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sábado, 20 de outubro de 2018

Pedido de Desculpas

Se nossa vida não servir para servir, para que ela serve?
(Pr. Gilmar Galvão)


Tenho assuntos inacabados com a mulher de Jó. E de antemão já aviso que a culpa é toda minha.... Sinto que denegri a sua imagem, mesmo tendo boas intenções. Confesso que durante o afã de algumas ministrações, a fim de reforçar ainda mais o caráter ilibado do marido (como se fosse preciso), vilanizei de forma irresponsável uma esposa dedicada e digna de muitos elogios... E tenho certeza que não estou sozinho neste ato de injustiça... Já ouvi dezenas de pregadores recriminando “toda a vida” desta mulher, usando como base teológica apenas uma frase proferida em extremo desespero... Mas, cada um é dono da sua consciência... Falarei unicamente por mim, retratando-me publicamente pelas injúrias destinadas a uma personagem da Bíblia, que o tempo (e a maturidade) me levaram a admirar... E esta mudança drástica de perspectiva parte de uma constatação simples, realista e inquietante: - A mulher de Jó sempre foi muito mais crente que eu!

Jó foi um homem notável, sobre o qual o próprio Deus deu testemunho: - Tens observado o meu servo Jó? Homem integro, reto, temente a mim e que se desvia do mal (Jó 1:8). Seria preciso horas fio para discorrer com minúcias de detalhes todas as qualidades do patriarca de Uz. Pai dedicado, marido exemplar, patrão admirado por seus funcionários e figura publica respeitada em toda região. Temente à Deus! Cumpridor de seus deveres! Paciente na tribulação! Humilde, apesar das riquezas! Vigilante contra o pecado! Adorador por excelência.... Nada há que desabone o caráter de Jó ou manche seu comportamento exemplar, na fartura ou na provação. - Mas, e quanto a sua esposa? Que atributos costumamos lhe conceder? Geralmente, todo o seu caráter, postura e comprometimento é julgado a partir de uma única frase dita por ela e registrada em Jó 2:9: - Ainda reténs a tua sinceridade? Amaldiçoa a Deus e morre!

Com base nestas poucas palavras, por muito tempo “me atrevi” a construir uma personalidade, bem como especular seu comportamento, contrariando os indícios explícitos nas entrelinhas da própria história. Sempre descrevi a mulher de Jó (da qual nem o nome conhecemos, mas carinhosamente chamarei de “Dona Josi”), como uma pessoa egoísta, mal-agradecida, infiel, descontrolada, desajuizada e digna de recriminação. - Como ela pode pedir a Jó que amaldiçoasse à Deus e morresse logo para a deixar em paz? E toda a minha argumentação se sustentava na resposta emblemática dada por Jó: - Você está falando como uma louca... Aceitamos o bem de Deus com alegria, e agora não suportaremos o mal?  Como eu vibrava com esta frase. Jó colocando a mulher insensata no seu devido lugar! - Como assim “Dona Josi”? Ousas comportar-se de maneira tão indigna? Murmuras contra Deus? Desejas a morte do marido?  Que criatura vil e perversa, portadora de amargura e porta-voz de apostasia.... Resumindo... um perfeito exemplar de personagem má por essência, exatamente o oposto de todo o bem representado por Jó... 

Como me envergonho deste pré-conceito, raso e deturpado. Graças ao bom Deus, em todas as manhãs somos abençoados com a oportunidade da mudança. Como sabiamente ponderou a poetisa (e contista) Cora Coralina, “todos estamos matriculados na escola da vida, onde o mestre é o tempo”... E foi exatamente o passar dos anos, que me revelou novas perspectivas sobre a história que ouvi e contei tantas vezes. É muito fácil fazer juízo sobre a personagem, sendo um mero leitor do roteiro. Mas, a vida ensina com rigor e destreza, nos levando ao centro do palco. E em cada vez que me vi obrigado a lidar com decepções, sentia na pele a falta da paciência de Jó e a coragem de sua mulher. Simples assim...

Entendi que não tenho “autoridade” para chamá-la de louca, ou qualquer “licença moral” que me credencia a imputar–lhe rótulos pejorativos. Nem mesmo Jó fez isso, e ele conhecia a “Dona Josi” muito melhor do que eu, não é? Na verdade, o patriarca mostra-se surpreendido com a frase dita pela esposa, que em nada condizia com sua postura até o momento: - Tome cuidado com as palavras, querida... Você "está falando" como uma mulher insensata! Não é recriminação, e sim um conselho crítico construtivo... Se o patriarca identificou que “naquele momento” ela “falava como uma louca”, subtende-se que sua postura rotineira era de total coerência... E Jó continuou: - Aceitamos o bem de Deus de bom grado... Porque rejeitaríamos o mal que Dele provém? Que informação rica em detalhes intrínsecos... “Nós aceitamos”... “Nós não vamos rejeitar”... Ambos, marido e mulher, fundidos numa só carne, na saúde ou na doença, na pobreza e na riqueza... O patriarca não estava impondo uma condição para sua esposa, mas sim, lhe abraçando apertado enquanto a escuridão lançava-se esfomeada sobre ambos.

Vamos lá...

Os primeiros capítulos de Jó descrevem uma sucessão de desgraças sem precedentes, recaindo sobre um único indivíduo. Em questão de minutos, ele (o homem mais rico do oriente), descendeu ao fosso da miséria. Primeiro, um violento grupo de sabeus atacou a propriedade, matando a espada muitos empregados afim de roubar quinhentas parelhas de boi e quinhentos jumentos. Enquanto isto, nas pastagens próxima a residência, uma chuva de fogo caiu sobre os rebanhos de ovelha, matando sete mil animais e seus respectivos pastores. Quase no mesmo instante, três grupos distintos de salteadores invadiram o campo onde as cáfilas descansavam, assassinaram os empregadores e tomaram para si três mil camelos. Num instalar de dedos, Jó perdeu tudo o que tinha... E a situação iria piorar...

O patriarca era pai de sete moços, e três moças, notadamente as mais belas da região. Naquela tarde, toda a prole estava reunida na casa do irmão mais velho, onde comiam boa comida e bebiam vinho em abundância, sem qualquer preocupação relevante. De repente, um tornado surge no horizonte, e velozmente se lança sobre a residência. Todos os cômodos são tomados por ventos furiosos, danificando a estrutura do imóvel. O edifício implode em suas próprias bases, matando todas as pessoas em seu interior.... Conforme cada nova notícia lhe era trazida, os olhos de Jó transbordavam-se em lágrimas e uma dor lacerante destruía o coração. Quando soube que toda a sua descendência estava dizimada, rasgou as vestes, se lançou ao solo e adorou: - Nú eu nasci... Nú eu morrerei! Tudo que eu tinha era de Deus... Ele me deu, e tem todo o direito de tomar de volta... Bendito seja o nome do Senhor!

Este sim é um homem digno de aplausos. Passou por todo este sofrimento, sem deixar esmorecer sua fé. E mesmo diante da morte, não desistiu da vida. Quando chagas purulentas cobriram seu corpo, do alto da cabeça até as solas dos pés, sua devoção não foi afetada. Ele fez do Senhor, o combustível daquela infame existência dilacerada. Sua fé o mantinha vivo, enquanto os dias estavam recobertos por cinzas, gemidos e pústulas... É neste cenário de desolação e desesperança, ciente que o último folego de vida em Jó era exatamente sua crença inabalável em Deus, que a esposa angustiada pede ao marido que “abandone ao Senhor, a fim de morrer em paz”... Isto a torna numa figura vil e desprezível? De maneira alguma.... Apenas evidencia o quão frágil é a minha fé, e como tenho me acovardado diante das intempéries vividas. Afinal de contas, repercutimos a exaustão o tormento vivenciado pelo do patriarca, e esquecemos que a pessoa que se manteve ao seu lado durante o processo, também sentiu na pele a dor de sofrimentos indescritíveis.

Aquela mulher acordou “socialite” e foi dormir “mendiga”. Numa mesma noite, chorou sobre o caixão de seus dez filhos, e velou inconsolada o corpo de muitos netos. E se manteve ali. Firme. Segurando a mão do marido. Enlutada e falida, mas presente. Não há registro de discursos iracundos ou manifestações de revolta para com Deus. Jó não faz qualquer crítica ao comportamento da esposa, quando nos capítulos seguintes, lamenta a própria sorte. Ele se queixa ao Senhor sobre temas cruciais da existência, mas em nenhum momento aponta seu casamento como parte do problema. Jó era grato pela companheira com quem partilhou as lágrimas. Ela estava lá quando a doença devorou o corpo, a peste corroeu os membros e os vermes brotaram na carne apodrecida.... Quando ele se tornou um saco de pele e ossos, e apenas a gengiva ainda não tinha sido tomada pela infecção, a esposa lhe foi enfermeira.... Quando o mau cheiro do hálito tornou-se insuportável, os beijos foram substituídos pela companhia acalentadora...

Lembro-me quando uma amiga de nossa família, que há meses lutava contra um câncer devastador, pediu que orássemos por ela, não pela cura, mas sim clamando ao Senhor para que a levasse... Nas suas palavras, ainda havia forças em seu corpo para lutar contra a doença, porém, o sofrimento no olhar dos filhos e netos, era algo que ela não podia mais suportar... Jó foi provado ao limite, e a mesma provação se estendeu a sua esposa... Se num momento de angústia profunda, ela pediu ao marido para desistir de Deus e da vida, não sou eu quem deve repreendê-la... Muito menos recriminá-la... Afinal de contas, desisto de algumas batalhas simplesmente porque me assusto com o barulho dos passos no fronte inimigo... Deixo para trás aqueles a quem jurei amor, apenas porque não fazem mais parte da minha igreja...  Revolto-me com Deus sempre que uma segunda feira amanhece chuvosa... Ao invés de criticar a esposa de Jó, tenho é que bater continência para sua coragem, já que ela passou de pé, por lugares que eu não conseguiria passar me arrastando.

Por isto, sinto-me obrigado a escrever esta retratação. Preciso melhorar muito, para ser um pouco parecido com alguém que julguei ruim. E isto é bom.... Mostra que estou aprendendo a me avaliar, e com humildade, reconhecer erros e rever conceitos. A forma como eu enxergo as pessoas nada diz sobre elas, mas revela exatamente quem eu sou... Dias atrás, pedi a uma jovem da igreja que se preparasse para louvar ao Senhor no culto de domingo. Ela imediatamente recusou a solicitação, pois estava insegura e se errasse a música não iria suportar o “riso debochado” da platéia. Surpreso com a resposta, argumentei que as pessoas vão à igreja para cultuar ao Senhor, e não criticar a performance alheia: - Fique tranquila! Mesmo que você erre todo a letra da canção, ninguém irá rir de você.... Estamos na Casa de Deus.... Servos do Senhor não agem desta maneira! E então, para meu espanto e tristeza, ela retrucou sem qualquer constrangimento: - Como não? Eu mesmo “casco o bico” de todo mundo que erra! Lamentável... E geralmente, somos todos assim, sempre “achando” que nosso “achismo” é a régua que paramenta o mundo. Quando meu olhar sobre o próximo é tocado pelo colírio da bondade, imediatamente percebo que as pessoas a minha volta se tornam melhores. Seria algo como criticar o vizinho pelas roupas sujas no varal, até perceber que na verdade, era a vidraça da janela de casa que sempre esteve imunda.

É muito fácil criticar alguém por “não aceitar de bom grado” as tribulações da vida, enquanto tudo vai bem comigo e minha casa. Mas, continuarei louvando ao Senhor e sendo grato por todas as coisas, quando as ovelhas forem incineradas nos campos e a enfermidade for parceira de cama? Será mesmo que nenhuma palavra ofensiva, questionadora e furiosa escapará por entre os dentes? Cantaria hinos de gratidão no velório simultâneo de muitos entes queridos? Jó não entendia o motivo de tamanha provação, mas permaneceu fiel ao Senhor, apesar da incompreensão. A esposa, por sua vez, foi atingida diretamente pelas tragédias que Deus permitiu recair sobre o patriarca, e mesmo assim, se manteve leal a ele. Se aqui existe um único “comportamento” a ser “criticado”, existe também um “exemplo a ser seguido”... Somos uma geração mal-agradecida, que “se ofende com Deus” (e ofende à Deus) por causa de unhas encravadas e internet lenta. Deixamos de ir à igreja porque está frio e nos esquivamos dos trabalhos evangelismo em decorrência do calor. Quando o Senhor nos leva para a fornalha, com o intuito de “refinar” o ouro, pervertemos a tratativa e optamos pela autocombustão, revelando que pensamentos e obras não passam de madeira, feno e palha... O que sobra depois do fogo?

A provação do casal não foi aleatória. A perseverança de Jó e a lealdade da esposa decretaram a vitória do “bem” contra o “mal”. O nome de Deus foi engradecido e a arrogância de Satanás caiu por terra. A angústia intensificada deu lugar a um recomeço de felicidade. O Senhor restituiu em dobro tudo aquilo que fora tirado. Rebanhos maiores... Relacionamentos melhorados... Jó se tornou o homem mais rico da terra. E segundo o relato bíblico, a família cresceu novamente. Casa cheia outra vez.... Dez novos filhos e uma enxurrada de netos... 

E quem os pariu?

Jó renasce das cinzas e sua semente novamente é lançada ao chão, gerando muitos frutos. Geralmente, ressaltamos o vigor de Jó, sem dividir os méritos com sua esposa. Depois de tanto sofrimento, lá estava ela, inteira e revigorada, gerando e dando luz a uma nova prole. Se Deus presenteou a Jó com novos rebentos, foi a mulher quem os carregou no ventre, sentiu as dores do parto e amamentou cada criança. Quando aconselhou ao marido para desistir da vida, estava despida de esperanças... A morte de Jó também seria seu fim. Que chances teria uma viúva pobre, desprovida de filhos e abrigo? Jó, porém, não desistiu. E em sua postura íntegra, trouxe a esposa de volta para a batalha. Juntos até o final, mesmo que o desfecho não lhes agradasse... E literalmente, o que não os matou, fez deles uma fortaleza... Filhos na velhice... Recomeços mesmo depois dos finais decretados...

Trabalho numa empresa que mantém um pequeno canil onde recolhe cãozinhos que foram abandonados na região. Meses atrás, um surto de parvo-virose se espalhou entre os animais, e todos acabaram contaminados, o que infelizmente levou a maioria deles ao óbito. Mas, alguém sobreviveu. A única... Uma cadelinha mirrada, que “literalmente” caminhou sobre o vírus, e não sucumbiu a doença. E nos dias seguintes, ganhou peso... Musculatura... Ficou maior, visivelmente revigorada e com a pelagem mais brilhante... De um cenário de morte, destacou-se a vida... Mas... Como? Dias atrás, enquanto conversava com o dono da empresa, ele me contou um pouco da história desta cadelinha, e de como era frágil quando foi recolhida.... Estava muito adoentada, sendo necessárias visitas constantes ao veterinário... Sempre a base de vacinas e remédios... E quem diria que a saúde debilitada no passado, salvaria sua vida no futuro?  Tendo que lidar com tantas doenças, o organismo desenvolveu anticorpos... As vitaminas tomadas com regularidade fortalecerem as defesas biológicas... O que não a matou, a deixou mais forte, inclusive para sobreviver quando cães outrora saudáveis morriam em sua volta. Paulo descreveria este fenômeno como sendo “a leve e momentânea tribulação produzindo peso de glória”. Isto me lembra uma frase de Daniela Lacerda testificando que a quantidade de vezes em que caiu, chorou e se magoou, é insignificante se comparada a quantas vezes Deus a tinha ensinado a melhorar...

E esta é uma lição que não se aprende em livros ou tutorias no youtube. É preciso vivê-la. Ganhar experiência. Passar pelo forno sem apresentar trincas ou rachaduras. Eu ainda estou em etapas iniciais deste processo de aprendizado, e mesmo assim, por mais de uma vez, já pensei em trancar a matrícula e abandonar o curso. Tenho analisado o curriculum escolar com olhos egoístas e pragmáticos, visando o que é bom para mim (no agora), sem atentar para o papel que me foi reservado nos planos do Criador (na eternidade). E quando capengo em matérias básicas como “SUBMISSÃO A DEUS” e “LEALDADE AO PRÓXIMO”, quais méritos tenho para desmerecer quem tem diploma e pós-graduação?

Mil perdões, Dona Josi... Que seu exemplo seja minha inspiração no abandono desta postura de crente afrescalhado que tenho tido, tornando-me uma presença necessária e desejável, capaz  de aliviar a dor e o sofrimento das pessoas a minha volta (mesmo por vezes derrapando nas palavras), enquanto faço de minhas próprias mazelas, um esboço para novas histórias!



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