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domingo, 24 de setembro de 2017

Um morto ainda pode cantar?

Louvar é o crente se encantar com a beleza do caráter de Deus.
(C.S. Lewis)


- Qual o seu artista gospel favorito? Se esta pergunta fosse feita aos moradores de Israel durante os reinados de Davi e Salomão, o nome de Hemã certamente estaria entre os três primeiros colocados. E com todo merecimento. Ele era o mais talentoso cimbaleiro do reino. Seus dedos ágeis transformavam qualquer címbalo num manancial de paz. Ao lado de Asafe e Etã, Hemã foi escolhido pelo próprio Davi, para ministrar o louvor no santuário. Hamã seria o que chamamos hoje de “popstar”. Tinha tudo para se sentir “acima da média”. Sobrava-lhe talento, e sua genética era invejável.

Ele era da linhagem levítica, pertencente ao clã dos coatitas. Filho de Joel, Hemã era neto de Samuel, o último juiz da nação, profeta reconhecido em todo reino e sacerdote responsável por ungir os primeiros reis de Israel. Dizem que a genética pula uma geração, e neste caso, pode mesmo ser verdade. Hamã foi chamado de profeta, assim como seu avô. Sua família, aliás, era abençoada. Quatorze filhos e três filhas. Todos, cantores e cantoras do Santuário. Musicistas talentosos e devotados. Foi Hamã o responsável pelo cortejo que trouxe a Arca da Aliança de volta a Jerusalém. Antes dele, o caminho havia sido marcado por erros e mortes. Sob sua orientação, a jornada se deu em paz, celebração e vida.

Nada disto lhe subiu à cabeça ou corrompeu sua humildade. Hemã entendia que seu ministério levítico era serviçal, e alegremente, se devotava ao serviço. Quando o rei lhe enviou para Gibeon, longe dos holofotes da capital, ele foi de bom grado. Não se preocupou com Asafe e Etã se mantendo em popularidade, enquanto ele era mantido em segundo plano. Sua honra era servir. Sua motivação sempre foi louvar à Deus. O nome que lhe foi dado, refletia seu caráter. Hemã significa “fiel”, e aquele, sem dúvidas, era um homem cuja fidelidade ao Senhor (e ao reino), ninguém ousaria questionar.

E foi exatamente este homem virtuoso, aparentemente invulnerável, que compôs o lamurioso Salmo 88. Se bem, que no cabeçalho destes versos, poderia muito bem constar o meu nome. Ou quem sabe, o seu.

Hamã era determinado, mas também sentia medos. Sua dedicação ao Senhor, atraia sobre ele olhares perniciosos e palavras maledicentes. Hemã se regozijava em Deus, porém, por vezes, se sentia fragilizado pelas ações humanas. Pontos de fraqueza num lençol branco de coragem. Parágrafos de dúvidas num texto sobre confiança. Um passo atrás enquanto se caminha para ao alvo. Dias ruins não são seletivos. Eles estão por aí, batendo na porta de salmistas, blogueiros e leitores. Todos estamos a sua mercê. E é apenas uma questão de tempo, até que o céu azul se converta num breu espesso e viscoso, capaz de amargar o ar que respiramos, ao ponto do amargor ser sentido na ponta da língua. E então, dias se tornam semanas. As semanas são engolidas pelos meses. Anos a fio. E Deus parece indiferente ao nosso sofrimento. Surdo ao nosso clamor. Impotente. E quando isto acontece, a vida deixa de fazer sentido. Morremos de dentro para fora.

O tempo se arrasta lentamente. A alma está cansada de vivenciar tantas maldades.  A vida se equilibra com dificuldades numa linha de nylon. No cemitério da existência, já é possível enxergar uma cova aberta, e na lápide, o mesmo nome que consta na RG que está no bolso. O futuro só reserva esquecimento. O fundo do poço é a porta de entrada para um abismo ainda mais obscuro. A gigantesca onda de fúria que açoita o pequeno barco, é apenas o recuo do mar anunciando a verdadeira tragédia. Solidão. Abandono. Desprezo. Os amigos estão longe e os inimigos se agrupam ao redor. Celas de prisão das quais não se pode fugir. E neste ponto, o maior desejo é que os olhos se tornem cegos, afim de não enxergar o rosto tenebroso da morte, fitando sua vítima com sádica alegria.

Antes que você me envie um WhatsApp com o contato do “Amigos da Vida”, quero deixar bem claro, que o parágrafo acima foi escrito por Hemã. Ele mesmo. O talentoso artista. O dedicado servo. O profeta. O levita. O homem temente e fiel. Algumas palavras estão diferentes. Uma ou outra licença poética pode ter sido tomada. Mas, nada altera a essência. Este era o cenário que contextualizava o poeta. Ele se sentia morto. Esquecido por todos. Abandonado. Abraçado por trevas. Nada somado a coisa alguma. Não sei exatamente a causa deste estado emocional, mas compreendo sua extensão. Todos temos fases enegrecidas. Causas não resolvidas. Respostas difíceis de se encontrar. Vivos caminhando para a sepultura. Mortos que relutam em sucumbir.

Um grande homem de Deus não é a prova de tristezas. Pensar no Reino dos Céus e na sua justiça, não é garantia que pensamentos soturnos deixem de pairar sob nossas mentes. Martin Lutero disse certa vez, que seria impossível proibir os pássaros de voarem sobre sua cabeça. Todos temos fraquezas. Anseios. Promessas sem o visto do check-list. E nestas horas, um pássaro melindroso, pousa e faz seu ninho. A dúvida engole a certeza. O medo soterra a confiança. A ansiedade anula as promessas. Hamã, não é uma exceção a esta regra. Mas, em meio as suas indagações, um ponto de luz piscou pálido na escuridão. Esperança. Um fio de esperança é o suficiente para não perder a fé. Um fragmento de fé é tudo que precisamos para viver um pequeno milagre. Um pequeno milagre é suficiente para transformar o mundo. Grandes incêndios começam com uma única faísca.

Hamã se sente morto. Tem dúvidas. E ele conhece o autor da vida. Sabe de onde provem as respostas. Então, emerge sua cabeça deste mar lamacento e pútrido, usa o fôlego que ainda lhe resta, e faz as perguntas que realmente precisam de respostas:

- Deus! Um morto ainda pode ver sua glória?

- Deus! Um cadáver pode se levantar e cantar?

- Deus! Tua bondade alcança o fundo de uma cova?

- Deus! Tua fidelidade é válida nos abismos?

- Deus! Por acaso tuas maravilhas se manifestam em meio as trevas?

- Deus! Tua justiça é feita na terra dos esquecidos?

Salmo 88. Poderia ter sido escrito por mim. Poderia ter sido escrito por você. Perguntas que todos fazemos. Respostas que todos buscamos. Ricos e pobres. Nobres e plebeus. Famosos e anônimos. Hamã´s e Miquéias. João´s, Pedro´s e Maria´s... Nossos gritos ecoam alto, e reverberam pelas paredes do poço no qual estamos nos afogando. O burburinho violento da água nos ouvidos. O eco de nossas desesperanças. O volume da angústia é mantido no máximo. E por vezes, se quer conseguimos ouvir as respostas que o lufar silencioso do vento traz. Uma mensagem diretamente do trono de Deus. 

Imagino que ao ouvir estas indagações, um meio sorriso se forma no rosto de Deus. Aqueles que se revelam no cantinho dos lábios. Não um riso de sarcasmo, mas, de compaixão. A complexidade empregada na pergunta, em nada condiz com a simplicidade da resposta.

Meu filho Nicolas, tem alergia a picada de insetos. Quando tinha uns três anos de idade, uma formiga picou a sola de seu pezinho. O inchaço foi quase imediato. O pé se transformou num pãozinho de morango brilhante. Quando cheguei do trabalho, ele estava aos prantos. Entre um soluço e outro, me fez a pergunta que angustiava seu coraçãozinho: - Pai, eu ainda vou poder andar? Neste momento, meu rosto emitiu um sorriso. Aquele que se revela no cantinho dos lábios. Não um riso de sarcasmo, mas, de compaixão. Eu sabia que o problema era infinitamente menor que a preocupação por ele gerada. E a resposta para aquele dilema assolador, se resumia numa única palavra. Absolutamente simples. – SIM!

Quando Hemã expõem ao Senhor o seu complexo dilema sobre a vida e a morte, Deus já tinha a resposta na ponta da língua. O Altíssimo tem o poder de formar um exército a partir de ossos sequíssimos. Criar o universo tendo o NADA como matéria prima. Sim! Ele pode revelar sua glória a vivos e mortos? Sim! Ele pode suscitar louvores de lábios moribundos? Sim! As trevas sucumbem ao poder?Sim! Seu amor excede o espaço e o tempo? Sim. Sua justiça está ao lado dos desprezados e esquecidos? Sim!

Jesus quando esteve na terra, nos mostrou um pouquinho deste poder. A vida subjugando a morte. A adolescente de Cafarnaum. O jovenzinho de Naum. O homem em Betânia. O túmulo vazio de Jerusalém. Nossas causas são menos complexas que as solucionadas por Cristo. Ainda estamos vivos. E servimos a um Deus que ressuscita mortos. Um túmulo lacrado e a picada de uma formiga, causam nele a mesma preocupação. Será que realmente existe alguma coisa que Ele não possa fazer por você?

Relaxe. Pare de gritar. Deixa a água se aquietar ao seu redor. E então ouça a voz. Deixe a resposta ecoar sobre as ondas. Reverberar dentro do poço. Romper as estruturas do sepulcro... SIM! SIM! SIM! Retorne a vida, e recomece a canção!


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