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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Promotores de Deus ou Advogados do Diabo?

Ah, minha alma!
Prepare-se para encontrar aquele que sabe fazer perguntas.
(T. S Eliot)

Justiceiro. Alguém que perdeu a fé no sistema dominante, e ignorando as leis vigentes, passa a fazer justiça com suas próprias mãos. Ou, pelo menos, o que ele mesmo (baseado em convicção puramente pessoal), acredita ser justiça. Como ninguém (eu disse, ninguém) é dono da verdade absoluta, todo justiceiro está regiamente armado com uma metralhadora ensandecida chamada “injustiça”. Certamente, você já deve ter se esbarrado com um destes por aí. Não nos quadrinhos da Marvel. E nem na Netflix. Mas sim, dentro da sua igreja.

Para ser bem sincero, todos nós temos momentos assim. Donos da verdade. Senhores da razão. Beatos auto canonizados. Justiceiros de Deus na Terra. Investigadores de pecados. Assassinos de pecadores. E qual a justiça que prevalece aqui?  Será que o Senhor nos premia com medalhas de honra ao mérito, quando para “orgulhosamente” denunciar o pecado, destruímos propositalmente a vida de quem o praticou? Onde Jesus deixou tal ensinamento?

Dias atrás recebi uma ligação. Do outro lado da linha a voz eufórica de um destes justiceiros da fé. Era notável seu contentamento em compartilhar um possível “pecado grave” cometido por outro irmão da comunidade. E o cidadão (ou cidadã, tanto faz) ainda tem a ilogicidade de concluir sua denúncia (pautada em especulações), dizendo que: - Só estou informando isto à você, por que precisamos orar pelo irmãozinho. A mesma balela usada nos próximos cinquenta telefonemas dados nos minutos seguintes.

Que raio de amor cristão é este? Primeiro eu acuso, difamo e calunio, para somente depois orar em prol de uma pessoa necessitada de força, misericórdia e amparo?

Deus deseja que vivamos uma vida de justiça, rigorosamente enquadrada na legislação dos céus, e não que interpretemos a lei celeste de acordo com nossas conveniências. Se homicidas, adúlteros e ladrões irão ficar de fora da Nova Jerusalém, caluniadores, rancorosos e maledicentes, também não terão suas entradas autorizadas. Então, cuidado com a ferocidade desta boquinha. Mantenha o dedo fora do gatilho. Parafraseando a escritora Simone Monteiro, “falar dos pecados dos outros, não torna você um santo, mas sim, um PECADOR FOFOQUEIRO!”

Deus não precisa de promotores. Já Satanás, sempre tem lugar em sua agência para novos advogados. Pessoas especializadas na burocracia da religiosidade. Leais defensores do legalismo farisaico. Cegos espirituais diagnosticando a miopia do seu próximo. Animadores de tribunais, esquecendo que o lugar de todos os homens não é sentado no júri, e muito menos junto a tribuna. Tem uma plaquinha com o nome de cada um no banco dos réus.

“Justiceiros da fé” se esquecem disto. Apontam o dedo e atiram. Recarregam a língua e metralham. Lashon Hará. Se passam por baluartes da virtude, mas são verdadeiros assassinos espirituais. Fico indignado com discurso unilateral de muitos cristãos. Eles selecionam meticulosamente um texto bíblico para validar suas acusações. Ignoram que a Bíblia é um livro completo, intenso, onde cada parágrafo é contextualizado com a plenitude da mensagem. Por exemplo, já presenciei diversos pastores usando o texto de Malaquias 3:9 para chamar de "ladrão" alguém que, por motivos que lhe são particulares, deixou de dizimar: - Se a sua família não dizima mensalmente, você tem uma quadrilha dentro de casa! 

Mas, se acuso alguém de ladrão, colocando em cheque a dignidade de um homem honesto, não estou comentando perjúrio e semeando contenda? Usar frases fragmentadas como doutrina não é manipular as Sagradas Escrituras? Sim. Justiceiros também são revisores do irrevisível. Basicamente, rasgam a Bíblia "de todos" para justificar a Bíblia que só existe dentro de um único coração rancoroso. E qual o motivo para tamanha apelação? Para que banalizar o texto sagrado em prol de uma ideia mesquinha? 

É porque promotores da fé gostam de rotular pessoas e enquadrá-las numa tabela de preços. Dizer quem é bom ou mal. Dignos ou indignos do céu. Medem com uma régua descalibrada, e nunca aferida. E pouco se importam com os estragos sociais, espirituais e psicológicos desta verborragia egoísta. Então, ecoa pelos templos e lares, a voz onipresente dos pseudos “Promotores de Deus”, que se quer, compreendem que advogam magistralmente em prol de Satanás. Dedos em riste, alcovitice a plenos pulmões:

- Vagabundo!
- Adúltero!
- Ladrão!
- Mentiroso!
- Hipócrita!

Para o justiceiro, ninguém tem muito valor. A não ser ele. Presunçosamente, estes arrogantes vestidos com trapos de humildade, gastam suas vidas na denúncia do pecado... "alheio". Sopram o cisco e ignoram o pedaço de madeira cravado no próprio olho. Espantam a mosca, mas engolem o elefante. Vai entender. Nunca julgue o pecado de seu irmão, apenas por ser diferente dos teus. Este tipo de comportamento já evidência a miséria vivida por um pecador. Pecado elevado ao quadrado. Que Deus tenha misericórdia destes falastrões, pois se a língua tem o poder de injetar veneno nas pessoas a nossa volta, ela também verte toxinas mortais para o interior do homem. Em pouco tempo, todo corpo estará envenenado. Morte certa. E morte eterna.

Os discípulos de Jesus conheciam bem a Lei de Moisés. Eles sabiam que não deveriam matar uma pessoa. Isto os tornaria em homicidas, passiveis de sentenças punitivas na Terra e no Céu. Cristo, foi muito além. O Mestre lhes apresentou a legislação celeste, muito mais rigorosa. O amor em primeiro lugar. O zelo com as pessoas suplantando a devoção institucional. O pecado sendo coagido, enquanto o pecador se sente abraçado pela graça. Jesus não permitiria que seus amigos se tornassem em “Promotores de Deus”. Justos, sim. Justiceiros, jamais! – Vocês precisam entender que existem outras formas de matar uma pessoa. O ensinamento de Jesus não deixa dúvidas. Assassinatos físicos e homicídios morais se equiparam diante de Deus. Dá no mesmo atirar na cabeça de alguém ou disparar palavras mortíferas contra uma pessoa. A mesma imputação. O mesmo julgamento. A mesma sentença.

- Vocês ouviram o que foi dito aos seus antepassados: “Não matarás”, e “quem matar estará sujeito a julgamento”. Mas eu lhes digo que qualquer que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento. Também, qualquer que disser a seu irmão: “Racá” (leviano/insignificante), será levado ao tribunal. E qualquer que disser: “Louco! ”, corre o risco de ir para o fogo do inferno. (Mateus 5:21-22)

Não. Este não é um texto de apologia ao pecado. Longe disto. Cristo nos chamou para sermos santos, separados e puros em todo tempo. Porém, o processo de santificação é contínuo, permanente, longevo e “não” nos imuniza contra o pecado. Cristo nos redimiu, nos justificou, nos lavou, nos perdoou, e mesmo assim, continuamos suscetíveis ao erro, ao fracasso, as falhas e a todo tipo de ato pecaminoso. Estar de pé, é o estágio que antecede a queda. Nossos olhos são atraídos por painéis luminosos. Os pés escorregam na direção de caminhos tortuosos. É preciso ser sóbrio, vigilante e devotado. Todo dia. O dia todo. Inconformados com o mundo e seus valores deturpados. Todo cristão que se preza, é averso ao pecado, mesmo sendo um pecador em recuperação. Por isso, foge até mesmo do que aparenta ser mal. 

Este é um texto sobre a minha condição. A sua condição. A condição de cada pessoa neste planeta. Somos todos pecadores e carentes da graça de Deus. Desesperados pela misericórdia divina. E nas mãos do Senhor, encontramos justiça equilibrada. Zelo e amor na mesma proporção. Em mãos humanas, tudo é deturpado, falho e propenso ao revanchismo. Chamamos “vingança” de justiça. Chamamos o “fracasso” alheio de justiça. Imbuídos de sentimentos perniciosos, apontamos o pecado (do outro) e clamamos: Justiça!

Mas, se Deus executasse sobre mim, a justiça que exijo ao meu irmão, qual seria a minha sentença?

É muito fácil apontar nas pessoas, os pecados que não cometo. Ou condenar em público os meus próprios hábitos privados. Difícil mesmo, é reconhecer os pecados praticados por mim, e que o próximo (a quem considero menos crente do que eu) nunca praticou. Na verdade, tudo é pecado. Todas as coisas estão nuas e patentes diante de Deus. Inclusive a hipocrisia. Os interesses escusos. As desculpas esfarrapadas. A falácia maliciosa. Os telefonemas perniciosos. As mensagens mal-intencionadas. As reuniões secretas. A língua melindrosa que incendeia a floresta na calada da noite.

Deus não se deixa enganar. Ações geram reações. Semeadura e colheita são vínculos eternos. A única forma de quebrar o ciclo de morte inerente ao pecado, é se entregar ao perdão divino. Só é perdoado quem pode perdoar. Só consegue perdoar aquele que experimentou a força do perdão. Amor gera mais amor. Pecadores que reconhecem suas misérias alcançam a graça de Deus. Justiceiros da fé, sequer conseguem dimensionar a gravidade de seus pecados. Se justificam através da própria “santidade”, e ao não reconhecerem a condição pecaminosa na qual estão imergidos, se blindam contra o perdão. É uma realidade triste. “Promotores de Deus” sendo condenados no tribunal divino por advogarem em prol de Satanás. Inevitavelmente, a “INIMIGOS E ASSOCIADOS ADVOCACIA ACUSATIVA” vai falir, levando consigo todos os sócios (Apocalipse 12:10).

Paulo era inconformado com a condição pecaminosa de seu tempo. Idolatria estatizada. Prostituição institucional. Religiosidade pervertida. Homens e mulheres faziam de seus corpos um altar aos demônios. Dentro das igrejas, uma teologia interesseira causava caos doutrinário, dissenções e abusos. O apóstolo não se calou diante de tantas atrocidades espirituais. Denunciou o pecado, recriminou o pecador e pôs o dedo nas feridas purulentas daquela geração perversa. Porém, Paulo, não se esquivou da própria culpa. Se sentia parte do pacote. Ele podia dizer ao mundo que a graça de Deus se sobrepunha a um mar de pecados, porque tinha plena consciência que também era um pecador. Um feliz beneficiário das misericórdias do Senhor. Paulo não era justiceiro. Nem promotor. E menos ainda, advogado. Ele se sentia agraciado por sua condição. E qual era?  Mais um réu absolvido pelo tribunal de amor, mediante o salvo-conduto lavrado na cruz.

A mim, que dantes fui blasfemo, e perseguidor, e injurioso; mas alcancei misericórdia, porque o fiz ignorantemente, na incredulidade. E a graça de nosso Senhor superabundou com a fé e amor que há em Jesus Cristo. Esta é uma palavra fiel, e digna de toda a aceitação, que Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal. (Timóteo 1:13-15)

Justiceiros espirituais gostam de se referenciar em Jesus. Se sentem o próprio Cristo com o chicote nas mãos, furioso com a negociata no templo. Seus discursos depreciativos simulam a autoridade do Nazareno condenando a figueira estéril. Querem agir como Jesus apenas quando lhes convém. Mas, espere... Os exemplos deixados por Jesus se resumem a chicotes e maldições? Se Cristo pensasse desta maneira, certamente a mulher adúltera teria sido apedrejada.  A samaritana nunca beberia da Água da Vida. Zaqueu ainda estaria em cima de uma árvore. Pedro seria apenas mais um grão na peneira de Satanás. E que chances teria o ladrão na cruz?

Não deixe de condenar o pecado, isto seria omissão. Não condene o pecador, isto seria requerer para si uma atribuição que só pertence a Deus. Ambos os casos, pecados gravíssimos com consequências eternas. A saída é exatamente agir como Jesus. Cristo tinha autoridade para apontar, julgar e condenar os pecados do mundo inteiro, porque estava disposto a morrer pela redenção do pecador. 

Então, JUSTICEIRO, quer realmente fazer a diferença na vida de seu irmão? Exortá-lo, redargui-lo, discipliná-lo e ter autoridade efetiva sobre o pecado alheio? Fácil. Troque o seu “chicote” por uma “cruz”. 


domingo, 26 de novembro de 2017

É melhor ser Pai do que ser Rei

 É melhor merecer honrarias e não recebê-las do que recebê-las sem merecer.
(Mark Twain)


Quando falamos das relações entre “pais e filhos”, o texto bíblico mais incisivo, conhecido e comentado é, de longe, Provérbios 22:6: “Instrui o menino no caminho em que deve andar, e mesmo quando envelhecer, não se desviará dele". Um erro comum na citação deste verso é trocar o indicativo “no” por “o”. O conselho aqui expresso não é para se indicar “o” caminho (vá por ali), mas sim ensinar “no” caminho (ande ao meu lado). O grande discipulador aqui citado não é o "vocabulário", mas sim, o próprio "exemplo".

Pais “íntegros” que almejam uma vida de integridade para seus filhos não se encaixam nos moldes mundanos do “faça o que eu digo e não o que eu faço”. Eles criam ao longo do caminho, o rastro de pegadas onde seus pequenos discípulos também porão os pés. Ou não... Salomão, ao escrever o texto supracitado sabia muito bem do que estava falando, pois viveu esta realidade dentro de sua própria família. Davi foi o maior rei da história de Israel. Fortaleceu o reino, consolidou Jerusalém e expandiu as fronteiras da nação. Porém, nos recônditos do palácio, falhou miseravelmente como pai, seja no exemplo, nas palavras ou nas atitudes.

Polígamo inveterado, colecionou esposas como se fossem mudas de roupas (Mical, Abigail, Ainoã, Eglá, Maacá, Hagite, Habital e Bete-Seba, não contando as concubinas mantidas em anonimato), sem se importar com as consequências de seus impulsos (hábito este seguido por grande parte de seus descendentes). Estes relacionamentos controversos renderam a Davi uma verdadeira horda de filhos: Amnom, Daniel, Absalão, Adonias, Sefatias, Itreão, Siméia, Sobabe, Natã, Salomão Ibar, Elisama, Elifelete, Nogá, Nefegue, Jafia, Elisama, Eliada, Tamar e outros tantos que nunca saberemos os nomes. Tamanha “diversidade” limitou a intimidade do pai com cada um deles. Foram educados magistralmente como príncipes e princesas, mas renegados como filhos e filhas, crescendo sem a imposição de limites ou parâmetros de moralidade. Enquanto isto, Davi errava ao preferir abertamente Absalão em detrimentos dos demais filhos... Ou escolhendo Salomão como herdeiro do trono por este ser filho de Bete-Seba, sua esposa mais influente.

Ausente até mesmo quando estava presente, Davi sequer percebeu a crescente tensão sexual em sua mesa de jantar, culminando no estupro de Tamar por Amnom. Ciente do acontecido, foi omisso ao não punir seu primogênito, e estúrdio ao não providenciar abrigo a princesa deflorada. Esta passividade do pai, gerou o ódio de Absalão que se encarregou de assassinar Amnom. Desta vez, Davi teve um surto de raiva contra o filho favorito, e Absalão fugiu para três anos de exílio. Neste tempo, Davi nada fez para se reconciliar com seu filho, ou amenizar os estragos familiares inerentes as sucessivas tragédias fraternais.

No retorno do pródigo, o “rei” (não o pai) recebeu o "príncipe" (não o filho) com um beijo formal destinado aos nobres, fugindo mais uma vez da responsabilidade paterna. Indignado com tamanha indiferença, Absalão promoveu uma guerra civil em Israel, e Davi se viu obrigado a fugir de Jerusalém, sendo perseguido pelo próprio filho. A maior derrota bélica sofrida pelo poderoso monarca. Se tamanho insucesso militar, já marcaria de forma vergonhosa o brilhante reinado de Davi, o estúrdio familiar seria uma ferida aberta sangrando até a morte. Neste conflito, Absalão morreu e Davi lamentou a morte do filho, amargurado por saber que já era tarde demais para reconciliações.

Antes de sua morte, Davi ainda teve que lidar com mais uma guerra nacional provocada por rupturas na família, quando seu filho Adonias usurpou o trono do pai e Davi precisou coroar Salomão às pressas para cumprir a promessa feita à Bete-Seba. Mais um trauma familiar.

Davi nos deixa valiosas lições com os seus erros, e a principal delas é que a família vem antes do reino. Uma nação que emerge de famílias fragmentadas, implodirá sobre as próprias bases. Davi era um homem elogiável, um rei austero, um músico brilhante, um adorador por excelência. Andava lado a lado com Deus e isso lhe garantiu suas grandiosas vitórias. Porém, andava distante de seus filhos, o que causou suas mais vergonhosas derrotas. Por outro lado, a conduta de Absalão é uma prova cabal que quando um filho desonra seu pai, encontra um fim precoce e vergonhoso (Êxodo 20:12 / Efésios 6:12).

Davi falhou em ser pai e isso custou sua honra. Absalão fracassou como filho e com isto perdeu a vida. E não foi para implodir em fracassos redundantes que Deus projetou carinhosamente a família, e abençoou as relações familiares. Pais e filhos se completam. Fecham um ciclo de propósitos divinamente planejados. 

O casamento modifica a rotina de uma pessoa. Novos hábitos, concessões diversas e reavaliações diárias são necessárias para tornar possível a vida conjugal. Mesmo assim, crenças, convicções e ideologias, praticamente não sofrem grandes alterações. As mudanças relevantes são meramente externas e pouco interferem no caráter do indivíduo. Mas, quando um filho nasce, acontece uma transformação que transcende a mera quebra de rotina, pois nos modifica de dentro para fora. As prioridades são invertidas, as motivações são potencializadas e experimentamos em sua essência a força de um amor incondicional. Pais tendem a morrer por seus filhos sem qualquer pré-julgamento ou análise requintada.

É exatamente por nos introduzir nesta dimensão de amor sacrifical, que o nascimento de um filho facilita nosso entendimento sobre  o caráter do próprio Deus, bem como a dimensão de seu amor pela humanidade. Ele foi capaz de sacrificar o que tinha de mais precioso por nós. 

Em seu livro “Amor de Pai”, o escritor Max Lucado argumenta que a mulher se torna mãe, antes do homem se assumir como pai. Afinal, ao longo de nove meses ela sente dentro de si as transformações inerentes à maternidade, que modificam seu corpo e sua alma, enquanto o pai assiste o processo. Por sua vez o homem vivencia a paternidade apenas quando tem seu rebento no colo pela primeira vez, e contempla embasbacado, o rostinho daquele ser do qual será protetor e provedor. Mesmo embarcando nesta viagem em momentos distintos, mãe e pai são igualitários no desenvolvimento moral, físico e espiritual de uma criança. Deveria ser.

Pelo padrão bíblico, o núcleo de uma família é essencialmente formado por pai, mãe e filhos. Nesta equação, cabe ao homem o papel de “cabeça da casa”, exercendo liderança social e espiritual junto aos seus (Efésios 5:23 / I Coríntios 11:9). Sob ele recai uma tríplice função, que em via de regra, não pode ser rejeitada, postergada ou abandonada. Rei, profeta e sacerdote. Este ministério tridimensional engloba todas as atribuições designadas pelo Criador ainda no jardim do Éden, bem como os encargos espirituais decorrentes de sua autoridade paternal (Gêneses 1:27-29; 2:15-25, 3:17-20).

Como “rei”, ele deve dominar com austeridade sobre sua casa, fazendo desta liderança o seu parâmetro para qualquer outra atividade secular que venha desenvolver (I Timóteo 3:4). Cabe ao homem arcar com sustento de seu lar, provendo alimento, moradia e vestuário, bem como alicerçar sua casa em princípios morais e estabelecer pilares emocionais em sua família. Como “profeta”, cabe ao pai ser um porta-voz de Deus para sua prole, ensinando os preceitos divinos e zelando pela Lei do Senhor. Neste aspecto, ele “literalmente” traz Deus para dentro de sua casa, tanto por meio de suas palavras (ensinamentos), quanto por suas ações (exemplos). Já no ofício sacerdotal ele faz o caminho inverso, levando sua família até Deus por meio de orações, súplicas e consagrações diárias.

A mulher por sua vez e a genitora da vida, portadora da semente divina. Desde os primeiros dias de gestação, a sintonia com seu filho já é espetacular. A criança não passa de um "feto", e mesmo assim já se aflora um amor que supera a tudo e a todos. Não importa o frio, a fome, o sono ou a dor, a mãe está integralmente presente, protegendo, acalentando e abençoando aquele ser indefeso, que ela defende com unhas e dentes. Esse amor só faz aumentar, nunca cessa e jamais lhe será tirado. Mas não para por aí... Quando analisamos o texto de Provérbios 31, nos deparamos como uma série de virtudes inerentes ao “ministério da edificação”, que no âmbito familiar, deve ser exercido pela mulher com plenitude de sabedoria. 

Obviamente, na conjuntura social em que vivemos, as funções exclusivistas destinadas a “pais” e “mães” estão intrinsecamente miscigenadas, sendo compartilhadas de forma profícua para a sustentabilidade da família. Este compartilhamento de responsabilidades, porém, não altera os valores espirituais dos ministérios familiares que devem ser preservados com zelo e honestidade, pois Deus jamais pedirá a “Sara” um sacrifício que cabe somente a “Abraão” e vice-versa. A beleza está exatamente no complemento perfeito que reside na união de forças, fator de equilíbrio na balança da vida.  E se aos pais é outorgada tamanha responsabilidade e confiada autoridade espiritual inquestionável, cabe aos filhos externar respeito, gratidão e amor, honrando e obedecendo a seus progenitores.

Dito tudo isto, Davi nos deixa uma lição de vida bem dolorosa. É difícil determinar prioridades, e quase impossível reverter as consequências de um escalonamento inconsequente. Então, seja sábio e aprenda com o erro alheio. É melhor ser PAI (MÃE) do que ser REI (RAINHA). Pode haver tempo hábil para se reconquistar um trono, mas não, para recuperar o amor de um filho que se perdeu.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Deus está destruindo a minha vida

Ama o impossível, porque é o único que te não pode decepcionar.
(Vergílio Ferreira)



- Deus... Te servir está destruindo a minha vida!

Certamente, esta declaração foi feita por um apostata, pouco antes do completo abandono da fé. Nas entrelinhas, pode ser lida a desculpa para esquivar-se da responsabilidade inerente a caminhada cristã. Mas, não. Este não é o caso. A afirmação acima, foi feita por um dos homens mais notáveis da história. Um baluarte da fé, cuja biografia é fonte de inspiração para os grandes inspiradores.

Jeremias foi levantado como profeta ainda muito jovem. Se sentia despreparado para exercer ministério tão pesaroso. Porém, sua chamada foi vaticinada pelo próprio Deus, que o revestiu de uma autoridade espiritual que ecoa até os dias de hoje. No seu tempo, porém, enfrentou uma era de apostasia e incredulidade sem precedentes em Judá, transtornando completamente sua rotina. Redarguindo a rota planejada para a vida.

Seu ministério teve início durante o reinado de Josias. O rei convocou os líderes do Reino para uma grande escola bíblica, onde foram reeducados nos princípios da lei. Depois, ordenou que Hilquias (pai de Jeremias), liderasse os sacerdotes numa limpeza generalizado do Templo. Todo vestígio de idolatria deveria ser eliminado das dependências sagradas. Jeremias foi participante fundamental deste período, já que a reforma atingiu o ápice no quarto ano de seu ministério profético. A mensagem de Jeremias se alinhavam aos ideais de Josias. Rei e profeta falavam a mesma língua. Um chamado ao arrependimento. Um grito conclamando aos judeus para quebrantarem seus corações. 

E tudo parecia estar indo muito bem. A limpeza se expandiu para os lugares de cultos e espaços públicos de Jerusalém. Porém, não atingiu os lares judaicos. Apesar da reforma religiosa, a mentalidade de Judá não mudou. Deus continuava renegado a uma posição secundaria. Eles se preocupavam com suas relações políticas e pessoais, se esquecendo de voltar os corações ao Senhor. Exatamente por isso, o ministério de Jeremias de tornou pesado demais, e suas palavras ganharam um sabor peculiar, semelhante a salada de boldo temperada com benzoato de denatônio. Amargor. 

E tinha que ser...

Quando Deus convocou Jeremias ao ministério profético, deixou claro seu desapontamento com a nação, que abria mão de beber água na fonte, e buscava matar a sede em cisternas rotas, que se secam com facilidade (Jeremias 2:3). As palavras de Jeremias eram pesadas e contradiziam as mensagens proféticas de seu tempo. Diversos profetas se amontavam no templo e no palácio, profetizando prosperidade e vitória sobre os inimigos. Jeremias, porém, conclamava o povo a se arrepender enquanto ainda havia tempo, pois em poucos anos, o Reino de Judá seria derrotado pelos caldeus.

Tudo ficaria muito mais difícil para Jeremias após a morte do Josias. Por apenas três meses, Jeoacaz foi o governante de Judá, que por se negar a pagar tributos ao Egito, acabou deposto do trono pelo faraó Neco e levado cativo ao Egito. Em seu lugar, Jeioaquim, um homem arrogante e vil, foi declarado rei. Neste período, a mensagem indigesta de Jeremias ficou ainda mais densa. Ele profetizou o exílio perpétuo de Jeoacaz, denunciando os crimes morais e espirituais do novo monarca. Anunciou a proximidade da ruína de Judá e a ascensão da Babilônia, que até aqueles dias, não era um reino tão poderoso assim.

Imediatamente, as classes dominantes de Judá, repudiaram sua mensagem pessimista, e se empenharam em desmerecer as palavras do profeta. Neste intento, o ridicularizavam constantemente diante da população. Jeremias estava galgando a escadaria da impopularidade. Sua mensagem não era de fácil aceitação, e contrariava as perspectivas nacionais. Mesmo assim, o profeta foi insistente em suas palavras. Acreditava piamente que seus compatriotas, voltariam atrás quanto ao frio julgamento destinado a suas mensagens, e reatariam sua comunhão com Deus. Não foi o que aconteceu. Com o tempo se esgotando, e a inércia espiritual do povo cada vez mais acentuada, Jeremias se viu confrontado por muitos dilemas e complexos interiores.

Obviamente, no momento em que foi chamado para profetizar, Deus o blindou espiritualmente contra as potenciais ameaças que o afligirão no exercício de seu ministério. Entretanto, Deus jamais deixará seus profetas insensíveis e intangíveis aos relacionamentos humanos. Deus não amortiza nossas emoções. Elas são fundamentais na forja do caráter. É preciso dominá-las através da frutificação espiritual. E esta era uma batalha diária do profeta. Dominar seus próprios sentimentos.

Jeremias enfrentou pelo menos duas crises emocionais de grande proporção. A primeira delas teve como estopim a descoberta de um plano para retirar sua vida. O próprio Deus alertou ao profeta que os moradores de Anatote haviam premeditado seu assassinato. Aquela era a cidade natal de Jeremias, onde ele cresceu conhecendo cada morador. Agora, as mesmas pessoas que o viram nascer, desejavam desesperadamente matá-lo. E mais do que isso, apagar seu nome da história. Em suas reuniões secretas, eles confabulavam a nefasta intenção:  

Destruamos a árvore e a sua seiva, vamos cortá-lo da terra dos viventes para que o seu nome não seja mais lembrado (Jeremias. 11:19).

Jeremias, então, se pôs a questionar sobre o sucesso que os ímpios encontravam em seu caminho, enquanto homens bons e decentes, só achavam tristeza e decepção. Ele cogitava a possibilidade de não ter condições para continuar sua jornada. O que não sabia, era que aquele seria apenas o primeiro obstáculo de seu ministério. E Deus o encorajou a ser forte, e não se abalar com os percalços do caminho:

- "Se você correr com homens e se sentir cansado, como poderá competir com cavalos? Se você tropeçar em terreno seguro, como poderá caminhar nos matagais junto ao Jordão?" (Jeremias 12:5).

A segunda crise emerge de inúmeros fatores. Jeremias não era convidado para nenhuma festa, não participava de eventos sociais, e se quer, podia tomar parte de jantares em família. Em seu entendimento, ele não era “amado” por ninguém, e todos os moradores de Judá o “amaldiçoavam”. Sacerdote de ofício, Jeremias foi proibido de entrar no Templo, e não tinha permissão para falar em espaços públicos. Seu ministério se tornou marginalizado e muito perigoso. Tudo o que lhe era amado, também lhe fora negado.

Confuso, emocionalmente ferido, espiritualmente abalado e socialmente rejeitado, Jeremias questionou ao Senhor quanto a legitimidade da mensagem que lhe foi confiada. E foi além.  Acusou a Deus de omissão. O Senhor o tinha jogado aos leões, e na cova, o deixado sozinho e cercado de feras.

"Jamais me sentei na companhia dos que se divertem, nunca festejei com eles. Sentei-me sozinho, porque a tua mão estava sobre mim e me encheste de indignação" (Jeremias 15:17).

Decepção. Desonra. Sentimento de fracasso. O profeta foi mortalmente atingido pela solitude, e se entregou a auto- comiseração. Sua família o tinha desprezado, e Deus o tinha proibido de formar uma nova família. Jeremias não poderia se casar, pois a ausência de filhos em sua linhagem, era uma mensagem prática que apontava para as crianças que deixariam de nascer em Judá, quando o povo fosse levado ao exílio.  Ele não tinha uma mão amiga para segurar em seus momentos de fragilidade emocional, e isto o fazia se vitimar nos períodos de oração.

Porém, o Senhor, ciente do potencial de Jeremias, cobrou de seu profeta uma postura austera e corajosa, além do reconhecimento de seus excessos emocionais. Deus queria que o profeta aprendesse a dominar os sentimentos. Menos medo e mais confiança.

Se você se arrepender, eu o restaurarei para que possa me servir; se você disser palavras de valor, e não indignas, será o meu porta-voz. Deixe este povo voltar-se para você, mas não se volte para eles. (Jeremia 15:19)

Deus pede que sejamos fortes em tempos de fraqueza. Confiantes durante as incertezas. O Senhor requer postura, mesmo que tudo a volta sucumba ao caos. Quando tudo parecer perdido, é preciso trazer a memória aquilo que nos traz esperanças. E Jeremias tinha do que se lembrar...

Ao longo de seu ministério, Jeremias teve muitas visões apoteóticas.  E talvez, a que tenha maior significado, seja também a mais singela. Assim que foi chamado por Deus, Jeremias se sentiu inapto a exercer tamanho ministério, pois se julgava “jovem demais”. O Senhor o tinha estabelecido como “Cidade Forte”, “Coluna de Ferro” e “Muro de Bronze”, contra toda a terra, contra os reis de Judá, contra os príncipes e contra os sacerdotes. Basicamente, suas palavras afrontariam os políticos e os religiosos do Reino. Seria necessária uma coragem sem precedentes, e o preço pago por um homem corajoso, é sempre alto demais.

Jeremias estava apavorado. Teria ele condições de exercer um ministério tão grandioso? Deus, então, lhe mostrou uma vara de amendoeira:

- O que você está vendo Jeremias?

A amendoeira era a primeira árvore a florescer na primavera, e marcava o início de um novo ciclo. As flores da amendoeira também adornavam o candelabro no templo, símbolo da iluminação espiritual produzida pela obediência aos mandamentos divinos. Para alguém criado numa família sacerdotal, a visão da vara de amendoeira tinha imenso significado. Foi através da frutificação de uma vara de amendoeira sequíssima, que o sacerdócio a Arão foi validado.

- Eu vejo uma vara de amendoeira, Senhor? – Respondeu Jeremias

- Exatamente. Apenas se preocupe em transmitir a mensagem que estou te entregando.... Pelas minhas palavras, velo eu!

Desta maneira, o Senhor garantiu ao profeta que seu ministério seria confirmado pela fidelidade do próprio Deus (Jeremias 11:12). Isto, obviamente, não garantiria facilidades ministeriais. Muito pelo contrário. Ser obediente a vontade de Deus significa se opor aos desejos do mundo. É estar no centro de uma guerra cerrada, avançando constantemente na direção do inimigo, sem a possibilidade de voltar as trincheiras aliadas. Os ferimentos são inevitáveis, mas a sobrevivência está garantida.

A Bíblia não esconde as debilidades de seus heróis, o que nos permite maior identificação com seus personagens. Somos como eles. Sim, temos falhas e cometemos erros gritantes. E mesmo assim, o Senhor continua investindo em nossas vidas.  

O texto autobiográfico de Jeremias, deixa explícita a passionalidade do profeta, externada em todas as facetas de seu "ser". Em decorrência desta “entrega”, ele cultivou um dos relacionamentos mais profundos entre homem e Deus já registrado na história. Ciente de sua fidelidade ministerial, também se sentia confortável para se dirigir ao Senhor despido de formalidades, e dialogar de forma franca. E é em um deste momentos de desabafo, que Jeremias reverberou a plenos pulmões a afirmação que nos deixa estonteados. Afinal de contas, como um profeta tem a ousadia de vociferar blasfêmias contra Deus, e culpar ao Senhor pelo fracasso pessoal?  - Deus, te servir está destruindo a minha vida! Sim, Jeremias estava furioso com o Senhor, assim como secretamente ficamos também.

- Senhor, tu me enganaste, e eu fui enganado; foste mais forte do que eu e prevaleceste. Sou ridicularizado o dia inteiro; todos zombam de mim. Sempre que falo, é para gritar que há violência e destruição. Por isso a palavra do Senhor trouxe-me insulto e censura o tempo todo.  (Jeremias 20:7-8) 

Não se recrimine por este sentimento. Não entender Deus é apenas a ponta do iceberg. Por vezes, sentimos verdadeira aversão. Se não por Ele, pelas suas atitudes. Deus tem uma metodologia de trabalho que chega a flertar com o ofensivo. Pelo menos, sob a perspectiva do falho senso de justiça que varia de acordo com nossos interesses... As palavras que tinha confiado a Jeremias, caiam por terra uma a uma, deixando o profeta exposto ao vitupério público. Falar a verdade o estava condenando a uma prisão sem grades (ou com grades, dependendo da ocorrência). Andar com Deus o afastava das pessoas e lhe privava de carinhos. E isto te parece justo? Para Jeremias, nunca pareceu. E ele questionou exatamente quem tinha as respostas.

Este é o segredo...

O problema da cristandade moderna é chorar no ombro errado. Fazemos das redes sociais nosso confessionário. Reclamamos de tudo com todos. E, simplesmente, esquecemos de nos derramar aos pés do Senhor. Contar para Ele os segredos. Encontrar na fonte a água que mata a sede causada pela ansiedade. O vaso se quebrando  na mão do oleiro, para finalmente ser restaurado.

Para cada dúvida existente em nosso coração, existe uma vara de amendoeira diante de nossos olhos, mesmo que estejamos cegos à visão. Ela está lá, florida, independente de nossas tristezas, lamúrias e depressões. Para cada gemido da alma, existe uma resposta ecoando pela eternidade. Voz de trovão que não se cansa de dizer: - Apenas se preocupe em transmitir a mensagem que estou te entregando.... Pelas minhas palavras, velo eu! E, então, cabe somente a mim (e a você), decidir qual voz vai falar mais alto. O lamurioso ganido da efêmera frustração humana ou o triunfante brado eternal do Todo Poderoso. Questione, mas não duvide! Se não for possível entender, apenas acredite.

Jeremias fez a sua escolha, por mais elevado que fosse o custo pessoal. Sentindo o gosto da morte, ele se fartou nas fontes que jorram águas de vida. E ao fim de tudo, suas palavras tão desacreditadas, se tornaram testemunhos perpétuos da história. Nenhuma vírgula fora do lugar. O propósito suplantando a dor: - O Senhor fez o que planejou; cumpriu a sua palavra, que há muito tinha decretado. (Lamentações 2:17)


sábado, 18 de novembro de 2017

Como está o tempero?

Você não conhece uma pessoa enquanto não tiver 
comido com ele um pacote inteiro de sal
(Provérbio Russo)


O sal é maravilhoso. Encontrado em praticamente todas as cozinhas do planeta, ele nada mais é que cristais formados por sódio e cloro, deixados na areia quando a água do mar evapora. Mais de três por cento de nossos oceanos são compostos por sal. E não para por aí. No organismo humano, o sal é responsável por regular a quantidade de líquidos que devem ficar dentro (e fora) das células. Uma atribuição vital. Na dosagem correta, o sal é um grande aliado na boa digestão. Para quem gosta de praticar atividades físicas, a ingestão moderada de sal, ajuda na reposição do sódio perdido na transpiração, mantendo um equilíbrio saudável de água e nutrientes no organismo. Como já ponderou o pensador libanês Khalil Gibran, “deve existir algo estranhamente sagrado no sal, já que ele é abundante no mar, e está presente em nossas lágrimas também”.

Mas, não se empolgue na salinidade. O sal é uma faca de dois gumes. Se almoçar um prato insosso é desagradável, jantar um escondidinho salgado pode ser uma experiência ainda pior. A palavra chave para o uso inteligente do sal é exatamente “equilíbrio”. A ausência, fragiliza. O excesso, mata.

Não foi por acaso, que Jesus usou esta metáfora, para elucidar aos seus discípulos, sobre nosso papel como agentes influenciadores no mundo:

- Vocês são o sal da terra. Mas se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens. (Mateus 5:13)

Que responsabilidade a nossa. O mundo perdeu o sabor. Tudo é insípido. Cores artificiais. Monumentos de papelão. Desde o Éden, pouco a pouco, a humanidade tem perdido o seu paladar espiritual, num fenômeno crescente chamado “apostasia”. É exatamente por causa desta tendência mundana, que Jesus se mostrou apreensivo com o futuro: - Quando o Filho do homem vier, encontrará fé na terra? " (Lucas 18:8).

A Igreja de Cristo (não a sua denominação, e muito menos a minha), é o antídoto aplicado por Deus neste planeta, afim de protegê-lo do completo caos. Somos o sal, fazendo a diferença num mundo indiferente, trazendo equilíbrio a um corpo desequilibrado, e a beira do colapso total. Sal na medida certa, evitando que a carne apodreça. Agindo sobre o gelo, para que ele derreta antes da hipotermia. Numa época onde o paladar humano está averso ao banquete celestial, temos a árdua tarefa de trazer sabor a uma geração insossa, que se autodenomina “quente”, mas que na verdade é morna. Apática.

Jesus foi categórico no recado. É preciso ter muita cautela para não se conformar com o contexto profano no qual estamos inseridos. – Não percam o sabor! Tire o salgado do sal, e contabilize o prejuízo. Para que ele serviria? Quem se interessaria por ele? Cristo assegurou que o sal sem sabor, nada mais é que pedras calçando a estrada. Só serve para ser pisado. Conteúdo destinado ao lixo.

Infelizmente, parte dos cristãos não entendem o conceito de equilíbrio. Não conseguem se enquadrar numa dosagem correta. Enquanto muitos temperam sua vida com a mesma quantidade de sal prescrita nas receitas de uma sopa hospitalar, outros tantos nadam de braçada nas águas insalubres do Mar Morto. Ambos estão fora de contexto. O insosso perdeu a essência. O salgado não entendeu o propósito. E parafraseando o pensamento cirúrgico de Cristo, “para que ambos servem”?

Se a ausência de sabor é um sintoma inegável de esfriamento espiritual letárgico, o excesso de sal não indica hiper espiritualidade. Ser salgado não é ser santo. Os extremos são sempre perigosos. Se a presença de Deus é um oceano, uma imensidão de águas contendo baixíssimas porcentagens de sal, que sentido existe numa vida mais salgada que um pudim a base de cloreto de sódio? Cadê o domínio próprio? Onde fica a frutificação espiritual?

A salinidade da vida cristã também é um sintoma. Um alerta aos excessos. Ao achismo. Ao egocentrismo. Gente que se acha demais. Se sente demais. Santidade autodeclarada. Independência proclamada. Autossuficiência assumida. Homens e mulheres que se julgam tão cheios de Deus, que acabam corroídos por este sentimento de superioridade. A salinidade excessiva acelera a oxidação. A ferragem espiritual nos torna insensíveis. Ninguém mais importa. Nenhum professor é bom o suficiente para ensinar algo que já não se saiba. E esta sensação de estar com vida zerada é tão perniciosa quanto uma vida vazia de Deus.

Quem muito retem e nada libera, mata de sede as pessoas que o cerca, e morre vítima de overdose por sal. Afogado em pretensões. Não podemos simplesmente assentar sobre a barragem, sem se quer, molhar os pés na represa. Porém, não é sábio mergulhar em águas represadas. É preciso deixar o fluxo seguir.

A vida dentro do Mar Morto é inviável. Seu nome extravagante se dá exatamente porque nada sobrevive muito tempo ali. Isso acontece em decorrência do grande teor de sal em suas águas, e este fenômeno, tem uma explicação muito interessante.

O Mar Morto recebe águas cheias de vida, sendo que até mesmo o famoso Rio Jordão deságua nele. Porém, quando estas mesmas águas adentram o mar, a vida é sumariamente inutilizada. O problema, é que embora receba muito, o Mar Morto não reparte o que tem. Uma vez nele, a única saída possível de águas e pela evaporação, e com isso, o sal se acumula em sua bacia, elevando o nível salino absurdamente. Nenhum peixe consegue sobreviver.

Assim também somos nós. Recebemos de Deus toda sorte de bênçãos, revelações e muito amor, mas, se não dermos vazão a este manancial do Senhor, nos tornamos mesquinhos como o Mar Morto, retendo o que é bom, e sufocando tudo a nossa volta com o sal acumulado, que se manifesta em críticas maliciosas, julgamentos unilaterais e muita autoafirmação hedonista. Quem vive apenas para si, tende a matar quem se aproxima dele, e com isso, acaba morrendo na solidão.

A nobreza do ser humano não é medida pela quantidade de pessoas que o servem, mas sim na qualidade das pessoas que ele consegue servir. O Salmo 134:1 identifica o caráter dos homens que Deus procura:  - Bendize ao Senhor vós todos os seus “servos”, louvai o nome do Senhor. Entrega. Serviço. Generosidade. Em vez de sermos salgados por retermos de forma egoísta o que recebemos, que sejamos servos generosos para com o Senhor e aos homens, pois caso contrário podemos sucumbir ao saturamento, e inibir que novas bênçãos nos alcancem.  

Saber dosar. Salgar sem agredir. Temperar sem errar a mão. Repartir com liberalidade ás águas que fluem do Espírito, formando uma fonte em nosso interior.

Fonte, não lago.
Jorrar, não reter.

Quem reprime para si toda a abundância que recebe, se afoga em águas que deveriam salvar. A salmoura se torna amarga. Gosto de morte. Hipertensão na alma. Envelhecimento espiritual. Pedras no coração. Descontrole. O excesso de sal matando a doçura dos frutos.

Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio. (Gálatas 5:22-23)

Quer um exemplo de sal ministrado com exatidão? Leia os evangelhos. A mesma mão que empunhava um chicote contra os agiotas da fé no templo, acarinhava com ternura os cabelos de uma criancinha. A mesma voz que bradava vigorosa contra o pecado, gentilmente oferecia perdão e paz ao pecador. Tudo na dose exata.

Mateus 5 é um texto memorável. Uma cartilha de aprendizado para todos aqueles que querem fazer a diferença no mundo. A abolição da justiça própria.  A negação dos desejos. A pratica da generosidade para com os inimigos. A bandeira do amor ao próximo tremulando sobre as instituições. Jesus apontava para seus discípulos um caminho novo e muito difícil de trilhar. Poucos estavam dispostos. Muita resignação. Sacrifícios diários. Quebra de paradigmas. Mudança de pensamento.

O mundo não era assim. E continua não sendo. É neste cenário (atual nos dias de hoje como foram nos dias de Jesus) que o Mestre nos incumbe de fazer a diferença. Inspirar a mudança. Alavancar a transformação.  - Vocês são o sal dando sabor a um mundo sem gosto. São luz num ambiente de escuridão.

Sozinho, o sal não sustenta ninguém, e sequer, pode matar a fome de uma pessoa. Ele apenas ressalta o que outros alimentos têm a oferecer. Então, que sejamos o “sal” presente no “Pão da Vida”, assado lentamente na cruz e servido aos homens. Este sim, capaz de matar a fome da alma. Que sejamos o sal presente no oceano da graça, capaz de matar a sede espiritual da humanidade. Nossa maior virtude é se manter em Cristo. Permanecer em Deus. Fora dele, só nos resta se fundir ao solo, e ali, desaparecer.

Então, apareça. Seja o sal. Seja a luz. Seja o ponto de equilíbrio de uma sociedade caótica que caminha embriagada sobre cordas bambas. E, em todo tempo, também se mantenha equilibrado. Sóbrio. Mãos firmes durante a dosagem. Que através de você (que é “sal”), o paladar da humanidade se apure, e sinta o gosto adocicado da salvação.




quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Areia, Marreta e Bigorna

A provação vem, não só para testar o nosso valor, mas para aumentá-lo. 
O carvalho não é apenas testado, mas enrijecido pelas tempestades.
(Lettie Cowman)


Porque Deus (o meu Deus) permite que todos a minha volta prosperem (bons e maus), enquanto eu (dedicado e fiel), padeço de escassez? 

Se você já se viu às voltas com este tipo de indagação, saiba que não está sozinho. Patriarcas, profetas e salmista se debruçaram sobre esta questão. Aliás, no Velho Testamento, uma nação inteira fez em uníssono a mesma pergunta para Deus. E o Senhor (ao seu tempo) nunca se esquivou da redarguição. Sua voz retumbante sempre bradou reveladora. Ainda brada.

E quando a “tardia” resposta surge como um raio cortando o céu enegrecido, em nada satisfaz nosso ego. A grande verdade, é que a prioridade de Deus não é trabalhar “por você”. Até, porque, qual seria o desafio? Num único dia, o Senhor pode levar um prisioneiro hebreu esquecido numa masmorra egípcia ao posto de governador do maior império de seu tempo. Situações insolúveis simplesmente se dissolvem perante a divina vontade.

Então, Deus ocupa seu tempo com um desafio bem mais interessante (pelo menos na perspectiva eterna). Deus trabalha “em” nós. Nos molda, esculpe e lapida, sem que para isto, rompa com o direito do livre arbítrio reservado ao homem. E para nós, o processo é longo. 

Estamos em constante aprimoramento. Uma busca diária pela perfeição num mundo de imperfeições. A vantagem de tudo isto? Sempre há o que melhorar. E Deus sabe bem disso. Ele nos incentiva nesta jornada. Tem seus métodos peculiares para nos incentivar, treinar e diplomar. E todos somos alunos. Aqui só existe espaço para um professor.

Mesmo vivendo em fidelidade ao Senhor e compromissado com a obra do Pai, por vezes recebemos de Deus apenas negativas ao nosso clamor e fracassos em projetos que tinham tudo para dar certo. E nessas horas, somos abarrotados por um sentimento de injustiça que nos leva a crer que o grande “Eu Sou”, está cometendo um grave erro. Nos sentimos “vitimas” da arrogância divina. Marionetes do Todo Poderoso.

Se o Pai é dono do ouro e da prata, porque meu nome está no SPC?

Se Cristo é o Médico dos médicos, porque me permite ser devorado pelo câncer?

Se Deus é o autor da família, porque meus filhos estão nas drogas?

Onde está o “Dono do Amor”, quando criancinhas são incendiadas no Jardim da Infância? 

Onde esta o Deus bondoso, quando milhares de inocentes são dizimadas pelos bombardeios na Síria?

Se Deus é bom, porque o mal impera?

Se minha vida está nas mãos de um Deus amoroso e benigno, porque tantas atrocidades marcam a minha história?

Porquês e porquês...  

Penso que a resposta para tantos questionamentos que temos incubados no coração (já que na maioria das vezes falta coragem para exteriorizar), passe pela leitura de Deuteronômio 8:2-3:

“E te lembrarás de todo o caminho, pelo qual o Senhor teu Deus te guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar, e te provar, para saber o que estava no teu coração, se guardarias os teus mandamentos, ou não. E te humilhou, e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não conheceste, nem teus pais o conheceram; para te dar a entender que o homem não viverá só de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor viverá o homem". 

Está foi a resposta de Deus ao clamor dos israelitas, que por anos a fio, rodaram em círculos pelo deserto. Eles queriam saber o porquê, assim como também o queremos ainda hoje. E se a dúvida desagrada, a certeza pode desagradar ainda mais. Não gostamos de entender como Deus pensa.

Privação. Humilhação. Fome. Escassez. Deserto. Provação. Quem diria que tantas mazelas, são apenas disciplinas de um curriculum escolar elaborado pelo próprio Deus. O Criador trabalhando em nós. Testando o que temos escondido dentro do coração. Somos bons em esconder coisas (ações e sentimentos), e Deus é ótimo em traze-las a evidência. E quanto mais abscôndito está o verdadeiro “eu”, mais intensa é a escavação espiritual.

Em regra geral, o homem (humanidade) só revela quem realmente é, quando se encontra em situações extremadas. Muita riqueza. Muita pobreza. Honra. Desprezo.  É exatamente por isto que, por vezes, Deus nos leva ao limite (seja ele qual for), para que o coração se descortine e revele sua verdade mais oculta. O Senhor almeja que tenhamos um entendimento pleno de quem realmente somos (sim, poucas são as pessoas que se conhecem de verdade), então nossa fidelidade, obediência e devoção são provados com rigor. E Deus entende que nos colocar em situações de calamidades, é o mais eficiente teste para a fé. Um alvará para bênçãos futuras.

É neste ponto, que nos deparamos com os questionamos do início deste texto. Não entendemos o método, mesmo que os resultados saltem aos olhos de outras pessoas. Ele (Deus) nos humilha, nos priva de conforto, dificulta nossa jornada e (por vezes), permite que tenhamos encontros desagradáveis com Satanás (isto mesmo, como já dizia Martin Lutero, “o diabo é o diabo de Deus).  E o cenário escolhido para esta aventura não é aleatório. O deserto. É ali que entendemos que existem coisas mais saborosas que pão, e que o Senhor sempre proverá subsídios para os que lhe são fiéis, mesmo que neste processo falte abundância.

O deserto não tem como “propósito” te ensinar a “derrotar o diabo”, e nem te fazer um “super-crente”. Somos levadas as areias insólitas para ali, aprender a confiar e se submeter a Deus. Se a lição for bem aprendida, nos fortalecemos espiritualmente, e o diabo foge. A sensação de dever cumprido faz cada ferimento valer a pena. E não se iluda com promessas de facilidades.... Serão muitos... O teste é duríssimo. Precisa ser. Ele valida todo o bem que virá pela frente.

O beneplácito do Senhor não nos acrescenta dor, e de modo algum pode cooperar para o corrompimento espiritual de alguém. Isso implica em dizer que Deus só dá bênçãos para quem tem o coração preparado para recebê-las.  E é nas aflições que nosso coração é testado por Deus. Fiel no pouco, fiel no muito. Quer receber bênçãos do Senhor? Comece preparando seu coração para a prova. E se existe um campo de treinamento melhor que o deserto, eu desconheço.

Por sua eficiência didática, o deserto é inevitável para todos nós. Podemos dizer que existem apenas três tipos de crentes: (1) os que já passaram pelo deserto, (2) os que estão passando e (3) os que ainda passarão por ele. Mas, não se exaspere com esta dura verdade. É no deserto que aprendemos conceitos valiosos sobre a fé cristã. O deserto não acontece por acidente, Ele está previsto na agenda de Deus. Faz parte do cronograma divino para nossas vidas. 

Ele é uma gigantesca ferramenta motivacional, já que quando nos vemos frente à frente com o temível mar de areia, a única opção é enfrentá-lo. E neste confrontamento apoteótico, aprendemos a depender e confiar exclusivamente no Senhor. Exatamente por isso, de tempos em tempos, é o próprio Deus quem nos conduz ao deserto, a escola de ensino superior do Espírito Santo, onde Deus treina e capacita seus melhores soldados. Com pós-graduações regulares.

O deserto te molda, e você sai dele um cristão melhorado, autêntico e genuíno. O orgulho, a vaidade e o egoísmo viram cinzas no calor das areias. No deserto somos lentamente lapidados, purificados e preparados. Assados em fogo brando. Sem pressa... No tempo perfeito do Senhor. E neste ínterim, aprendemos a não titubear em dois pensamentos. Abraçamos definitivamente uma das opções. Sim, sim. Não, não. Ou somos sustentados por Deus ou então morremos de fome. Sua fonte pode estar completamente seca, mas, as de Deus estarão sempre jorrando. Suas provisões podem ter chegado ao fim, mas, o provedor continua cuidando de você a cada instante. Deus jamais nos levará ao deserto ao bel prazer. Deserto é aprendizado para algo grande dentro do Reino.

Deus não fabrica super-crentes industrializados. Pelo contrário, seu processo é rústico e artesanal, à base de fogo, marreta e bigorna. Somos aquecidos ao limite no fogo, postos sobre a bigorna e moldados na marretada. E isso dói demais, porém o resultado é grandioso.

Então, quando for enviado ao deserto, vá SORRINDO! Deserto é lugar de milagres, onde o poder de Deus se aperfeiçoa em nossas fraquezas e limitações. Na escola de Deus só entram os melhores alunos. Se Ele te matriculou nela, sinta-se honrado. Estude muito, seja disciplinado, supere-se em cada avaliação e seja aprovado com louvor.



Este texto é inspirado em uma ministração realizada pelo meu pai, Pr. Wilson Gomes