(Confúcio)
Há
algum tempo atrás, meu filho Nicolas mostrou-se um ambientalista em potencial.
Esta faceta de sua personalidade veio à tona quando sua turma no Jardim da
Infância assistiu a uma palestra sobre o uso consciente de água. E uma frase
repetida a exaustão durante o evento impressionou profundamente o meu filhote.
- A água do mundo está acabando!
Pense
numa criança que ficou obsessiva com a encomia de água. Um baluarte contra o
desperdício! Pelo menos, o desperdício alheio. Ficava revoltado com pessoas
lavando carro e reclamava da mãe jogando no quintal a água da máquina de lavar
roupa. Estava disposto a salvar o mundo da escassez aquífera, nem que fosse
sozinho. Este engajamento ambiental era até “bonitinho” de se observar, mas
ficava insuportável quando “eu” entrava no chuveiro. Lá ficava o Nicolas
batendo na porta e gritando: - Pai, toma
só um pouquinho de banho, que a água do mundo está acabando. E como se
fosse o próprio “Chaves” no “Festival da Boa Vizinhança” citando o celebre
poema “Volta o Cão Arrependido”, ele repetia a frase pelo menos umas quarenta e
sete vezes.
Porém,
quando era o Nicolas que estava dentro do box, cercado de bichinhos de borracha
e potinhos coloridos, os critérios de economia já não eram os mesmos. Sua mãe
tinha que, “carinhosamente”, o retirar a força do banheiro, caso contrário, ele
evoluiria para um anfíbio antes de desligar o chuveiro. Um dia, depois de
presenciar uma desta cenas memoráveis, eu questionei meu “projeto de peixinho”
sobre seus próprios valores morais:
- Nicolas, se você insiste tanto
para que meus banhos sejam rápidos, porque você mesmo passa tanto tempo debaixo
do chuveiro? A água do mundo não está acabando?
A
resposta que ele deu, me deixou sem ação. Tive que disfarçar, sair de perto e
ir para o quintal me debulhar em gargalhadas.
- Pai... Você é grande e usa
muita água quando toma banho. Eu sou pequeno, e uso só um pouquinho.
Que
senso de justiça imparcial, não? Como diria meu avô: - “Farinha pouca, o meu pirão primeiro”. Em sua ingenuidade, o
Nicolas estava pensando como a maioria de nós. Se referenciando pelo próprio
umbigo, enquanto elabora um estatuto onde toda a humanidade deva se enquadrar.
Egoísmo disfarçado de generosidade. Arrogância vestida de humildade. Hipocrisia
fazendo cosplay de sinceridade. Enquanto apontamos erros e falhas em pessoas,
instituições e até mesmo no “sagrado”, usamos argumentos banais, infantis e
impertinentes para justificar um comportamento egoísta e atitudes levianas. A
mesma régua apontando distâncias iguais com medidas diferentes. O argumento válido
para mim, perde a força quando aplicado aos outros. Ou o contrário. Tanto faz.
E
nos sentimos confortáveis com esta situação, já que por vezes, em decorrência
de uma boa falácia (outras tantas pela
ingenuidade de ouvidos pouco aguçados), saímos ilesos desta fogueira de
vaidades. É possível enganar “alguém” por muito tempo, “alguns” por
certo tempo e a “todos” por um pouco tempo. Mas, como enganar aquele que está
acima de tudo e de todos? Então, inevitavelmente,
o Castelo de Palavras que tanto esforçamos para construir, uma hora cairá.
E
Deus é especialista neste tipo de trabalho. A sua PALAVRA é a própria “bola de
demolição”. O Senhor implode palacetes e fortalezas como se fossem amontoados
de gravetos ressequidos. Falamos o que queremos e ouvimos o que precisamos. Argumentos
humanos derretam diante de sua vontade, assim como a manteiga se liquefaz na
presença do fogo. E esta comparação “piro-metafórica” me traz a memória um
personagem bíblico que tentou argumentar com Deus baseado em suas próprias
convicções, e literalmente, saiu queimado.
Isaías
é hoje conhecido como “O Príncipe dos Profetas”. O conteúdo de suas mensagens inspiraram,
impactaram e modificaram milhares de pessoas por centenas de gerações. Ele anunciou o exílio Babilônico com um
século de antecedência. Predisse em minúcias de detalhes o nascimento, a vida e
a morte de Cristo, setecentos anos antes da conversa entre Gabriel e Maria.
Anunciou a decadência de reis famosos e o apogeu de governantes desconhecidos.
Sua postura destemida estava alinhada a mensagem incisiva que pregava. Isaías
não desvaneceu de sua fé, nem mesmo diante da morte. Segundo a tradição história
(baseada no registrado do milenar – e
apócrifo - “Livro dos Profetas”), quando o perverso rei Manasses se viu
confrontado pelo profeta do Senhor, ordenou que o mesmo fosse assassinado com
requintes de crueldade. Assim, Isaías foi amarrado de cabeça para baixo com as pernas
abertas em forma de “v”. E ainda vivo, lentamente serrado ao meio. Nesta
posição, os órgãos vitais demoram a ser atingidos, e dependendo da perícia do
carrasco, o flagelo e a agonia podem ser prolongados por horas a fio. Tempo o
suficiente para mudar por completo as crenças da pobre e infeliz alma condenada.
Nada disso abalou sua convicção ou amortizou a esperança que residia em suas
palavras. Um tempo de paz brotaria da guerra. Um menino especial iria nascer em
Belém, Deus caminharia entre os homens. Isaías acreditava na própria mensagem,
e isto o fortalecia contra a dor. Um
homem inabalável. Um profeta serrado ao meio, mais nunca quebrado em dois.
Mas,
nem sempre foi assim....
Voltando
alguns anos nesta mesma história, vamos nos deparar com um Isaías bem menos
confiante, mais interessado em suas relações diplomáticas do que na
espiritualidade de seus compatriotas. Tendo laços sanguíneos com o rei Uzias,
ele acompanhava de perto as vicissitudes do reino, mas não se atinava para a
urgência do próprio ministério. Então, Deus apressou em revelar-se com
intensidade. O Senhor se descortinou a Isaías, permitindo que o jovem profeta
partilhasse dos sentimentos divinos. Um homem sentindo a angústia do próprio
Deus.
E
como Deus estava triste. Seu povo querido caminhava cada vez mais distante,
espiritualmente surdo e insensível a presença do Criador. Até mesmo o boi
reconhecia a voz do dono, e o jumento sabia o caminho do pasto, mas Israel,
teimava em se afastar do abrigo. Seguia mercenários e ignorava o chamado do
sumo pastor. Mentes enfermas e corações enfraquecidos. Pais carregados de
iniquidades gerando filhos corruptores. A perpetuação de uma descendência
maldosa. Na demarcação geográfica de Deus, Judá estava no mesmo quadrante que
Sodoma e Gomorra. Apenas a misericórdia do Senhor impedia o caos absoluto.
Isaías
tinha uma missão árdua pela frente. O sermonário escrito por Deus não lhe
reservava temas palatáveis. O profeta tinha um chamado, e também uma
inquietação. Ele estava inserido no contexto ao qual deveria condenar. Era tão
judeu quanto seus compatriotas apostatados e negligentes. Um povo de lábios
impuros, que destilavam aos quatro ventos todo tipo de injúrias. E não se
privavam de maledicências, blasfêmias e murmurações. Teria ele condições morais
de ser o portador de palavras tão definitivas?
E
neste ponto, que Deus se revela ao profeta pessoalmente. Olho no olho. Isaías faz
parte de um seleto grupo que contemplou em vida, uma nuance das venturas
eternas.
O
profeta foi transportado a um templo de magnitude imensurável. No centro do Santuário,
um trono altíssimo e sublime, de onde emanava a glória cintilante que envolvia
toda a sala num brilho fulgural. Isaías olhou em sua volta e viu os Serafins. Anjos
adoradores dotados de grande beleza e possuidores de imponentes “seis” asas.
Com duas delas, cobriam o rosto, em respeito e reverência, tamanha era a
intensidade da luz que emanava do Trono. Em uníssono eles cantavam a santidade
de Deus: - Santo, Santo, Santo é o Senhor
dos Exércitos! Toda a Terra se enche com sua Glória!
E
então, a voz daquele que estava assentado no Trono ressoou como se fosse um
trovão ecoando pelos mares em fúria. E tudo estremeceu. Os umbrais do Templo
dançaram sobre as próprias bases, mas permaneceram de pé. Uma fumaça em tons
alvos e dourados envolveu todo o ambiente. Apavorado, Isaías se lançou ao chão, em
prantos e externando toda sua frustração interior:
- Aí de
mim! Porque agora eu vou morrer!
Pobre
Isaías. Inseguro do próprio chamado. Deus não precisa descer dos céus brandindo
espadas assassinas. Para exterminar cento e oitenta e cinco mil soldados
assírios, foi preciso um anjo. A arrogância de Herodes foi extirpada da terra por
vermes desprezíveis. Basta um pensamento do Altíssimo, e a natureza se
encarrega de abater exércitos poderosos. Conta-se que um homem armado até os
dentes gritava num campo aberto, convocando Deus para um duelo de vida e morte.
Enquanto berrava ensandecido acusando Deus de covardia, uma pequena mosca
entrou na bocarra aberta, pousou tranquilamente em sua garganta e o valentão morreu
asfixiado. Quando o próprio Deus se dá
ao trabalho de descer dos céus até nós, não é caso de morte, mas sim de vida.
Mesmo
assim, o profeta estava apavorado. Ele fez uma análise de sua própria condição
e concluiu que Deus estava sendo... hummm... digamos, um tanto, “imprudente”: - O Senhor se mostrou a um homem pecador e
com isso decretou minha morte! E aqui, neste ponto, estão as similaridades (guardada as devidas proporções) entre os
comportamentos de Isaías (o príncipe dos
Profetas) e do meu filho Nicolas (até,
então, apenas mais um aluno do pré-primário). O Nicolas justificando o
banho demorado. Isaías, justificando a própria morte.
Qual
a semelhança?
Em ambos os casos, o argumento utilizado é valido na boca de quem
fala, mas não convence os ouvidos quem o escuta.
Entenda.
A verdade de um momento nem sempre é duradoura. Mesmo que não seja mentira. O
Nicolas realmente acreditava que por ser “menor” que eu, gastava uma quantidade
menor de água, mesmo passando mais tempo debaixo do chuveiro. Faz sentido? Para
mim, não. Para ele, fazia. Já as
palavras de Isaías estavam revestidas de embasamento. O próprio Deus havia
alertado Moisés sobre o perigo mortal que reside em se olhar diretamente para a
face do Santíssimo. Porém, o profeta não estava preocupado com os critérios
estabelecidos por Deus, mas sim, com o que pensava sobre si mesmo. As limitações
que tinha colocado em sua própria vocação.
- Eu sou um homem cuja boca está
contaminada, e meu círculo de amizade, é composto por pessoas com lábios tão
impuros quanto o meu. Agora que meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos,
minha ousadia seria castigada com a morte!
Não
Isaías. Você não ousou olhar para Deus. Ele se revelou a você. E a visitação do
Senhor não amaldiçoa. Ela traz benção, alegria e paz. Foi Ele quem nos
escolheu, jamais o contrário. Deus parou de frente a vitrine, observou todos os
detalhes. Identificou cada trinca, ranhura e defeito. E mesmo assim, me
escolheu. Escolheu você. O pacote completo, contendo virtudes e imperfeiçoes. E
se eu confio que Deus sempre sabe o que faz, devo confiar também em suas
escolhas, e me lembrar diariamente que sou uma delas. Não apenas um item de
coleção. Primeiro, “Criatura”. Depois, “Servo”. Mais tarde, “Amigo”. Agora,
“Filho”.
Mesmo
assim, o Rei da Glória não deseja que nos sintamos coagidos e desconfortáveis em
sua presença, onde impera a liberdade reverente. Ele fará o for necessário para
que fiquemos “a vontade”. Então, muito cuidado com o que se pensa, critérios
bem estabelecidos para o que deseja e prudência com tudo o que fala. Deus
deseja dar os fins que o nosso coração almeja, e isso nem sempre é tão bom como
imaginamos.
Geralmente,
nossos argumentos (habilmente esculpidos
com palavras rebuscadas e conceitos pessoais bem definidos) são como “Castelos
de Cartas” na rota de um furacão. Serão dispersados por Deus como a neblina que
ousa flertar com a ventania. O Senhor derruba (e derriba) nossos conceitos, porque seu entendimento supera a
junção de todo saber humano. Nossas debilidades são ferramentas de poder em
suas mãos poderosas. Nossas fraquezas se tornam fonte de força através de sua
misericórdia inesgotável. Para Deus, este
processo consiste apenas em soprar as cinzas que estão no Altar, já para nós, é
como segurar brasas acessas com as mãos desnudas.
Próximo
ao Trono, havia um Altar reluzente, cujo braseiro fumegava. Um dos Serafins se aproximou cautelosamente
das chamas, tomou nas mãos uma tenaz, e com ela, removeu uma brasa
incandescente. Depois, voou na direção de Isaías, e sem maiores avisos,
encostou a brasa nos lábios do profeta. Chiiiiiiiiiii! O cheiro de carne
queimada impregnou o ar.
A
movimentação do anjo é um mero detalhe, já que ele é apenas um mensageiro do
Senhor. É a ordenança divina que conta. Deus sabe como inutilizar nossas
desculpas e desmotivar os medos que nos travam, por maiores que sejam. Se o
argumento de Isaías era a impureza de seus lábios, o contra-argumento do Senhor
foi a purificação. Dói, mas resolve. A cauterização é uma técnica que Deus usa
rotineiramente. Se uma cicatriz traz a cura definitiva, porque se conformar com
feridas abertas eternamente? Deus não se conforma. Ele age quando deseja e
reage quando lhe convém.
Assim
que Isaías sentiu o ardor nos lábios, ouviu a voz que lhe retirou as dores da
alma e o peso que esmagava seus ombros: -
Com o toque desta brasa, a tua iniquidade foi tirada, e todo o teu pecado deixou
de existir...
A
menor das experiências pessoais que temos com Deus, já é por si só,
transformadora. Basta um toque para que a mudança aconteça de dentro para fora.
Agora, Isaías não tinha argumentos para refutar a vontade de Deus ou procrastinar
a plenitude de seu ministério pessoal. Ele estava limpo. Perdoado. Avalizado. O
Castelo de Palavras tinha se espatifado pelo sopro divino, sem a menor
possibilidade de reconstrução. – A quem
eu posso enviarei? Quem será o meu representante na Terra? – Bradou a voz
daquele que estava assentado sobre o Trono. O profeta sentiu o senso de
urgência percorrer suas veias. O calor que se concentrava apenas nos lábios
irradiou-se por todo o corpo, aquecendo o coração ao ponto de fervura. Um novo
Isaías imergiu das cinzas. Renasceu entre as brasas.
- Estou aqui! Pode me enviar! Não
importa qual a mensagem, e a quem terei que falar... Eu vou!
Ainda
hoje, o Senhor está contando com seus embaixadores neste mundo. Homens e
mulheres que transmitam sua mensagem numa terra onde Deus tem se tornado apenas
uma silhueta no retrovisor. E você (gostando
ou não), está na lista dos aprovados pelo RH celeste. O trabalho já é teu,
mesmo que não se sinto preparado, apto ou digno para tão grandioso serviço.
A
escolha não foi feita baseada em seus critérios. Muito menos, nos meus. Deus
não lida bem com cartas de renúncia ou recusa de propostas. E Ele sabe ser
convincente. A desistência não é uma opção para o Senhor. Então, caso esteja
tentado a declinar da oferta de trabalho (ou
seria convocação?), esteja preparado para uma conversa ao pé do ouvido.
Reunião as portas fechadas no último andar do edifício. Uma experiência única,
definitiva e transformadora. Que pode sim, ser um “pouco desagradável”, caso os
argumentos trazidos à pauta não surtam nos ouvidos de Deus, o mesmo efeito que palavras
balbuciadas por lábios trêmulos, causam na alma do homem.
Então,
ao invés de perdermos tempo com retórica desnecessária, sintaxe redundante e
gramática ineficaz, talvez seja melhor resumir nossos conceitos, opiniões
pessoais, achismos, medos, anseios, incertezas, e a famigerada justiça própria,
numa única frase: - Eis-me aqui, envia-me
a mim!
Como
pai, eu não desmereci o argumento do meu filho. Ele tinha razão no que falava.
A água do mundo está cada vez mais escassa e precisamos urgentemente investir
numa rotina de economia consciente. Todos, inclusive, o Nicolas. Sua
verborragia eloquente atingiu o objetivo. Meus banhos ficaram mais curtos. E os
dele também. Contra-argumento a um bom argumento. Isaías, também argumentou com
propriedade. O pecado é uma trava impedindo ao homem de servir a Deus. A boca
maledicente não serve ao Senhor, pois já está escravizada pelo próprio Satanás.
Então, Deus expulsou a “serpente” usando o fogo, e como efeito colateral à ação
divina, Isaías se queimou... e lá se foi o profeta, falando “fofo” e
doloridamente, por muitos dias. Mas, anunciando a mensagem que lhe foi confiada
Particularmente,
eu acho (apenas acho), que é mais
vantajoso servir ao Senhor de “bico fechado”, do que com o “bico
queimado”. Então, como já bem disse meu
patrão, “mais trabalho e menos conversa!”
(Livremente inspirado nos textos
de Isaías 1 e 6)
Nenhum comentário:
Postar um comentário