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domingo, 23 de julho de 2017

A maldição do salmista genérico

Quem tem mil e um amigos não encontra um disponível;
quem tem um inimigo encontra-o em todo o lado.
Samuel Johnson


Em 1974, David McAllister havia acabado de ser demitido do emprego como cuidador de idosos, quando decidiu se vingar da família que dispensou seus serviços. E o que ele fez? Abriu um processo trabalhista contra seus ex empregadores? Pichou os muros da residência dos Carrier´s? Nada disso. Sua raiva era tão intensa, que McAllister planejou e executou o sequestro de Chris Carrier, uma criança com apenas dez anos de idade. 

Não é preciso muito esforço para imaginar o desespero da família com o desaparecimento daquele menino. Para piorar a situação, o telefone não tocou. O sequestrador não se preocupou em fazer contato. Afinal de contas, McAllister não queria receber um resgate. Sua única intenção era provocar dor.

E para a infelicidade de Chris, ele era muito bom nesta arte.

Durante o tempo em que esteve no cativeiro, Chris foi torturado diariamente. Seu corpo era constantemente queimado com bitucas de cigarro e perfurado por um cortador de gelo. Quando McAllister se cansou de flagelar o menino, deu um tiro na cabeça de Chris, e abandonou seu corpo moribundo, enquanto a criança ainda agonizava. Chris, porém, não morreu. Pelos próximos seis dias, ficou imóvel, flertando com a morte, até ser finalmente encontrado.

Em decorrência dos ferimentos, Chris Carrier ficou cego de um olho, e incrustado de traumas. David McAllister, por sua vez, escapou ileso. Não houve denúncia para incriminá-lo. Ele só confessou seus atos bárbaros em 1996, quando o crime já estava prescrito. Foi então, que vítima e agressor ficaram frente a frente mais uma vez. Chris agora já era adulto. Um homem forte e pleno em saúde. McAllister, estava com 77 anos. Velho, decrépito e cego. Abandonado por todos, o sequestrador agonizava lentamente em um asilo, apenas esperando a hora da morte.

Chris havia recebido seu inimigo em uma bandeja de prata. E tinha nas mãos os talheres. O que fazer numa hora destas, quando a roda da vida gira, e um torturador se vê indefeso diante daquele que foi por ele torturado?

Esta história impressionante me fez pensar em nosso comportamento como cristãos. Jesus Cristo nos ensinou que o amor mais profícuo, é exatamente aquele que não tem reciprocidade.

Ao receber um tapa na face direita, oferte a esquerda ao agressor.

Se roubarem seu cartão de crédito, entregue voluntariamente a senha.

Caso seja obrigado a viajar até Palmas, se disponha a ir para Manaus.

Ame os seus inimigos!

Diga coisas boas sobre as pessoas que fazem fofocas sobre tua vida.

Ore para que Deus abençoe quem deseja seu mal.

Em Mateus 5:38-42, Jesus aboliu a lei do olho por olho e dente por dente. Cristo derrubou a parede que separava os inimigos, e uniu lados opostos sobre a bandeira da paz. Para viver plenamente o evangelho, é preciso uma convivência pacífica “com todos”. O processo de santificação incluiu eliminar as raízes de amargura incrustadas no coração. Enquanto mantermos sementes de ódio, mágoa e ressentimentos em nossa alma, estaremos nos privando de viver a plenitude da graça de Deus. Santificação improdutiva. E desta maneira, ninguém poderá contemplar a face de Senhor. (Hebreus 12:14-15)

Se fomos chamados para sermos propagadores da paz, que raios está acontecendo com a Igreja Moderna? De onde vem a inspiração para este evangelho revanchista e vingativo, cantado e pregado a plenos pulmões? Se o requisito obrigatório para adentrar a presença do Senhor é estar em paz com todas as pessoas, porque fazemos questão de colecionarmos inimigos? Que honra existe em se tornar o desafeto de alguém, e fazer da inimizade um conceito de marketing pessoal?  É realmente possível que textos depreciativos gigantescos no Facebook e indiretas em redes sociais sejam a solução para a crise de comunhão enfrentada pelas comunidades eclesiásticas?

Acredito que este modismo é decorrente de uma teologia rasa. Efeito colateral de uma geração que se alimenta de comida regurgitada, sem nutrientes ou sustança. Vivemos num tempo onde a Bíblia é lida sem ser compreendida. Interpretações melindrosas de homens mal-intencionados, são tomadas como verdades absolutas por rebanhos hipnotizados pelo egocentrismo. Tudo gira em torno do próprio umbigo. Se algo está errado, a culpa é de alguém que não sou EU. 

E daí, nasce a muleta da “perseguição”. O conceito é basicamente uma inversão de valores: - Me esquivo da culpa, culpando alguém por aquilo que sou culpado. E ainda, usamos a Bíblia para justificar orações rancorosas. A fatídica maldição do salmista genérico.

Entenda. Os salmos estão repletos de orações aparentemente agressivas. Os salmistas não pensavam duas vezes para colocar seus inimigos nas mãos de Deus. Eles clamavam por justiça com toda a intensidade de suas almas. A confiança na intervenção divina era tamanha, que palavras proferidas em fé, soavam como cânticos de vingança. A diferença para os pseudo salmistas modernos, é que todos os poetas bíblicos, aceitavam em submissão, a vontade do Senhor. Os inimigos pessoais eram transferidos para Deus, e cabia a Ele, a sentença justa e correta. Basicamente, um salmista tirava suas mãos do problema, para que Deus colocasse as dele. Assunto encerrado.

Quando os meus inimigos contigo se defrontam, tropeçam e são destruídos. Pois defendeste o meu direito e a minha causa; em teu trono te assentaste, julgando com justiça. (Salmo 9:3-4)

A ti, Senhor, elevo a minha alma. Em ti confio, ó meu Deus. Não deixes que eu seja humilhado nem que os meus inimigos triunfem sobre mim! Nenhum dos que esperam em ti ficará decepcionado; decepcionados ficarão aqueles que, sem motivo, agem traiçoeiramente. (Salmo 25:1-3).

O meu futuro está nas tuas mãos; livra-me dos meus inimigos e daqueles que me perseguem. (Salmo 35:15)

Os teus mandamentos me tornam mais sábio que os meus inimigos, porquanto estão sempre comigo. (Salmos 119:98)

Davi foi um destes salmistas. Ele viveu em um período onde a lei do olho por olho vigorava a todo vapor. E ao longo de sua vida, Davi acumulou inimigos as carreiras, e matou muita gente. Suas mãos estavam encharcadas de sangue. Mesmo assim, é dele a grande maioria dos salmos onde a justiça do Senhor era invocada sobre adversários.  Davi sabia que o coração humano é mal, e que as mãos dos homens são cruéis. Em I Crônicas 21, após desobedecer uma ordem divina, o rei se viu às voltas com uma escolha difícil. Como castigo a sua intransigência, Davi seria obrigado a optar por uma destas calamidades:

- Três anos de fome sobre a terra.
- Três meses sendo afligido pelos seus inimigos.
- Três dias de peste sobre Israel.

A opção feita por Davi, nos diz muito sobre as motivações do belemita em suas orações:

- Então disse Davi a Gade: Estou em grande angústia; caia eu, pois, nas mãos do Senhor, porque são muitíssimas as suas misericórdias; mas que eu não caia nas mãos dos homens. (I Crônicas 21:13) 

A ironia que muita gente não entende, é que entregar um inimigo nas mãos de Deus, não tem nada a ver com vingança. É na verdade, um ato de grande benevolência. Desejar o bem a quem trabalha por teu mal. As mãos do Senhor são revestida de amor e misericórdia. As nossas, nem tanto. Davi nunca ouviu um ensinamento de Jesus, mas, tinha por hábito “orar por seus inimigos”. Dividir com Deus suas batalhas.

E porquê? 
Simples.

Batalhas, lutas, mortes e traições eram rotineiras na vida de Davi. E esta rotina, era também sua maior frustração. As inimizades consumiram muitos anos de sua vida. Ele abriu mão dos amigos para se dedicar aos inimigos. Ele perdeu filhos para ganhar adversários. Davi ilustra bem a frase do escritor Leon Uris: - Muitas vezes não temos tempo para dedicar aos amigos, mas para os inimigos temos todo o tempo do mundo!

Davi sabia que sua vida estava sendo consumida por seus inimigos. Ele dormia e acordava pensando neles. Estavam dentro e fora de casa. Todo o tempo. O tempo todo. Isto o aborrecia. No Salmo 23:5, ele revela o desejo escondido no seu coração: - Prepara uma mesa para mim, na presença dos meus inimigos...

Você até pode pensar que Davi queria se banquetear enquanto seus inimigos passavam fome. Ou quem sabe, ele almejava ver seus inimigos na “plateia”, enquanto brilhava no palco. Nada disso. Em geral, seres humanos adultos, tem o tronco do corpo com tamanhos similares. Quando nos assentamos, grandes e pequenos conseguem se olhar diretamente olhos. Se tornam iguais. E era exatamente esta a oração de Davi. Ele queria se assentar em uma mesa com seus inimigos. Olhar nos olhos deles. Partilhar. Estar no mesmo nível. Resumo da obra: Davi orava para não ter inimigos.

E hoje, tem gente que constrói seu ministério sobre os pilares da inimizade e do vitimismo. Estranho, não? Salmistas genéricos que ignoram aquilo que Jesus nos ensinou. Quem ama seus inimigos, deixa de tê-los. Jesus foi perseguido, humilhado, julgado, torturado, traído, negado e assassinado com requintes de crueldade. Mesmo assim, eu te desafio a citar um único inimigo nominal de Cristo. O amor sempre fala mais alto que o ressentimento. O perdão lava as mágoas do passado.

Quando Chris Carrier se encontrou com David McAllister no asilo, ele se compadeceu de seu maior inimigo. Em lágrimas, McAllister lhe pediu perdão, e foi perdoado. Chris olhou seu agressor nos olhos, e lhe garantiu que, entre eles, não existiria mais qualquer resquício do passado. Nas semanas seguintes, Chris visitou McAllister quase todos os dias. Ele levou sua filhinha para conhecer o novo amigo. Chris fazia questão de presentear McAllister com suas comidas favoritas. Chris se assentava ao lado da cama de McAllister, e lia para ele trechos da Bíblia. Quando McAllister morreu, Chris chorou de tristeza. E nos anos seguintes, sentiu saudades. 

Se isto não for ser cristão, a Bíblia precisa ser revisada. Infelizmente, na atual crise de apostasia que se esconde sob a alcunha de “Geração do Avivamento”, estamos dando cada vez menos ouvidos aos ensinamentos de Jesus, e aplicando cada vez mais em nossas vidas a afirmação do escritor francês Jean Hérault de Gourville: - Que Deus me defenda dos amigos, que dos inimigos me defendo eu. Como bem já disse Mahatma Gandhi: - Olho por olho, e o mundo acabará cego!


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