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sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

00:01 AM


Devemos prometer somente o que podemos entregar.
E entregar mais do que prometemos.
(Jean Rozwadowski)


Meia noite. O peso do mundo sobre os ombros. Um turbilhão de preocupações a cirandar pela mente. Sentimentos carrancudos (e com unhas alongadas) arranhando o coração. Naufrágio noturno num oceano de ansiedade, sem nenhum coleta salva-vidas no barco.  O corpo lancetado por dores, hematomas e infecções. Feridas abertas escondidas por debaixo de cicatrizes maquiadas. Perguntas inquietantes sem respostas conclusivas. O chão forrado de incertezas e o ar envolto numa névoa de opressão. E quando tudo parece irremediavelmente perdido, os fogos de artifício iluminam os céus. Sorrisos encharcados de champanhe se abrem num afã de esperança. Os abraços se multiplicam numa festa de cores e tons. O branco da paz. O amarelo da riqueza. O vermelho do amor.

Meia noite e um. A vida recomeça num passe de mágica. Todo passado é esquecido, soterrado nas areias do tempo. Renovação. Nada será como antes. O navio volta a navegar em águas tranquilas. As emoções se aninham como gatinhos recém nascidos. Não há mais motivos para chorar. Sem mazelas ou expectativas frustradas. Há respostas satisfatórias a todos os maiores enigmas da existência. Ano Novo. Vida Nova. Tudo Novo!

A visão poética que temos sobre os encerramentos de ciclos temporais, nem de longe condiz com a praticidade da vida. O relógio não interfere na essência do que somos. O calendário não determina o resultado de nossas colheitas. O que, de fato, acontece entre “meia noite” e “meia noite e um”, é exatamente a passagem temporal que corresponde a “um minuto”. Nada mais. E neste pequeno intervalo, não há tempo hábil nem mesmo para a tomada de novas resoluções, quanto mais, vivenciar seus resultados. Deus não nos presenteou com feijões mágicos. Ele nos ofertou a liberdade para escolher as sementes que queremos plantar. Feita a escolha, o que nos resta, é aguardar o processo de amadurecimento da planta, enquanto comemos os frutos de semeaduras passadas e ponderamos sobre o que semear na próxima estação.

Este exato ponto de sua vida (chamado “agora”), é um caminho que você mesmo pavimentou. O atual momento é reflexo direto de resoluções tomadas a muito tempo atrás. Para o bem, ou para o mal. Logo, não existem mudanças repentinas. Toda mudança num giro de 180° é feita de forma paulatina. Planejada. Não acontece por acaso. Então, tenha paciência. Talvez ainda existam algumas tempestades para se enfrentar, antes do sol brilhar em todo seu resplendor. Enquanto isso, dance na chuva. Faça um barquinho de papel e brinque na correnteza. Se não é possível mudar o mundo, podemos enxergá-lo diferente. Dá para tirar muita doçura de limões azedos. Limonada. Mousse. Torta. Sorvete... E por aí vai... 

Quando era criança, tínhamos um pé de “Laranja Cavala” no quintal de casa. Não se engane com o adjetivo “laranja”. O gosto desta fruta deve se assemelhar ao sabor de espaguete feito com as "crinas" de um cavalo que acabou de correr cem quilômetros. Com folhas de boldo! Aliás, esta deve ser a origem de seu nome, “Cavala” ou “Laranja Amarga”. O fato dela possuir aspectos medicinais não melhora a terrível experiência de algum desavisado que decide fazer um suco com ela. Ou chupá-la sob a sombra da árvore. Azeda. Rançosa. Intragável. Mas, era a fruta que tínhamos no pomar. Quem a plantou ali, sabia bem o que iria colher. Então, ao invés de reclamar do fruto e desperdiçar a oportunidade , é possível aprender a transformá-lo através da paciência. E de muita criatividade.

Minha mãe colhia a fruta, retirava a casca externa, fazia cortes transversais no mesocarpo (aquela película branca que envolve a fruta) e retirava toda a polpa (ironicamente, a parte mais amarga). Casca e polpa viravam adubo em nossa pequena horta.  O que sobrava, ia para uma tina de água condimentada, onde permanecia por vários dias. Depois de ser lavado repetidas vezes por toda a semana, o mesocarpo finalmente estava pronto para ir à panela. O gosto amargo já estava bem atenuado. E assim, após algumas horas no fogo alto, junto com açúcar, cravo e canela, estava pronta uma compota exótica e, inacreditavelmente, agradável ao paladar. Doce feito com o bagaço de uma fruta intragável.

Que linda metáfora para a vida, não?

Este é o segredo para começar bem o Ano Novo. O mês novo. O dia que se renova. Fuja das ilusões. Não se apegue a uma esperança tola e infantil. Mas, também não seja vencido pela desesperança. Não se entregue ao desespero. Encontre o equilíbrio. Entenda que mudanças significativas demandam tempo, esforço, abnegação e muita disciplina. Exatamente por isso, qual o propósito de tentar acelerar os acontecimentos? Comida de micro-ondas nunca vai ser melhor um feijãozinho feito no velho fogão a lenha. Para que sofrer de véspera? Se angustiar com o que pode (ou não pode) acontecer?

Sou parte da geração que vivenciou um momento histórico, e que dificilmente se repetirá. Na noite de 31 de dezembro de 1999, o mundo estava em suspensão. Em poucas horas, três ciclos temporais se fechariam simultaneamente, e um universo de novidades estaria ao alcance de nossos mãos. Ano Novo. Século Novo. Milênio Novo. Muitos sentiam a força cósmica de uma mudança poderosa. Outros se angustiavam com a possibilidade da história humana encontrar seu fim quando o relógio marcasse meia noite. O “bug”. As profecias de Nostradamus. Até cristãos incautos apregoavam o Apocalipse, baseados num famoso versículo registrado no Livro do Profeta Heresias:  - Até dois mil chegarás, mas de dois mil não passarás. A verdade, é que ninguém conseguia se manter impassível diante de tantas expectativas. Ansiedade globalizada.

Chegou à meia noite. Os fogos de artifício iluminaram os céus. Sorrisos encharcados de champanhe se abriram num afã de esperança. Os abraços se multiplicaram numa festa de cores e tons. O branco da paz. O amarelo da riqueza. O vermelho do amor. E mais nada aconteceu, além do que sempre acontece em datas similares. As mesmas angústias. As mesmas dores. Os mesmos motivos para continuar sorrindo. Tudo seguiu exatamente como estava antes. Exceto os dígitos do calendário. Tanta expectativa para pouca recompensa. Tanta ansiedade para nenhuma tragédia. E sabe o que é mais hilário (se não fosse trágico)? O tempo da espera é, muitas vezes, mais prazeroso que o tempo das recordações.

Então, um passinho de cada vez. Cabeça nas alturas e pés firmados no chão. Se prepare para o amanhã, começando por entregá-lo na mão de Deus. E descansando depois da entrega feita.

Antes de pensar no futuro, recorde do passado. Pense na história de sua vida. Na última década, quantas mudanças aconteceram? Algumas delas, você se quer percebeu. O processo da metamorfose é lento e natural. Não existem grandes traumas. A lagarta entra no casulo se rastejando e a borboleta sai, deste mesmo casulo, num voo esbelto e arrebatador. E toda esta transformação leva exatamente o tempo necessário. Nem mais, nem menos. Não existe magia, só a natureza seguindo o seu curso, habilmente delineado pelo próprio Deus. As estações do ano se alternam sem que você se preocupe com isto. A chuva cai, rega a terra e volta para os céus sem que você precise interferir no processo. O próprio Criador se encarrega destes ciclos. 

Não seria mais inteligente sentar no banco do passageiro, curtir a paisagem e deixar Deus na direção do carro? Até, porque, a viagem vai ser bem longa...

Meia noite e um. Você continuará sendo o mesmo. Gordo. Magro. Rico. Pobre. Amado. Desprezado. E se mudar as expectativas pode ser profundamente frustrante, conseguir alterar a própria perspectiva é sempre recompensador. Pense que “meia-noite” é o apogeu da escuridão noturna. Não tem como ficar mais escuro. Assim, “meia noite e um” é o primeiro passo na direção do amanhecer. Apenas o primeiro passo. O início de uma escada com muitos degraus. O bagaço da laranja amarga encontrando a água doce. E não é exatamente assim que as grandes jornadas começam. Um passinho de cada vez? Devagar e sempre? 

Tome a iniciativa de um verdadeiro recomeço, consciente e perseverante. Siga o fluxo, confiando plenamente em seu Deus. E então, mesmo que você não perceba de imediato, os efeitos das resoluções tomadas começarão a aparecer. Sutilmente. Gradativamente. Intensamente. Bum! Transformação completa. A vida mais bela, mesmo que o mundo se revela cada vez mais feio. Os dias amargos salpicados de açúcar. A bondade que reside nos olhos, transformando a fotografia granulada do ambiente.

Faça como aquela mulher, que ao acordar após seu tratamento de quimioterapia, notou que haviam apenas três fios de cabelo em sua cabeça. Ela ficou pensativa em frente ao espelho. Calada por muitos minutos, olhando preocupada para seu rosto. E então, finalmente decidiu: - Já sei. Vou fazer uma trança! E foi isto que ela fez. E o dia foi maravilhoso. Na manhã seguinte, só haviam dois fios. E mais uma vez, ela se pôs a pensar diante do próprio reflexo: - Hummm...  Acho que hoje vou repartir o cabelo ao meio. E mais uma vez, viveu experiências maravilhosas. No terceiro dia, restava apenas um único fio. A mulher pensou, pensou e decidiu: - Hoje vou sair usando um rabo de cavalo! E como ela se divertiu. Brincou com os filhos e beijou o marido, enquanto o vento balançava seu cabelo. No quarto dia, ao acordar, a mulher percebeu que já não havia um único fio de cabelo em sua cabeça. Seu olhar de espanto foi logo substituído por um sorriso genuíno. E então, ela exclamou com grande entusiasmo: - Yes! Hoje não tenho que me preocupar com penteados! E foi aproveitar o dia. Ser feliz enquanto a vida lhe dava esta oportunidade.

Então, meus amigos. Um pouco menos de lamúrias e doses cavalares de gratidão. As únicas pessoas que podem reclamar de um ano ruim, são exatamente as que sobreviveram à ele. E isto não é motivo para sermos gratos? Se as coisas não saíram conforme o planejado, OK! Revise o planejamento. Refaça o projeto. Gaste o tempo que for preciso com reavaliações. Faça o possível e confie que o impossível já está sob os cuidados de Deus. Cobre-se menos, e talvez com isto, você renda mais. Se permita fracassar, errar e tentar de novo. Quantas vezes forem necessárias.

Entenda que para cada texto escrito, dez folhas rascunhadas estão na lixadeira. A beleza da vida é a possibilidade do aperfeiçoamento. E entender os próprios limites é a primeira parte do processo. A outra, é compreender que Deus é por nós, em todos os momentos. E Ele sim, é ilimitado, imparável, incessável e infinito. Para Deus, o espaço temporal entre “meia noite e “meia noite e um” corresponde a uma semana inteira. Dá para criar o mundo outra vez (II Pedro 3:8). Então, deixe o Senhor do Tempo ser o Senhor dos seus dias. Entregue cada minuto nas mãos do teu Deus. Entre no casulo e não se apresse. Na hora certa, o Senhor te faz voar!


terça-feira, 26 de dezembro de 2017

As Virgens de Jabes-Gileade

A virgindade é ao mesmo tempo obstáculo, desafio e doação.
(Carlos Drummond de Andrade)


A Bíblia não é composta apenas de belas histórias. Existem muitas tragédias contadas ali. Porém, nem mesmo a narrativa mais sangrenta deixa de ser significativa. Sempre há uma alegoria a ser aplicada em nosso modo de vida. Um parâmetro comparativo para o comportamento humano. A Sagrada Escritura é enfática ao nos apresentar os resultados catastróficos resultantes de erros crassos, e com isso, aponta a direção oposta aos perigos inerente à escolhas erradas:  - Fujam deste caminho, pois o final dele é dor, sofrimento e morte.

Os últimos capítulos do livro de Juízes nos contam uma história assim. Se Hollywood fizesse a adaptação cinematográfica destas páginas, o resultado seria um filme proibido para menores de idade. Logo, a leitura deste texto, segue por sua conta e risco. Haverá muito sangue nas próximas linhas.

Tudo começou quando um homem que habitava nas regiões montanhosas de Efraim, desceu para cidade de Belém-Judá. Enquanto caminhava pelas ruas do povoado, se encantou com a beleza de uma moça belemita. Foi paixão à primeira vista. Sem pensar duas vezes, declarou seu amor em praça publica e a tomou por esposa. O problema, é que a bela mulher tinha um vasto histórico de amantes, e o casamento não aplacou estes instintos libidinosos. Pouco tempo depois do matrimônio, como era esperado, ela voltou a se envolver com outros homens, e fugiu para a casa de seu pai, onde permaneceu escondida por quatro meses. O marido, ainda apaixonado, viajou  para Belém, afim de trazer sua amada esposa de volta ao lar. O reencontro foi emocionante. A moça, arrependida de seus erros, correu ao encontro do marido e o beijou. Eles se abraçaram demoradamente e trocaram juras de amor eterno. Perdão incondicional. Somente a morte os poderia separar. O sogro do rapaz, comovido com a reconciliação, convidou os pombinhos para jantarem (e pernoitarem) em sua casa. E o casal se hospedou ali por mais cinco dias.

Carentes de privacidade, marido e mulher decidiram voltar para casa. E assim, com o sol sobre a cabeça e a paixão estampada no rosto, iniciaram o longo caminho de volta a Efraim.  E a jornada corria em paz, afinal,  quando se tem amor, todo o resto é superficial. Será?  

Quando a tarde chegou, eles estavam próximos a cidade de Jebus. Os servos que faziam a escolta, aconselharam ao casal para dormirem em alguma hospedaria local, mas o marido se negou. Ele planejava chegar até Gibeá, no território de Benjamim, onde estaria seguro entre seus “compatriotas”. Já era noite quando chegaram à cidade. As estalagens estavam abarrotadas e nenhuma casa de família queria dar abrigo para desconhecidos. Sem ter onde ir, o casal se assentou na praça da cidade, enquanto pensavam em alguma solução. Um homem velho (e mui simpático), que voltava do pesado trabalho na lavoura, se afeiçoou a história do casal, e lhes ofereceu abrigo em seu lar. O anfitrião tinha muito vinho na adega, e todos beberam sem moderação. A conversa fluía solta e as horas se passaram rapidamente. Embriagados, eles não perceberam a movimentação fora da residência. A casa tinha sido cercada por homens mal-intencionados. Eles queriam ter uma “conversinha” com os visitantes. Filhos de Belial. Carniceiros. Seres inescrupulosos que tinham um passatempo bem tenebroso. Assassinar estrangeiros.

O dono da casa tentou aplacar os ânimos. Ele queria proteger seus convidados. Conhecia a mente perversa de seus vizinhos. Mas, o diálogo não adiantou. Os invasores ficavam cada vez mais exaltados e violentos. A porta da casa não seria uma barreira por muito tempo, pois os tricos começavam a ceder.  E foi então, que para se proteger dos agressores impassíveis, o “esposo apaixonado e perdoador”, simplesmente jogou sua esposa às feras. A mulher foi trancada para fora de casa, para com seu corpo, satisfazer uma legião bacântica. O verdadeiro amor expulsa o medo, mas a paixão, sucumbe diante do temor.  E durante toda aquela longa noite, a pobre moça foi estuprada por centenas de homens pervertidos, enquanto dentro da casa, o marido dormia em segurança. 

O abuso só chegou ao fim, quando os primeiros raios de sol surgiram no horizonte. A mulher, ensanguentada, se arrastou até a varanda da casa. E ali, com a mão no limiar da porta, ela morreu.

Ao acordar, o marido tomou a jovem em seus braços. Acreditava que a coitada tivesse suportado aquele calvário vexatório. - Ela sabia muito bem como lidar com homens luxuriosos! - Pensou ruborizado. Agora, diante do cadáver ferido, entendeu a real dimensão da sua covardia, e a culpa bateu forte. Era preciso vingar-se! Tamanha desonra implorava por justiça. O que "sobrou" da moça foi carregado nos lombos de um jumento até as montanhas de Efraim. Quando chegou em sua casa, o homem tomou um cutelo em suas mãos, e partiu o corpo da esposa em  pedaços. Depois, enviou partes para as tribo de Israel, relatando aos líderes tribais, a barbárie ocorrida no território de Benjamim. A indignação foi geral. Aquela era uma demonstração de “violência gratuita” difícil de aceitar. E nos conselhos convocados por toda Canaã, o consenso foi unânime: - Ponderar, consultar e não se calar.

Juízes 20 nos apresenta a terrível resolução tomada por uma assembleia geral que uniu as tribos israelitas, exceto Benjamim. Todas as cidades existentes nos territórios de Israel foram convocadas para este concílio gigantesco e emergencial. Após ouvirem o depoimento do marido enlutado, os líderes do povo enviaram soldados à Gibeá, exigindo que os agressores fossem entregues para julgamento e execução. Não houve acordo. Os benjamitas protegeriam seus irmãos, fossem eles inocentes ou culpados. Nenhum filho de Benjamim morreria por se "relacionar" sexualmente com uma mulher acostumada a se deitar com vários homens. Toda a cidade conhecia  a fama da moça. A  decisão era irrevogável. 

Estava deflagrada a guerra. Ambos os lados se levantaram em armas. O exército de Benjamim contava com vinte e seis mil soldados. Contra eles, mais de quatrocentos mil homens se apresentaram com espadas em punho, ávidos por extirparem aquele mal do território de Israel. O resultado inevitável foi um massacre sem precedentes, que feriu profundamente a dignidade (e a identidade) nacional. 

E então, chegamos ao segundo capítulo desta história..

Poucos foram os sobreviventes de Benjamim, e a existência da tribo estava profundamente comprometida. Sem Benjamim, Israel também estaria incompleto. O futuro da nação questionado. O sonho de unificação destruído. Era preciso investir na reconstrução da tribo esfacelada, e atenuar os efeitos deste erro histórico. E é neste ponto, que a cidade de Jabes-Gileade, se torna peça fundamental para a narrativa. Para se estancar a sangria, mais sangue precisava ser derramado.

Entenda.

Quando todas as cidades do território de Israel foram convocadas para a batalha, Jabes-Gileade ignorou a convocação. E tal resolução, em si, também era uma declaração de guerra. Jabes-Gileade estava se levantando em insurgência contra a assembleia geral. Um grito de ousadia a ser silenciado. Um ato de rebeldia. E toda rebelião deveria ser contida. Mais precisamente, eliminada. Então, os líderes de Israel, enviaram um exército formado por doze mil homens contra a cidade. Todos os moradores deveriam ser sumariamente executados. Homens, mulheres e crianças. Ninguém poderia escapar. A revolta seria exterminada na raiz. Jabes-Gileade jamais teria força para se levantar contra a autoridade nacional outra vez.

E assim como foi fora ordenado por seus generais, os soldados israelitas não demostraram compaixão. Todos em Jabes-Gileade morreram naquele dia. Exceto, quatrocentas moças. Todas virgens.

E aqui estão elas. As virgens de Jabes-Gileade. As únicas sobreviventes de um povo exterminado. Raios de sol surgindo depois de uma noite escura. Vestes brancas que não foram salpicadas com o "vermelho sangue" da guerra. A semente da existência plantada num solo adubado por cadáveres apodrecidos e laminas cegas. Foram elas que possibilitaram o recomeço de Benjamim. Os sobreviventes da tribo "quase exterminada" se unindo com as virgens da "cidade dizimada". E a vida recomeçando do caos.

Esta trágica história, cheia de atitudes egoístas e comportamentos bestiais, traz em seu bojo, uma alegoria espiritual bem interessante. Como já disse no início deste texto, nem mesmo as mais grotescas narrativas bíblicas foram inseridas nas escrituras sagradas por mero acaso. Há lições para serem aprendidas. Indicações de caminhos à serem evitados. Dizem que os homens inteligentes aprendem com seus próprios erros, e os sábios, com o erro de outros. E nas entrelinhas deste relato funesto, pode se aprender com a experiência alheia. A medicação ministrada sem ser preciso experimentar o gosto amargo do remédio. Cura por osmose. Esta é uma lição expositiva nos mostrando os benefícios do viver pautado em pureza, longe das contaminações do mundo. A santidade é um escudo que nos blinda contra as adagas da morte. Um ingresso perpétuo garantindo acesso irrestrito ao mais seguro esconderijo do universo: - sob as asas do altíssimo.

O ciclo de morte crescente que se espalhou entre Gibeá e Jabes- Gileade teve início com um único ato de impureza. Uma mulher que deixou suas vestes brancas serem salpicadas com os gotejos imundos do hedonismo. E a partir deste ponto, temos uma nuvem de moscas carnívoras rodopiando ao redor do estrume. Um abismo chamando o próximo abismo, ainda mais profundo. Nenhuma ação é justificada pela anterior, porém, poderia ser evitada, caso alguém tivesse tomado uma decisão diferente.

E se a paixão fosse mais responsável?
E se o casamento não tivesse acontecido?
E se a esposa nunca tivesse saído de casa?
E se o esposo tivesse pernoitado em Jabes?
E se os moradores de Gibeá tivessem ido dormir mais cedo?
E se os pedaços do corpo nunca fossem enviados?
E se a assembleia tomasse uma resolução diferente?
E se os belemitas tivessem entregue os estupradores para julgamento?
E se Jabes-Gileade tivesse atendido a convocação?
E se existissem mais virgens na cidade?
E se a fidelidade nunca fosse banalizada?

São muitos “se´s” para ponderar. E a vida não nos permite este tipo de análise pretérita. - "Poderia ser diferente"! Não foi. É com as consequências das ações praticadas no passado, que lidamos no presente. E não existe alternativa para esta revelação cruel. Toda grande tragédia, é na verdade, um amontado de erros displicentes e omissões desveladas. As facilidades do “lugar comum” nos incentivando a agir “de qualquer maneira”. Sem medir consequências. Sem calcular os riscos. Um flerte constante com o perigo. Ignoramos que toda correnteza insuperável, foi antes o fino veio de uma nascente. 

Vestes sujas com a lama do pecado só podem ser lavadas com sangue. Esta é uma regra mais antiga que as fundações do universo. Que preço caríssimo a se pagar por coisas fúteis e desnecessárias. Prazeres momentâneos parcelados em centenas de vezes. Juros altíssimos e boletos diários. E sem Jesus no contexto, de onde virá o sangue? Vale a pena trocar uma vida eterna de felicidade por placebos ineficazes de alegria?

E então, temos a metáfora das virgens de Jabes-Gileade. Vestes límpidas. Comportamentos ilibados. Estas moças se mantinham puras e imaculadas, plantando com paciência, sementes à serem colhidas no futuro. Uma belíssima alegoria para a santificação. Biblicamente falando, a santidade refere-se a uma vida dedicada à Deus, e que se afasta progressivamente do pecado. Basicamente, é abrir mão dos próprios interesses, negar a si mesmo, matar pouco a pouco os desejos da carne, e viver enquadrado na vontade de Deus. O que, espiritualmente, resulta numa vida imune aos perigos da contaminação. A santidade é um alvejante poderoso que lava, e mantem alvas nossas vestes. Virgens em seus vestidos brancos, preservadas em Cristo, enquanto o mundo sucumbe pela espada afiada da morte. Quando conservamos brancas as nossas vestes, branca também permanece a próxima página da história. Um futuro à se escrever.

A Igreja é a Noiva que Cristo escolheu para si. Não a igreja institucional, mas sim, a humanizada. Eu. Você. Nós. Templos do Espírito Santo. Tabernáculo do Altíssimo. Morada de Deus. Fomos vestidos de linho branquíssimo, mais alvos que a neve antes de tocar o chão. Cristo ama esta Noiva, e deseja ardentemente apresentá-la pessoalmente ao Pai. Mas, existem critérios estabelecidos para que este momento se viabilize. A Noiva precisa estar gloriosa, pura, limpa, imaculada, sem rugas ou imperfeições, santa e irrepreensível. Uma virgem intocada, esperando pacientemente pelo primeiro beijo do esposo (Efésios 5:25-27). Caso contrário, não existirá casamento. Apenas uma eternidade longe de Deus. Caos, dor e ciclos infindáveis de tragédias. Sodomização espiritual. Estupro da alma. Flagelo do corpo. A virgindade espiritual, neste contexto, é um salvo conduto para a vida eterna. A espada com a qual Deus ferirá a morte que de perto nos rodeia.

Pois é. As páginas finais de Juízes têm muito mais a nos oferecer do que uma história apelativa de sexo, violência e morte.  Temos aqui um comparativo entre os resultados decorrentes de dois casamentos distintos. Um deles, construído sobre os pilares da paixão, da lascividade, dos desejos desenfreados e a busca pelo prazer inconsequente. Poderia ter dado certo? - “Talvez. Que sabe?” Fato é, que neste caso (e na maioria dos eventos registrados) não deu. Escolhas erradas levando indivíduos a lugares errados em momento errados com pessoas erradas. A noiva desta história (que pode muito bem representar qualquer um de nós) gastou sua vida na busca por prazeres sazonais, e acabou encontrando um fim trágico, onde a morte foi antecedida por muita dor, vergonha, desprezo e abandono.

O segundo casamento faz o caminho inverso. Acontece entre pessoas que sobreviveram à tragédia. O belemita que escapou da morte e a noiva imaculada que a morte não ousou tocar. Os pilares deste casamento foram a mutualidade, o respeito e o um propósito que excedia aos desejos individualistas. Vidas que se uniram para gerar vida. O amor maturado com o tempo, e não vislumbrado num único olhar.

As virgens de Jabes-Gileade fizeram uma escolha difícil. Se mantiveram puras num mundo impuro. Imaculadas num antro de maculações. Exercitaram o poder do “não” em uma terra de oportunidades.  E o que ganharam com isto? Vida. Através delas, a tribo de Benjamim recebeu uma chance de sobreviver. E voltar a ser forte. Fazer escolhas melhores. Estas moças diferenciadas se tornaram mulheres de grande honra. Mães zelosas. Esposas amadas. Matriarcas de Israel. Da linhagem benjamita vieram homens notáveis. Saul, o primeiro rei de Israel. Paulo, o apóstolo dos gentios. 

Se a morte abre as portas para mais mortes, a vida estende o tapete de boas-vindas para um ciclo de mais vida. E dependendo das escolhas que fizermos hoje, esta vida, pode sim, se tornar eterna. Basta saber escolher entre o "agora" ou o "depois".  

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

O Maior dos Presentes

 Honrarei o Natal em meu coração e tentarei conservá-lo durante todo o ano.
(Charles Dickens)


O mais importante evento da história, passou praticamente desapercebido pela humanidade. Enquanto os céus explodiam em luz e anjos cantavam exultantes de alegria, na Galileia dos gentios, a brisa  noturna embalava sonhos efêmeros. O mundo seria transformado. O tempo rasgado ao meio. E quase ninguém escreveu no livro de recordações.

Não houve falhas da organização. Os convites foram enviados com séculos de antecedência. A alta sociedade confirmou sua presença de forma antecipada. Seria uma honra participar de tão glamorosa solenidade. Certamente o anfitrião reservaria algum luxuoso castelo em Roma. Ou seria a folgança sediada nos suntuosos templos de Corinto e Atena? As expectativas estavam equivocadas, e os convidados, simplesmente, declinaram de suas reservas. Não existia nobreza numa celebração realizada nas dependências de uma manjedoura em Belém.

O Salvador do Mundo nasceu anônimo. Seu bercinho real foi uma caixa de madeira forrada com palhas. Balidos, mugidos e sussurros carinhosos embalaram seu sono. Os olhos de Maria brilhavam de encantamento. José balbuciava palavras incompreensíveis. Um carpinteiro e uma doméstica oriundos de Nazaré, tinham Deus em seus braços: Jesus. Horas antes, portas foram fechadas para o homem pobre e a mulher grávida. Agora, o menino infante abriria as portas dos céus aos homens. O “Deus Pai” tinha um sorriso “quinze para as nove” nos lábios. Os anjos se aglomeravam nas janelas com olhares curiosos. Como seria o rosto do “Verbo”? As estrelas se enfeitaram com adornos brilhantes e desfilavam com vestes longas pelas gázeas nebulosas. O universo irradiando-se em luz. E na terra, roncos preguiçosos e ressonos displicentes.

Deus não deixaria o nascimento de seu filho passar incógnito. Alguém deveria estar acordado no silêncio da noite. E realmente haviam homens em vigília. Operários humildes escalados para o trabalho noturno. Pastores anônimos dos quais nunca saberemos o nome. Eles atenderam a chamada. “Skype” celeste. Homens simples que testemunharam o mais impressionante número musical de todos os tempos. Um coral de anjos cantando as maravilhas eternas. Pernas trêmulas, olhos vidrados e corações tomados pelo assombro. 

Um porta voz celeste anunciou a mensagem: - “Não tenham medo! A notícia que tenho para vocês é maravilhosa. ”

E então, enquanto as luzes bailavam no firmamento, ressonou a voz dos coros angelicais:  - “Paz na terra aos homens de boa vontade” – 

- Hoje, na Cidade de Davi, nasceu o Salvador do Mundo!

- “Ele é o Cristo esperado. O nosso Salvador! ” – O tom suave da canção fazia o espírito flutuar num oceano de paz.

- Procurem o menino. Encontrem o Emanuel. Vocês não o acharam nos palácios, e nem em casas de alvenaria. Ele está dormindo numa manjedoura, envolto em panos e deitado sobre a palha.

A música ecoou pela Via Láctea enquanto os anjos desapareciam numa explosão de cores e sons: - “Glória a Deus nas alturas! Paz na Terra! Boa vontade para com os homens” 

Os pastores se entreolharam atônitos. Não sabiam o que pensar. Ou dizer. Então, eles correram na direção indicada, e assim como o anjo havia dito, encontraram Maria e José acalentando o menino. Aquela criancinha indefesa era o Messias esperado. Ali, diante de seus olhos. Eles conheciam a história. Aguardavam a promessa. E agora, Deus estava entre os homens. Podia ser tocado. Segurado no colo.

Os pastores reverentemente se ajoelharam e adoraram o Cristo recém-nascido. E não puderam conter a emoção. Saíram correndo pelos valados, batendo nas portas e contando a todos que despertavam: - Glória a Deus nas Alturas! Nasceu o Salvador!

Mesmo assim, não existem mais assinaturas no livro de visitas da manjedoura. Belém, simplesmente, voltou a dormir, sob um intenso e significativo raio de luz. Os olhares não se voltaram para cima. Os pés não correram para a manjedoura. Os judeus estavam tão ansiosos com a chegada do Cristo, que não perceberam quando Ele chegou.

Enquanto isso, a muitos quilômetros dali, numa terra distante, onde profecias messiânicas nunca foram proclamadas, olhos marejados fitavam os céus com intensa admiração. Nunca uma estrela tinha brilhado com tanta intensidade na imensidão do universo. Algo grandioso estava acontecendo. 

Sim, alguém tinha entendido o sinal!

O evangelho de Lucas narra os eventos da manjedoura na noite da natividade. Mateus, por sua vez, conta a história dos magos que visitaram o menino. Eles não eram mágicos e nem adivinhos. Apenas homens sábios que se dedicavam a estudar as estrelas. O evangelista não cita seus nomes e nem revela quantos eram. A única informação bíblica referente a origem dos viajantes é a localização geografia de suas moradias. Eles eram do oriente. Longe demais para se importarem com os eventos de Belém. Distantes o suficiente para não ouvirem as vozes angelicais. O Messias era uma promessa exclusiva para os judeus. Porque homens pagãos se importariam com o nascimento de um rei anônimo no subúrbio de Israel?

Eles viram a estrela. A mesma que os belemitas ignoraram. Aquela à qual os sacerdotes de Jerusalém negligenciaram. Homens do oriente entenderam a mensagem. Perceberam o sinal. O mundo estava mudando e os céus indicavam a direção desse novo tempo. Não sabemos exatamente de onde aqueles homens vieram, mas onde queriam estar, é uma certeza absoluta. E então, deixando tudo para trás, eles embarcaram numa longa jornada através de planícies desertas e regiões áridas. Não importava qual seria o destino, eles não deixariam de seguir a estrela, até que chegassem lá.

Se o relato bíblico desta história se resume em doze versículos do Evangelho de Mateus, sequer existe qualquer registro histórico sobre estes homens notáveis. A tradição cristã ensina que a comitiva era liderada por três nobres dotados de muito poder e riqueza. Melchior, rei da Pérsia. Gaspar, rei da Índia. Baltasar, rei da Arábia. Seriam estes seus nomes verdadeiros? Haviam mais pessoas na comitiva? Em que ponto do caminho eles se encontraram? Como cada um deles identificou a estrela? Estas são perguntas para as quais não temos respostas. E nem precisamos. Quem eles são pouco importa. A determinação destes homens é o que nos inspira.

Aquela imagem lúdica dos presépios natalinos é pura licença poética. Não havia reis na manjedoura. É muita distância para pouco tempo. E Belém não foi a primeira parada da comitiva. Eles andaram por centenas de quilômetros até que a estrela os guiou ao território de Israel. Como buscavam um rei, o instinto fez com que se dirigissem para Jerusalém. Quando chegaram ao palácio real, foram recebidos pelo próprio Herodes. O tetrarca de Israel ficou estarrecido quando foi informado sobre o motivo da surpreendente visita.

- Onde está o rei que é nascido entre os judeus? Nós vimos a sua estrela brilhando desde o oriente, e viemos até aqui para adorá-lo!

Nó nas tripas reais. - Um novo rei entre os judeus?  - Herodes ficou possuído por um misto de indignação e horror. - Quem ousava questionar a legitimidade de seu reinado? - Vestindo-se com uma máscara de simpatia, reuniu seu conselho para uma conferência. Estava determinado a saber de onde vinha esta ameaça ao seu trono. – O que sabemos sobre este tal... Cristo? - Inquiriu aos seus escribas.

- Ele virá de Belém!

Belém Efrata. A menor entre todas as capitais da Judeia. Cidade de Davi. O Messias nasceria pequeno e se tornaria grande. Um pastor guiando seu povo. A paz extinguindo a guerra. Luz para quem andavam em escuridão. Miquéias o identificou como sendo o "Senhor de Israel" desde as eras mais remotas. Isaías o chamou de Deus Forte, Pai da Eternidade e Príncipe da Paz. Um rei para unir todos os povos. Um reinado sem fim, impossível de ser usurpado.

Herodes sentiu o sangue gelar. Ele não admitiria perder seu trono para uma criança. Movido por ganância e crueldade, tramou um plano sinistro. Teria paciência. Deixaria que os viajantes fizessem o trabalho sujo. Com voz aveludada e olhar malicioso, indicou para a comitiva, o caminho de Belém. – Quando acharem o menino, por favor, me avisem. Me contem onde ele está, para que eu também o adore. -  Sensíveis ao toque divino, os sábios do oriente não retornaram ao palácio. Não entregaram a localização de Jesus. Sabiam que em posse desta informação, o rei mandaria matar a criança. Voltaram para casa por um outro caminho. E com isso, Herodes enlouqueceu. Ele ordenou que todos os meninos abaixo dos dois anos de idade fossem mortos. Uma chacina covarde. Sangue e luto nas ruas do reino.

Baseado na conversa que teve com os visitantes, Herodes calculou a possível idade do menino rei. Dois anos. E é exatamente esta informação que torna mais relevante a visita dos sábios do oriente. Eles caminharam “muito” tempo. Meses após meses. Quantos camelos ficaram no caminho? Quantos servos voltaram para casa? Quantos saqueadores encontraram na estrada? E mesmo assim, a jornada não foi interrompida. Enquanto a estrela brilhasse nos céus, haveria um rei na terra para ser adorado.

E esta não é a essência da natividade? Uma jornada em busca de propósitos eternais? A jornada de abnegação do velho José, implodindo seu ego ao receber como esposa a mulher grávida de um filho que não teria seu sangue. A jornada devotada de Maria, abrindo mão da juventude para gerar uma criança que viveria em prol da cruz. A jornada cósmica de um Deus, que deixando para trás seu trono nos céus, se aninhou desconfortavelmente no ventre de uma mulher. Ações motivadas por amor e fé. O nascimento de Jesus é a catarse que nos catapulta para uma nova vida. Inspira mudanças, provoca transformação. Mas, não existem trovoadas nos céus.  O despertador não toca. Não soam alarmes. Apenas sinais. E poucas pessoas dispostas a percebe-los e colocar os pés na estrada empoeirada. Queremos mesmo é continuar dormindo. O sono da indolência. Sonhando com unicórnios, duendes e potes de ouro.

E nesta utopia mundana, esquecemos de olhar para os céus. Não percebemos a estrela mais brilhante. Não temos um ponto de luz a nos guiar. E nestas condições, se perder no caminho é só questão de tempo. Desviar do objetivo se torna a opção mais agradável. Nos conformamos em estar onde Deus "não" está. Corremos na direção do escuro. Nadamos a favor da correnteza, sem perceber que lá na frente existe um abismo infindo. Todas as facilidades encontradas longe do Cristo não passam de armadilhas. Qualquer manifestação de vida onde Deus não exista em cada partícula, é apenas imitação do verdadeiro viver. Não passa de mentira.

Os sábios do oriente sabiam a fórmula da felicidade. Correr para Deus. Estar onde Deus está. Anjos não se apresentaram para eles. Profetas não instruíram seus antepassados. Mesmo assim, os estrangeiros creram. Não entediam o que estava acontecendo, mas deram vazão ao espírito. Dois anos seguindo o sinal revelado nos céus, mesmo que em algumas noites, as nuvens impossibilitassem a visão das estrelas. Quando você não inclui a “desistência” em sua lista de possibilidades, o “amanhã esperado” está sempre ali na esquina, após o “hoje sofrível e arrastado”. Aqueles homens tinham uma missão. E não abririam mão dela. Eles não faziam ideia da importância de cada passo dado, e mesmo assim, continuavam andando. Aquela jornada nunca foi obra do acaso. Havia um propósito absurdamente maior. Na busca por salvação, eles iriam salvar a vida do Salvador de nossas vidas.

Mateus nos conta que ao chegarem em Belém, eles perceberam que a estrela brilhava com intensidade sobre uma casinha humilde. Seus corações bateram acelerados. Os pelos do corpo estavam em riste. Havia uma áurea de paz no ar. Deus estava ali, e todos se sentiram em casa. Quando bateram na porta, José os recebeu com um sorriso gentil (Bélem era uma terra boa para se educar crianças). Maria estava sentada no chão da sala, brincando com Jesus. José havia feito alguns bloquinhos de madeira. Mãe e filho se divertiam construindo uma “ponte” entre dois banquinhos habilmente esculpidos a partir de um velho carvalho. Ponte. Ligação. Esta seria a especialidade daquele menino. O menino Deus. O rei do mundo diante de seus súditos mais leais. Os príncipes da terra se rendendo a soberania do Emanuel.

Penso que Jesus se levantou apoiando em Maria, e caminhou desengonçado com os bracinhos estendidos na direção daqueles homens. Afinal, não é isto que Deus tem feito desde a antiguidade? Basta um passo humano em sua direção para que Ele corra quilômetros pela estrada da história, avido por um abraço em seus filhos pregressos. E quantos passos os sábios do oriente tiveram que dar até chegarem em Jesus? O quanto Deus estava ansioso por aquele encontro?

Maria segurou o menino pelo dorso da fralda. – Calma, pequeno... A mamãe te leva até lá.

José mal teve tempo de recepcionar os “visitantes” inesperados, e todos já estavam de joelhos. Homens barbados se desataram em lágrimas emocionadas. A jornada tinha chegado ao fim. E como valeu a pena! Tudo agora fazia sentido para eles. Fariam o mesmo caminho mil vezes se fosse preciso, apenas para viver o momento. Tocar o rosto daquela criança. Os sábios do oriente se voltaram aos pais: - Queremos presentear o menino! -  Eles abriram suas valises e ofereceram presentes: Ouro, mirra e incenso.

A família de Jesus não tinha luxo. E Deus jamais aceitaria que seu filho fosse “bajulado” com presentinhos caros. Mas, ali havia um propósito ainda incompreendido por meros mortais. Em poucos dias, Herodes mandaria matar todos os meninos do reino, e Jesus, morreria entre eles. Sem parábolas. Sem Sermão do Monte. Cegos na escuridão. Aleijados se arrastando. Leprosos excluídos da sociedade. Mortos enterrados e mães enlutadas. Sem cruz. Sem salvação. Uma tragédia sem precedentes.

Deus interviu. Maria e José foram orientados a fugir para o Egito, e ali permanecerem até a morte de Herodes. Mas, esta seria uma fuga extremamente cara, inviável para uma família pobre. E como se manter numa terra estrangeira por tanto tempo, se o dinheiro ganho com a carpintaria mal dava para pagar as contas do mês?

Ouro. Mirra. Incenso. Um ciclo salvífico se fechando em torno da humanidade. Podemos encontrar muitos significados metafóricos para os presentes que Jesus recebeu naquele dia, mas, não se pode negar o aspecto mais prático da questão. Itens valiosos num momento de crise financeira. A providência divina chegando na casa de uma família. Deus usando mãos humanas para socorrer ao próprio Deus. Não é lindo isto? E entender este mistério torna a peregrinação dos sábios do oriente num feito ainda mais significativo.  Pense: - E se aquele homem tivesse desistido da jornada? O que seria de todos nós agora? Estaríamos aqui? Alguém celebraria o natal?

Agradeço a Deus todos os dias pela coragem e a perseverança que norteou o caminho destes bravos. E especialmente pelo fato de que eles não enfrentaram as dificuldades do caminho, com a mesma determinação que demostro na maioria das vezes. Não se omitiram da responsabilidade. Não temeram os perigos. Não ponderaram riscos. Seguiram. Continuaram. Adoraram. Entregaram seus presentes. Na verdade, foram os presentes.

Ouro é presente dado aos reis. Incenso é mimo ofertado aos sacerdotes. Mirra é um regalo oferecido aos profetas. Jesus era tudo isto. Muito mais. Era Deus. E o que Deus deseja ganhar?

Tenho uma sugestão para aqueles que desejam dar ao Senhor, o presente ideal. Anote aí:

Encontre uma caixa bem grande.
Encape com papel marche.
Decore com um belíssimo laço vermelho.
E dentro dela, coloque sua vida.  

Seja o ouro, refinado, purificado e moldado pelo hábil escultor. Seja o incenso, exalando um perfume suave que inebria os céus com sua adoração. Seja a mirra, deixando que o amor do próprio Deus transborde em cada poro da sua existência.

E este foi o grande presente que o menino Jesus recebeu daqueles homens vindos de tão longe. O suor do rosto. As bolhas nos pés. As queimaduras na pele. As cicatrizes adquiridas no caminho. Eles devotaram a própria vida ao Rei. Fizeram da busca pelo Cristo, o motivo de acordarem todo dia. E aos olhos de Deus, não pode existir presente maior. E nem mais valioso.

E você tem este presente em suas mãos, bem agora. E ali está Jesus, sorrindo na manjedoura. Apenas esperando. Você não precisa de anjos cantando para começar a jornada. Nem de estrelas iluminando o caminho. O próprio Cristo é a estrada, a ponte e a luz. Entregue o presente sem demora. Não durma enquanto os anjos ensaiam. Não saia do caminho por que a estrada tem buracos. Insista, mesmo que as estrelas se apaguem. Não quebre o ciclo da salvação. Deixe o natal acontecer em cada respirar. Um menino nos nasceu. Um filho nos foi dado. Deus está entre os homens. Não o deixe esperar mais.


terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Investimento Pesado

Não são as ervas más que afogam a boa semente, e sim a negligência do lavrador.
(Confúcio)


No início de seu ministério, Jesus utilizava elementos bem literais em seus sermões, fazendo uma analogia pratica entre itens do cotidiano e a verdade sobre o Reino dos Céus (a ferpa no olho, a casa sobre a montanha e os pássaros). Uma mensagem simplificada e palatável para todas as camadas sociais de seu tempo. Porém, com a recusa dos judaizantes em aceitar a mensagem, e a recriminação pública que os religiosos praticavam contra sua pregação, Jesus lançou mão de um recurso literário muito comum entre os judeus e passou a ensinar por parábolas.

Basicamente, “parábola” (no contexto bíblico) trata-se de uma história terrena com um significado espiritual. Uma mensagem em “camadas”. Conteúdo que transcende o discurso. Ensinamentos incrustados nas entrelinhas.  O total entendimento da mesma, só é possível se o ouvinte (ou o leitor) estiver disposto (e apto) para buscar a verdade além das palavras. Assim, aqueles que de fato desejavam compreender profundamente a mensagem de Cristo, eram instruídos com doutrinas eternas detalhadas com riqueza de minucias, mas, para os que “ouviam por ouvir”, aquelas “histórias” não passavam de fábulas esquecíveis. Ao ser questionado por seus discípulos sobre este novo método de ensino, o próprio Jesus explicou:

– “Por essa razão eu lhes falo por parábolas: Porque vendo, eles não vêem e, ouvindo, não ouvem nem entendem. Neles se cumpre a profecia de Isaías: ‘Ainda que estejam sempre ouvindo, vocês nunca entenderão; ainda que estejam sempre vendo, jamais perceberão. Pois o coração deste povo se tornou insensível; de má vontade ouviram com os seus ouvidos, e fecharam os seus olhos. Se assim não fosse, poderiam ver com os olhos, ouvir com os ouvidos, entender com o coração e converter-se, e eu os curaria’. Mas, felizes são os olhos de vocês, porque vêem; e os ouvidos de vocês, porque ouvem” (Mateus 13:10-17).

Umas das mais famosas parábolas contadas por Jesus, aos ouvidos incautos pode parecer apenas uma publicidade bancaria para atrair investidores, quando na verdade nos revela muito sobre a grande responsabilidade que repousa em nosso “ministério” individual. 

A história é mais ou menos assim...

Um homem muito rico convocou alguns de seus funcionários mais leais, e confiou a cada um deles, altas quantias em dinheiro vivo. Para uns mais, e a outros menos. Todos foram orientados a administrarem bem a verba recebida, enquanto ele estivesse ausente do país. O que fariam com o dinheiro, ficava a cargo da criatividade e competência de cada um. A moeda corrente utilizada nesta transação, era conhecida como “talento”.

Quando o empresário retornou de seu “tour” pelo mundo, os funcionários foram convocados para a prestação de contas. O primeiro, (que tinha recebido cinco talentos) informou ao seu senhor, que havia investido aquela quantia, e com muito trabalho, dobrado o capital. O senhorio ficou tão entusiasmado com este resultado, que decidiu recompensar o seu empregado, repassando para ele os dez talentos acumulados.

O mesmo aconteceu com o segundo funcionário, que por sua vez, havia transformado em quatro, os dois talentos recebidos.

Mas quando o terceiro empregado se apresentou, tinha nas mãos apenas o talento que inicialmente lhe fora confiado. Ele explicou ao patrão, que em decorrência de ter recebido “menos” que os demais, preferiu não correr riscos. Assim, em nome da “segurança patrimonial”, manteve o seu talento trancado em um cofre, para devolve-lo intacto. Integral.

O patrão ficou furioso com tamanha negligencia. Ele não era o tipo de empresário que tolerava a inércia do seu dinheiro. Descrevia a si mesmo como sendo um “homem duro que ceifava onde não se semeava e ajuntava onde não espalhava”. Não foi surpresa para ninguém, quando sua ira se acendeu contra o servo “excessivamente” cauteloso. Com a boca espumando e os olhos flamejantes, o senhorio esbravejou:

- "Servo mau e negligente, quanto prejuízo você me deu... Se ao menos tivesse depositado meu dinheiro em um banco!" 

Então aquele homem de coração enrijecido, indignado como o “prejuízo” decorrente da negligencia, ordenou que o servo improdutivo fosse demitido, e o portas fechadas sob suas costas, para nunca mais se abrirem.

No sentido pragmático, o talento desta história refere-se a uma medida de massa utilizada pelo comércio da época para medir ouro e prata. Cada talento pesava aproximadamente 32 Kg (guarde este número). Mas, lembre-se. Jesus estava contando uma “parábola”. É preciso escavar um pouco mais. Enxergar além das palavras ditas. O Mestre queria transmitir aos seus seguidores uma profunda mensagem espiritual escondida nas entrelinhas. E os discípulos que se mantiveram atentos, puderam aprender uma verdade valiosa sobre o Reino dos Céus...

Todos somos servos, e recebemos de nosso Senhor alguns “talentos” que devem ser “empregados” para que haja expansão de seu Reino aqui na terra. O Senhor toca a humanidade pelas nossas mãos e caminha sobre as ruas das cidades através de nossos pés. O representamos. Fomos selecionados para esta importante tarefa. Carteira assinada como embaixadores dos céus. E Deus nos capacita para este trabalho. Nem todos possuem as mesmas aptidões e destreza, mas ninguém foi convidado a fazer turismo. As pequenas partes formam um todo. Um ajudando ao outro e Deus velando por todos nós.  

Dentro de seu ouvido, existe um pequeno "sistema operacional" chamado de "aparelho vestibular", formado pelo vestíbulo, o sáculo e o utrículo. Ele se liga a cóclea, que é o centro de nosso sentido de audição. O nome desta pequena parte de seu organismo é "Labirinto". É bem possível que você sequer soubesse da existência de um "utrículo" dentro de seu ouvido, mas ele está lá. E espero que esteja funcionando bem. Esta região quase desconhecida da sua anatomia, é responsável por te manter em pé enquanto caminha. O centro do equilíbrio corporal. Já ouvir falar de labirintite? De se sentir sobre um prédio de cem andares mesmo estando no chão? A sensação de embriagues sem ter ingerido álcool

O "labirinto" não tem a relevância de um coração. Não é examinado com a mesma regularidade dos pulmões. E isto não diminui sua importância real. O propósito que exerce no corpo. Se ele decide parar de funcionar corretamente, tudo desaba.

Assim é o Reino de Céus. Dividido em tarefas. Distribuído em cotas especiais. O talento. Os talentos. Alguns, em decorrência de sua capacidade pessoal,  vida devocional diferenciada ou inquestionável escolha divina, recebem “mais” do que outros. Os valores, porém, são apenas detalhes. O fato realmente determinante, é que “todos” são agraciados (ou seria responsabilizados?) com um generoso “capital de giro”.

Muitas vezes, por acharmos que comparado aos demais, nosso talento é pequeno e indigno de ser trabalhado, acabamos presos numa zona de conforto chamada “omissão”. É comum alguém pensar que seu “talento” é tão insignificante, que não faz a menor diferença mantê-lo no “mercado”. E o esconde trancado em um cofre. Este cofre tem muitos nomes. Medo. Insegurança. Complexo de Inferioridade. 

- A igreja não precisa de mim.
- Que importância posso ter para o Reino?
- Qual o meu valor?
- Não tenho nada para apresentar ao Senhor...

Será que realmente existem mendigos da fé, para os quais o Senhor deposita apenas moedinhas numa caneca de lata esquecida no chão, enquanto bilionários espirituais andam de jatinhos banhados a ouro? Seguramente, está não é a verdade. Nosso Deus é dono do ouro e da prata, e não mede despesas ao investir em seus “corretores” aqui na terra. Eu e você. E isto nada tem a ver com ostentação ou sucesso financeiro. Quanto mais recebo de Deus, mais eu diminuo para que ele cresça.

 - Mas, Miquéias... Eu só tenho um mísero talento. O que posso fazer com ele?

Você pode começar pesquisando a tabela de câmbio. Se dedicar a uma matemática simplista e entender os números. Alguma vez na vida, você já parou para pensar no valor real de um único talento?

Primeiro vamos analisar o lado prático da questão. Considerando que atualmente, você pode comprar 100 gramas de prata pela bagatela de R$ 381,00; e cada grama de ouro chega a valer até R$ 245,00; podemos concluir que o servo negligente teria recebido em valores modernos cerca de R$ 121.000,00 (caso o talento fosse de prata), e sendo ele de ouro, esse valor subiria para... R$ 7.840.000,00... Quase oito milhões de reais!

Dá para esconder um valor destes?  É pouco o investimento feito pelo Senhor em seus servos menos “capacitados”? É digno se sentir menosprezado recendo uma fortuna espiritual nas mãos?

Deus investiu pesado em você, usando uma moeda que vale mais que prata ou ouro. O sangue de seu Filho. A unção do Santo Espírito. Valores incorruptíveis, blindados contra as oscilações financeiras. Um tesouro eterno confiado em nossas mãos, e que deve ser usado para angariar novos bens que farão transbordar a casa da moeda celestial. Almas e almas. A riqueza patrimonial de Deus.  

Mas, cuidado. Ao ter em mãos tamanha fortuna, aja com cautela e responsabilidade. Jamais se deslumbre com valores estratosféricos, pois espiritualmente falando, é preciso fazer com que esses números se multipliquem cada vez mais. E mais. Nunca é o bastante. O mundo possui quase oito bilhões de pessoas sedentas de Deus, e maioria caminha em direção a morte, sem se quer admitir a própria sede. É preciso fazer valer cada centavo. Cada grama de nosso talento. Usá-los integralmente para o crescimento do Reino. E continuar trabalhando mesmo que os cofres estejam abarrotados. 

Lembre-se que no dia da prestação de contas, a quem muito foi “dado” também muito será “cobrado”. Deus é mui generoso e investe prazerosamente em cada um de nós. Só que o dia do acerto, de contas, Ele será austero e implacável. Não haverá desculpas capaz de convence-lo, e cofres lacrados não justificarão nossa improdutividade. A pergunta que ecoará pela eternidade é: - O que fizestes dos talentos que te dei?