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quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Deus está destruindo a minha vida

Ama o impossível, porque é o único que te não pode decepcionar.
(Vergílio Ferreira)



- Deus... Te servir está destruindo a minha vida!

Certamente, esta declaração foi feita por um apostata, pouco antes do completo abandono da fé. Nas entrelinhas, pode ser lida a desculpa para esquivar-se da responsabilidade inerente a caminhada cristã. Mas, não. Este não é o caso. A afirmação acima, foi feita por um dos homens mais notáveis da história. Um baluarte da fé, cuja biografia é fonte de inspiração para os grandes inspiradores.

Jeremias foi levantado como profeta ainda muito jovem. Se sentia despreparado para exercer ministério tão pesaroso. Porém, sua chamada foi vaticinada pelo próprio Deus, que o revestiu de uma autoridade espiritual que ecoa até os dias de hoje. No seu tempo, porém, enfrentou uma era de apostasia e incredulidade sem precedentes em Judá, transtornando completamente sua rotina. Redarguindo a rota planejada para a vida.

Seu ministério teve início durante o reinado de Josias. O rei convocou os líderes do Reino para uma grande escola bíblica, onde foram reeducados nos princípios da lei. Depois, ordenou que Hilquias (pai de Jeremias), liderasse os sacerdotes numa limpeza generalizado do Templo. Todo vestígio de idolatria deveria ser eliminado das dependências sagradas. Jeremias foi participante fundamental deste período, já que a reforma atingiu o ápice no quarto ano de seu ministério profético. A mensagem de Jeremias se alinhavam aos ideais de Josias. Rei e profeta falavam a mesma língua. Um chamado ao arrependimento. Um grito conclamando aos judeus para quebrantarem seus corações. 

E tudo parecia estar indo muito bem. A limpeza se expandiu para os lugares de cultos e espaços públicos de Jerusalém. Porém, não atingiu os lares judaicos. Apesar da reforma religiosa, a mentalidade de Judá não mudou. Deus continuava renegado a uma posição secundaria. Eles se preocupavam com suas relações políticas e pessoais, se esquecendo de voltar os corações ao Senhor. Exatamente por isso, o ministério de Jeremias de tornou pesado demais, e suas palavras ganharam um sabor peculiar, semelhante a salada de boldo temperada com benzoato de denatônio. Amargor. 

E tinha que ser...

Quando Deus convocou Jeremias ao ministério profético, deixou claro seu desapontamento com a nação, que abria mão de beber água na fonte, e buscava matar a sede em cisternas rotas, que se secam com facilidade (Jeremias 2:3). As palavras de Jeremias eram pesadas e contradiziam as mensagens proféticas de seu tempo. Diversos profetas se amontavam no templo e no palácio, profetizando prosperidade e vitória sobre os inimigos. Jeremias, porém, conclamava o povo a se arrepender enquanto ainda havia tempo, pois em poucos anos, o Reino de Judá seria derrotado pelos caldeus.

Tudo ficaria muito mais difícil para Jeremias após a morte do Josias. Por apenas três meses, Jeoacaz foi o governante de Judá, que por se negar a pagar tributos ao Egito, acabou deposto do trono pelo faraó Neco e levado cativo ao Egito. Em seu lugar, Jeioaquim, um homem arrogante e vil, foi declarado rei. Neste período, a mensagem indigesta de Jeremias ficou ainda mais densa. Ele profetizou o exílio perpétuo de Jeoacaz, denunciando os crimes morais e espirituais do novo monarca. Anunciou a proximidade da ruína de Judá e a ascensão da Babilônia, que até aqueles dias, não era um reino tão poderoso assim.

Imediatamente, as classes dominantes de Judá, repudiaram sua mensagem pessimista, e se empenharam em desmerecer as palavras do profeta. Neste intento, o ridicularizavam constantemente diante da população. Jeremias estava galgando a escadaria da impopularidade. Sua mensagem não era de fácil aceitação, e contrariava as perspectivas nacionais. Mesmo assim, o profeta foi insistente em suas palavras. Acreditava piamente que seus compatriotas, voltariam atrás quanto ao frio julgamento destinado a suas mensagens, e reatariam sua comunhão com Deus. Não foi o que aconteceu. Com o tempo se esgotando, e a inércia espiritual do povo cada vez mais acentuada, Jeremias se viu confrontado por muitos dilemas e complexos interiores.

Obviamente, no momento em que foi chamado para profetizar, Deus o blindou espiritualmente contra as potenciais ameaças que o afligirão no exercício de seu ministério. Entretanto, Deus jamais deixará seus profetas insensíveis e intangíveis aos relacionamentos humanos. Deus não amortiza nossas emoções. Elas são fundamentais na forja do caráter. É preciso dominá-las através da frutificação espiritual. E esta era uma batalha diária do profeta. Dominar seus próprios sentimentos.

Jeremias enfrentou pelo menos duas crises emocionais de grande proporção. A primeira delas teve como estopim a descoberta de um plano para retirar sua vida. O próprio Deus alertou ao profeta que os moradores de Anatote haviam premeditado seu assassinato. Aquela era a cidade natal de Jeremias, onde ele cresceu conhecendo cada morador. Agora, as mesmas pessoas que o viram nascer, desejavam desesperadamente matá-lo. E mais do que isso, apagar seu nome da história. Em suas reuniões secretas, eles confabulavam a nefasta intenção:  

Destruamos a árvore e a sua seiva, vamos cortá-lo da terra dos viventes para que o seu nome não seja mais lembrado (Jeremias. 11:19).

Jeremias, então, se pôs a questionar sobre o sucesso que os ímpios encontravam em seu caminho, enquanto homens bons e decentes, só achavam tristeza e decepção. Ele cogitava a possibilidade de não ter condições para continuar sua jornada. O que não sabia, era que aquele seria apenas o primeiro obstáculo de seu ministério. E Deus o encorajou a ser forte, e não se abalar com os percalços do caminho:

- "Se você correr com homens e se sentir cansado, como poderá competir com cavalos? Se você tropeçar em terreno seguro, como poderá caminhar nos matagais junto ao Jordão?" (Jeremias 12:5).

A segunda crise emerge de inúmeros fatores. Jeremias não era convidado para nenhuma festa, não participava de eventos sociais, e se quer, podia tomar parte de jantares em família. Em seu entendimento, ele não era “amado” por ninguém, e todos os moradores de Judá o “amaldiçoavam”. Sacerdote de ofício, Jeremias foi proibido de entrar no Templo, e não tinha permissão para falar em espaços públicos. Seu ministério se tornou marginalizado e muito perigoso. Tudo o que lhe era amado, também lhe fora negado.

Confuso, emocionalmente ferido, espiritualmente abalado e socialmente rejeitado, Jeremias questionou ao Senhor quanto a legitimidade da mensagem que lhe foi confiada. E foi além.  Acusou a Deus de omissão. O Senhor o tinha jogado aos leões, e na cova, o deixado sozinho e cercado de feras.

"Jamais me sentei na companhia dos que se divertem, nunca festejei com eles. Sentei-me sozinho, porque a tua mão estava sobre mim e me encheste de indignação" (Jeremias 15:17).

Decepção. Desonra. Sentimento de fracasso. O profeta foi mortalmente atingido pela solitude, e se entregou a auto- comiseração. Sua família o tinha desprezado, e Deus o tinha proibido de formar uma nova família. Jeremias não poderia se casar, pois a ausência de filhos em sua linhagem, era uma mensagem prática que apontava para as crianças que deixariam de nascer em Judá, quando o povo fosse levado ao exílio.  Ele não tinha uma mão amiga para segurar em seus momentos de fragilidade emocional, e isto o fazia se vitimar nos períodos de oração.

Porém, o Senhor, ciente do potencial de Jeremias, cobrou de seu profeta uma postura austera e corajosa, além do reconhecimento de seus excessos emocionais. Deus queria que o profeta aprendesse a dominar os sentimentos. Menos medo e mais confiança.

Se você se arrepender, eu o restaurarei para que possa me servir; se você disser palavras de valor, e não indignas, será o meu porta-voz. Deixe este povo voltar-se para você, mas não se volte para eles. (Jeremia 15:19)

Deus pede que sejamos fortes em tempos de fraqueza. Confiantes durante as incertezas. O Senhor requer postura, mesmo que tudo a volta sucumba ao caos. Quando tudo parecer perdido, é preciso trazer a memória aquilo que nos traz esperanças. E Jeremias tinha do que se lembrar...

Ao longo de seu ministério, Jeremias teve muitas visões apoteóticas.  E talvez, a que tenha maior significado, seja também a mais singela. Assim que foi chamado por Deus, Jeremias se sentiu inapto a exercer tamanho ministério, pois se julgava “jovem demais”. O Senhor o tinha estabelecido como “Cidade Forte”, “Coluna de Ferro” e “Muro de Bronze”, contra toda a terra, contra os reis de Judá, contra os príncipes e contra os sacerdotes. Basicamente, suas palavras afrontariam os políticos e os religiosos do Reino. Seria necessária uma coragem sem precedentes, e o preço pago por um homem corajoso, é sempre alto demais.

Jeremias estava apavorado. Teria ele condições de exercer um ministério tão grandioso? Deus, então, lhe mostrou uma vara de amendoeira:

- O que você está vendo Jeremias?

A amendoeira era a primeira árvore a florescer na primavera, e marcava o início de um novo ciclo. As flores da amendoeira também adornavam o candelabro no templo, símbolo da iluminação espiritual produzida pela obediência aos mandamentos divinos. Para alguém criado numa família sacerdotal, a visão da vara de amendoeira tinha imenso significado. Foi através da frutificação de uma vara de amendoeira sequíssima, que o sacerdócio a Arão foi validado.

- Eu vejo uma vara de amendoeira, Senhor? – Respondeu Jeremias

- Exatamente. Apenas se preocupe em transmitir a mensagem que estou te entregando.... Pelas minhas palavras, velo eu!

Desta maneira, o Senhor garantiu ao profeta que seu ministério seria confirmado pela fidelidade do próprio Deus (Jeremias 11:12). Isto, obviamente, não garantiria facilidades ministeriais. Muito pelo contrário. Ser obediente a vontade de Deus significa se opor aos desejos do mundo. É estar no centro de uma guerra cerrada, avançando constantemente na direção do inimigo, sem a possibilidade de voltar as trincheiras aliadas. Os ferimentos são inevitáveis, mas a sobrevivência está garantida.

A Bíblia não esconde as debilidades de seus heróis, o que nos permite maior identificação com seus personagens. Somos como eles. Sim, temos falhas e cometemos erros gritantes. E mesmo assim, o Senhor continua investindo em nossas vidas.  

O texto autobiográfico de Jeremias, deixa explícita a passionalidade do profeta, externada em todas as facetas de seu "ser". Em decorrência desta “entrega”, ele cultivou um dos relacionamentos mais profundos entre homem e Deus já registrado na história. Ciente de sua fidelidade ministerial, também se sentia confortável para se dirigir ao Senhor despido de formalidades, e dialogar de forma franca. E é em um deste momentos de desabafo, que Jeremias reverberou a plenos pulmões a afirmação que nos deixa estonteados. Afinal de contas, como um profeta tem a ousadia de vociferar blasfêmias contra Deus, e culpar ao Senhor pelo fracasso pessoal?  - Deus, te servir está destruindo a minha vida! Sim, Jeremias estava furioso com o Senhor, assim como secretamente ficamos também.

- Senhor, tu me enganaste, e eu fui enganado; foste mais forte do que eu e prevaleceste. Sou ridicularizado o dia inteiro; todos zombam de mim. Sempre que falo, é para gritar que há violência e destruição. Por isso a palavra do Senhor trouxe-me insulto e censura o tempo todo.  (Jeremias 20:7-8) 

Não se recrimine por este sentimento. Não entender Deus é apenas a ponta do iceberg. Por vezes, sentimos verdadeira aversão. Se não por Ele, pelas suas atitudes. Deus tem uma metodologia de trabalho que chega a flertar com o ofensivo. Pelo menos, sob a perspectiva do falho senso de justiça que varia de acordo com nossos interesses... As palavras que tinha confiado a Jeremias, caiam por terra uma a uma, deixando o profeta exposto ao vitupério público. Falar a verdade o estava condenando a uma prisão sem grades (ou com grades, dependendo da ocorrência). Andar com Deus o afastava das pessoas e lhe privava de carinhos. E isto te parece justo? Para Jeremias, nunca pareceu. E ele questionou exatamente quem tinha as respostas.

Este é o segredo...

O problema da cristandade moderna é chorar no ombro errado. Fazemos das redes sociais nosso confessionário. Reclamamos de tudo com todos. E, simplesmente, esquecemos de nos derramar aos pés do Senhor. Contar para Ele os segredos. Encontrar na fonte a água que mata a sede causada pela ansiedade. O vaso se quebrando  na mão do oleiro, para finalmente ser restaurado.

Para cada dúvida existente em nosso coração, existe uma vara de amendoeira diante de nossos olhos, mesmo que estejamos cegos à visão. Ela está lá, florida, independente de nossas tristezas, lamúrias e depressões. Para cada gemido da alma, existe uma resposta ecoando pela eternidade. Voz de trovão que não se cansa de dizer: - Apenas se preocupe em transmitir a mensagem que estou te entregando.... Pelas minhas palavras, velo eu! E, então, cabe somente a mim (e a você), decidir qual voz vai falar mais alto. O lamurioso ganido da efêmera frustração humana ou o triunfante brado eternal do Todo Poderoso. Questione, mas não duvide! Se não for possível entender, apenas acredite.

Jeremias fez a sua escolha, por mais elevado que fosse o custo pessoal. Sentindo o gosto da morte, ele se fartou nas fontes que jorram águas de vida. E ao fim de tudo, suas palavras tão desacreditadas, se tornaram testemunhos perpétuos da história. Nenhuma vírgula fora do lugar. O propósito suplantando a dor: - O Senhor fez o que planejou; cumpriu a sua palavra, que há muito tinha decretado. (Lamentações 2:17)


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