpidas. Comportamentos ilibados. Estas moças se mantinham puras e imaculadas, plantando com paciência, sementes à serem colhidas no futuro. Uma belíssima alegoria para a santificação. Biblicamente falando, a santidade refere-se a uma vida dedicada à Deus, e que se afasta progressivamente do pecado. Basicamente, é abrir mão dos próprios interesses, negar a si mesmo, matar pouco a pouco os desejos da carne, e viver enquadrado na vontade de Deus. O que, espiritualmente, resulta numa vida imune aos perigos da contaminação. A santidade é um alvejante poderoso que lava, e mantem alvas nossas vestes. Virgens em seus vestidos brancos, preservadas em Cristo, enquanto o mundo sucumbe pela espada afiada da morte. Quando conservamos brancas as nossas vestes, branca também permanece a próxima página da história. Um futuro à se escrever.

A Igreja é a Noiva que Cristo escolheu para si. Não a igreja institucional, mas sim, a humanizada. Eu. Você. Nós. Templos do Espírito Santo. Tabernáculo do Altíssimo. Morada de Deus. Fomos vestidos de linho branquíssimo, mais alvos que a neve antes de tocar o chão. Cristo ama esta Noiva, e deseja ardentemente apresentá-la pessoalmente ao Pai. Mas, existem critérios estabelecidos para que este momento se viabilize. A Noiva precisa estar gloriosa, pura, limpa, imaculada, sem rugas ou imperfeições, santa e irrepreensível. Uma virgem intocada, esperando pacientemente pelo primeiro beijo do esposo (Efésios 5:25-27). Caso contrário, não existirá casamento. Apenas uma eternidade longe de Deus. Caos, dor e ciclos infindáveis de tragédias. Sodomização espiritual. Estupro da alma. Flagelo do corpo. A virgindade espiritual, neste contexto, é um salvo conduto para a vida eterna. A espada com a qual Deus ferirá a morte que de perto nos rodeia.

Pois é. As páginas finais de Juízes têm muito mais a nos oferecer do que uma história apelativa de sexo, violência e morte.  Temos aqui um comparativo entre os resultados decorrentes de dois casamentos distintos. Um deles, construído sobre os pilares da paixão, da lascividade, dos desejos desenfreados e a busca pelo prazer inconsequente. Poderia ter dado certo? - “Talvez. Que sabe?” Fato é, que neste caso (e na maioria dos eventos registrados) não deu. Escolhas erradas levando indivíduos a lugares errados em momento errados com pessoas erradas. A noiva desta história (que pode muito bem representar qualquer um de nós) gastou sua vida na busca por prazeres sazonais, e acabou encontrando um fim trágico, onde a morte foi antecedida por muita dor, vergonha, desprezo e abandono.

O segundo casamento faz o caminho inverso. Acontece entre pessoas que sobreviveram à tragédia. O belemita que escapou da morte e a noiva imaculada que a morte não ousou tocar. Os pilares deste casamento foram a mutualidade, o respeito e o um propósito que excedia aos desejos individualistas. Vidas que se uniram para gerar vida. O amor maturado com o tempo, e não vislumbrado num único olhar.

As virgens de Jabes-Gileade fizeram uma escolha difícil. Se mantiveram puras num mundo impuro. Imaculadas num antro de maculações. Exercitaram o poder do “não” em uma terra de oportunidades.  E o que ganharam com isto? Vida. Através delas, a tribo de Benjamim recebeu uma chance de sobreviver. E voltar a ser forte. Fazer escolhas melhores. Estas moças diferenciadas se tornaram mulheres de grande honra. Mães zelosas. Esposas amadas. Matriarcas de Israel. Da linhagem benjamita vieram homens notáveis. Saul, o primeiro rei de Israel. Paulo, o apóstolo dos gentios. 

Se a morte abre as portas para mais mortes, a vida estende o tapete de boas-vindas para um ciclo de mais vida. E dependendo das escolhas que fizermos hoje, esta vida, pode sim, se tornar eterna. Basta saber escolher entre o "agora" ou o "depois".  

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