Deus é
isto: A beleza que se ouve no silêncio.
Na importância
de saber ouvir os outros, a beleza mora lá também.
(Rubem
Alves)
Sempre
entendi a estadia de José naquela prisão egípcia como parte de um longo e
doloroso processo de aprendizagem. O menino se tornando homem. Basta lembrar
que durante a adolescência, José sempre foi uma “boquinha nervosa” destilando
veneno contra os irmãos. Em bom português, o jovem sonhador era também um “exímio
fofoqueiro”, que apesar das inúmeras virtuosidades, precisava aprender a
dominar sua língua. Assim, Deus permitiu que José passasse alguns anos na
cadeia, lugar onde o “X-9” morre cedo e o silêncio vale ouro. Embora não
compreendesse, esquecido dentro de uma cela qualquer, José estava sendo
preparado para a grande tarefa que lhe seria confiada pelo Senhor... Salvar o
mundo da fome e, com uma gestão eficiente, garantir a sobrevivência da linhagem
messiânica, mesmo longe da terra pátria... No Egito, ele desenvolveu empatia
pela necessidade do próximo e compreensão para com a causa alheia, tudo o que
lhe faltava enquanto era mimado pelos pais nas tendas de Canaã.
Deus,
porém, não é unilateral como as vezes o enxergo. Até mesmo suas mais
“incompreensíveis” atitudes estão repletas de razão e calçadas num irretocável
planejamento. Ele poderia utilizar outras técnicas de ensino, que não deixem
marcas tão profundas e nem levem para a prisão alguém inocente... Mas, não... Tem
horas que o trabalhar do Senhor assemelha-se ao sadismo, aplicando castigos
terríveis para nos ensinar lições praticas que poderiam ser aprendidas apenas
com a leitura de um bom livro didático. É que para Deus, as mais complexas
questões humanas são tão simples quanto entender a diferença entre frio e
quente... Tudo é muito claro para Ele, mesmo que por décadas, permaneça
enevoado enquanto olhamos aqui de baixo... E sendo bem sincero, podemos até discordar do
método, porém não existe argumentos para contestar a eficiência.
José
era um moço de bom coração, dedicado em seus afazeres e temente ao Senhor desde
o berço. Bastava que Deus lhe aparecesse num sonho pedindo para que fosse mais
tolerante com seus irmãos, e certamente o problema estaria resolvido. Sem tráfico
humano, escravidão em terras estrangeiras ou condenações fraudulentas... Tudo
seria muito mais simples, agradável e nada traumático. Todos viveriam felizes
para sempre... Mas, existe um porém...
Se eliminarmos todos os eventos trágicos da vida de José, também vamos precisar
reescrever o final da história. A versão mais “justa/bondosa”, onde o
personagem continua mimado e criando conflitos com seus irmãos sem nunca
conhecer o fundo do poço, não termina tão bem assim... Na verdade, acaba com o
personagem principal morrendo de fome aos quarenta anos de idade. Não sem antes
presenciar seus entes queridos sucumbindo por desnutrição. Mãe, sobrinhos e
irmãos, sepultados as carreiras ao lado de túmulo de Jacó, que já velho, teria
sido a primeira vítima da gigantesca estiagem. Entre as covas espalhadas na
planície ressequida de Canaã, estão pareadas as lápides de “Judá” e seu filho
recém-nascido “Perez”. Com a morte de ambos, a descendência abraâmica é
interrompida, e alguns nomes são abortados da história humana, entre eles Boás,
Obede, Jésse, Davi, Salomão, Natã, Roboão, Asa, Josafá, Jorão, Uzias, Jotão,
Acaz, Ezequias, Manassés, Amon, Josias, Jeconias, Salatiel, Zorobabel, Eliude, Eli,
José, Maria, e finalmente... Jesus...
Isso
mesmo... Pode escolher qual genealogia preferir. A narrativa primária de Mateus
ou a possível aplicação da “lei do levirato” utilizada por Lucas... A linhagem de Maria ou a
descendência de José... Não importa... Você sempre acabará nas entranhas da
família de Jacó, salva da fome pelo plano de racionamento e redistribuição
elaborado por José quando ele foi governador do Egito... Sem um “Judá”, não
teríamos um “Leão da Tribo de Judá”... Simples assim... Toda a provação imposta
a José fazia parte de um plano maior
visando o bem de toda a humanidade através do nascimento de Cristo. E pensando
bem, a cadeia foi o exato ponto onde “sonhos e propósitos” se encontraram
definitivamente.
José
era mais que um sonhador. E mais do que isso... Tinha a capacidade de entender
o significado dos elementos aparentemente desconexos de um sonho. Foi assim com
as visões dos feixes de trigo e dos corpos celestiais. De imediato compreendeu a
mensagem recebida. Seu futuro seria grandioso, e toda a família lhe prestaria
reverência. Porém, seu dom nunca foi valorizado em casa. Pelo contrário, acabou
lhe dando o estigma de prepotente e orgulhoso. No Egito, tudo mudou. Entre os
pagãos, o Deus de Israel fez a diferença e José tornou-se o “Mestre dos
Sonhos”. A ferramenta correta na oficina em que era necessária. Hora de
acelerar os trabalhos, pois o relógio divino já entrava em contagem regressiva.
Quando
o poderoso Faraó se viu ameaçado por uma tentativa de envenenamento, tratou
logo de enviar os dois principais suspeitos para a cadeia, e “coincidentemente”
ambos acabaram na mesma cela que José. E enquanto a polícia egípcia concluía
suas investigações, o “padeiro do palácio” e “copeiro real” tinham uma noite
atribulada com sonhos perturbadores. Na manhã seguinte, José não apenas
interpretou os sonhos, como antecipou o futuro de seus colegas. O copeiro se
via espremendo três cachos de uva numa taça e a entregando para aprovação do
rei, o que significava que seria declarado inocente e em três dias voltaria a
trabalhar no palácio. O padeiro, por sua vez, tinha três cestos de pães sobre a
cabeça, enquanto as aves se refestelavam com a boa comida... Para ele, péssimas
notícias. Seria considerado culpado e condenado a morte. Restavam-lhe apenas
três dias de vida. Dito e feito! Quando o carcereiro abriu a cela, trazendo
liberdade ao copeiro, José lhe fez um pedido esperançoso: - Quando estiver diante do Faraó, lembre-se de mim e interceda pela
minha causa...
O
copeiro do rei se tornaria uma peça fundamental no desfecho desta história, já
que passados dois anos, o faraó é quem foi assolado por um sonho pavoroso que
perturbou profundamente seus dias. Ninguém conseguia encontrar uma resposta
satisfatória para as indagações do monarca. Conselheiros mudos e sacerdotes
calados. Um silêncio sepulcral na sala do trono somente quebrado pelos
rompantes de fúria o rei: - Inúteis...
Todos vocês! Estou cercado de incompetentes! E enquanto o faraó tomava nas mãos uma taça de
vinho afim de refrescar as ideias, o copeiro que lhe servia, finalmente se
lembrou de José: - Perdoe-me, Majestade,
mas acho que conheço alguém que pode ajudá-lo nesta questão...
E
aqui temos um conjunto de fatores que provam o trabalhar meticuloso de Deus. O
esquecimento do copeiro foi providencial, pois em qualquer outra circunstância,
faraó não se interessaria pela história de um prisioneiro cananita. O nome de
José só foi trazido à tona quando todos os recursos intelectuais e religiosos do
reino já tinham sido usados a exaustão sem qualquer resultado produtivo. O
desespero do rei era tamanho, que naquele momento, qualquer fio de esperança
apresentado seria agarrado sem maiores contestações, incluindo a “possível”
sabedoria “mística” de um estrangeiro oriundo de Canaã, onde nada havia além de
pastos, pomares e rebanhos... E assim, um presidiário desconhecido acabou sendo
convidado para uma visita solene ao palácio. Acordou prisioneiro e foi dormir
governador. Almoçou pão mofado e jantou manjares. Parece impossível? Acredite,
não é! Deus minuciosamente vai alinhando pequenas possibilidades, sem pressa ou
improvisos, até que de repente o impossível deixa de existir. Como somos imediatistas
por natureza, só enxergamos portas já escancaradas e ouvimos apenas discursos
feitos no megafone. Não paramos para ouvir o sussurrar de Deus pedindo
paciência, pois já está trabalhando nos detalhes que não conseguimos
percebemos. Pequenas possibilidades também são imensas oportunidades, e
enquanto o Senhor faz o grandioso plano seguir em frente, devemos aproveitar as
frestas que se abrem, por menores que possam parecer.
Veja
José... Quando chegou no Egito não passava de mercadoria barata. Vendido com
escravo, foi levado como serviçal para a casa do poderoso Potifar. Trabalhou
com afinco. Esmerou-se nos afazeres diários e encantou seu dono com tamanha
competência. Tornou-se chefe dos empregados. Quando teve a chance de
envolver-se com a “madame” dona da mansão, recusou a oferta e foi injustamente
acusado por uma inexistente tentativa de estupro. A confiança que adquiriu
junto à Potifar salvou sua vida, já que um escravo estuprador seria
sumariamente executado... O general, porém, sabia que o moço era inocente, mas
visando a preservação da honra que restava na família, enviou seu melhor servo
para a prisão... E na cadeia, José foi um detento diferenciado, demostrando um
comportamento tão irrefutável e exemplar, ao ponto de tornar-se guardião das chaves
da própria cela. Não se importando com os cenários e contextos, ele fez a
diferença na vida das pessoas em volta, mesmo sem saber que num futuro ainda
distante, seria recompensado pelas suas ações. E esta é uma lição valiosa para
mim... Deus me leva a lugares que nem sempre vou gostar, mas preciso estar ali
para que as possibilidades se alinhem. E neste interim de tempo, entre o “não estou entendo Senhor” e o “eu já entendi meu Pai”, preciso “ser”
quem nasci para “ser”... Fazer o melhor... Salgar uma terra insípida... Brilhar
nas trevas... Promover paz em meio à guerra... Chorar com quem chora e sorrir
junto aos alegres... Assim, torno-me agradável... Benção para um ambiente
amaldiçoado... E estabeleço bons relacionamentos... Relacionamentos produtivos e
duradouros. Provavelmente, uma destas muitas pessoas que cruzaram a minha
história (não importando onde, como ou
quando) será usada por Deus para um dia, mudar a minha vida... A sua
vida.
Pense...
Que
chances haveriam de “José” e o “copeiro de faraó” se encontrarem nas plantações
de trigo da casa de Jacó? Então, Deus levou José ao Egito.
Qual
a possibilidade de um encontro amigável entre o “escravo da casa do general” e
o “copeiro real do grande faraó” na fila do banco central de Mênfis ou no
mercado municipal de Tinis? Assim, Deus os uniu num espaço confinado, onde
poderiam se conhecer, dialogar e gerar empatia... A cela de uma prisão.
Até
o destino final, nossa viagem será cheia de escalas indesejadas. Pois bem... Gostando
ou não, elas fazem parte da viagem. Estão no itinerário... Não no seu... Nem no
meu... No de Deus. E até agora o cronograma não atrasou. Existem encontros casuais
no hoje, que redefinirão sua vida no amanhã. Quer exemplos? Você se lembra do
hora e local que conheceu seu cônjuge? E o melhor amigo(a), quando se viram
pela primeira vez? Será que naquele momento aleatório da existência, você tinha
ideia que sua vida estava sendo redefinida e o futuro moldado? Não sabemos os
planos de Deus para o amanhã, e nem mesmo porquê algumas pessoas são inseridas
em nosso cotidiano... Mas, não fuja da responsabilidade de fazer o melhor.
Ajudar no que for possível. Ser gentil com desconhecidos e cooperar na
realização dos sonhos alheios. Um dia, as peças do quebra cabeça se encaixam, o
desconhecido ganha nome e o impossível acontece a partir de possibilidades que
você não desperdiçou. Nunca se esqueça que Deus não junta pessoas... Ele une
propósitos...
Tudo
começou com os sonhos de José e terminou nos sonhos do Faraó. A ponte que uniu histórias
tão distintas e que nunca se cruzariam, foi o sonho do copeiro. Tenho a
impressão que Deus se regozija com esta atividade. Juntar sonhos individuais (individualistas?) e realizá-los de
forma coletiva. O sonho de “um”, tornando-se realização para “todos”. E somente
nesta hora, quando finalmente chegamos ao destino, compreendemos os percalços
da viagem. E enquanto a mente retrocede, trilhando inversamente do último ao
primeiro passo, a verdade irrompe a escuridão das incertezas.... Tudo fez
absoluto sentido! Por outros caminhos, seria impossível ter chegado até aqui.
Não inteiro. Não maduro. Não fortalecido.... Por isto, estou tentando fazer da
confiança na sabedoria divina, o meu cinto de segurança enquanto o avião
atravessa esta sucessão infindável de turbulências, mesmo o céu estando de
brigadeiro bem aqui ao lado...
Muita
coisa que Deus faz, não consigo entender, só sei que é melhor quando deixo Ele
fazer... O que Ele faz agora, não consigo entender, e não me desespero, porque aprendi
a crer, que o futuro sempre explica, o que no passado fez, e o que faço é
confiar no que Deus faz, e fica tudo bem! ” (Leandro Borges)
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