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quinta-feira, 25 de outubro de 2018

A Língua Incendiária

É melhor ser rei de teu silêncio do que escravo de tuas palavras.
(William Shakespeare)


Dizem os antigos que por muito falar, acaba-se dando bom dia a cavalos. E de fato, na sabedoria brejeira existe grande verdade. No excesso das palavras reside uma multidão de erros.... Alguns imperceptíveis e rapidamente esquecidos, outros crassos e calamitosos, que nem mesmo com o passar dos anos, é possível esquecer... Quem muito fala, pouco escuta e quase nunca aprende. Assim, continua errando, falando cada vez mais e chafurdando-se num lamaçal de boçalidades. Reflexão, introspecção e silêncio precavido sempre pavimentaram o caminho da sabedoria. Não é sem motivos que Tiago foi categórico ao afirmar em sua epístola: - Que todo homem esteja apto a ouvir e seja tardio no falar... Deus nos deu uma clara evidência quando projetou o corpo humano e incluiu no pacote “dois” ouvidos e apenas “uma” boca... A proporção não deixa dúvidas... Se a capacidade para ouvir não for o dobro da necessidade de falar, alguma coisa está terrivelmente errada na equação (Tiago 1:15).

E quando se refere a "ouvir", Tiago não fala da capacidade auditiva que transforma a vibração do ar em sons.... Isto, a maioria de nós faz... E muito bem.... Ouvimos até o que não deveria ser ouvido.... Na verdade, por vezes nossa audição capta palavras que sequer foram ditas ou toma como verdade, mentiras que o vento espalhou a esmo... A capacidade humana de assimilar vozes corrompidas e notas pervertidas sempre foi apuradíssima. Frases descartáveis e discursos contagiosos entram pelos ouvidos em debalde e toneladas... Grande parte deste material é alocado para o subconsciente, de onde influencia efetivamente nas tomadas de decisões, e uma outra generosa quantia escorrega até os recônditos do coração, onde o solo é tão fértil, que até mesmo nacos de fezes se transformam em sementes produtivas... Sabe-se lá exatamente “do que”...

Tiago na verdade, faz alusão a escolha consciente e criteriosa dos motes que irão pautar os debates acalorados nos saguões da alma. Por estes corredores enevoados, a Exma. Srª Carne (presidente vitalícia do comitê para conselhos temporais e externos) e Exmo. Srº Espírito (relator do conselho de ética para assuntos internos e eternos), dialogam anos a fio sobre os temas mais relevantes da existência, obviamente considerando o código legislativo da consciência humana, em constante revisão. Membros de ambos os partidos (liderados por Srª Carne e Srº Espírito) podem opinar, inquirir e até mesmo promover mudanças constitucionais, desde que o argumento apresentado seja convincente, e pelo menos uma das bancadas aprove por unanimidade. Geralmente, alguém pertencente ao outro lado, é sumariamente contrário a nova emenda, mas acaba aceitando a vontade da maioria... Lei é lei, e não deve ser questionada... Regra válida apenas para a legislação que o homem lavra em suas entranhas, com base em critérios hedonistas (e falíveis) sobre  o certo e o errado.  

No corpo humano existe uma grande biblioteca chamada MENTE, na qual a Srª Carne e Srº Espírito realizam pesquisas diárias. Toda a informação que tramita na alma, obrigatoriamente passa por esta jurisdição, onde é analisada e filtrada, seguindo para descarte ou arquivamento. A Biblioteca não gera conteúdo próprio, mas recebe diariamente um número incontáveis de malotes que entram por duas grandes portas chamadas “OUVIDOS”, além de possuir um sistema complexo de monitoramento externo por onde são obtidas imagens (em tempo real) do mundo exterior. Este sistema eficiente de vigilância recebe o nome de OLHOS. Todo material considerado “útil” é enviado ao CORAÇÃO, onde numa pré-sala, argumentos partidários são debatidos e avalizados, seja em agendas “internistas” ou “exterdistas”. Só entra no Coração, ou autos aprovados conforme as regras supracitadas... A partir daí, uma “tese” vira “lei” e a "opinião" se torna "fato". Sempre que a legislação da alma sofre emendas, ou algum julgamento convocado pelo CORAÇÃO é concluído, existe um departamento que torna pública a decisão, reportando para outras “bibliotecas” as resoluções da alma: A BOCA. Repartição fundamental para o corpo, a Boca é responsável pela "entradas" de suprimentos e "saída" de valores. Por vezes, em casos extremos, divide com outro departamento (localizado mais ao sul), o descarte de dejetos...  O porta voz da Boca, imponente e afiado, é ninguém menos que o Ilmo. Srº Língua, sempre cercado por sua guarda uniformizada num branco amarelado. E aí está o perigo... Srº Língua exerce grande influência sobre toda a instituição. É temido e admirado até mesmo pelos figurações da casa. Logo, "A Boca" tem priori sobre as demais instâncias, já que é a ligação direta da instituição privada com o mundo externo. Logo, precisa estar sempre em evidência, municiada de informações e pronta para os holofotes.

Quem fala demais, não permite tempo hábil para a análise de informações. Afim de manter A BOCA funcionando, a MENTE  da Alma contorna o regimento estabelecido pela ALMA, e despacha sem maiores analises todo o conteúdo que recebe via "ouvidos e olhos". Tudo passa a ser creditado incorretamente, e mesmo o mais inverídico malote, é identificado com o selo da verdade. As cargas são enviadas as pressas para o CORAÇÃO, e arquivadas sem qualquer debate democrático. Pilhas de Pastas... Documentos de inveracidades, enganos, mentiras, engôdos, falsificações e leviandades, abarrotando as estantes e prateleiras... Leis fictícias escritas num quadro negro com giz úmido e esfarelado... E a cada novo requerimento do Srº  Língua, A Boca fala sobre aquilo que o coração está cheio.

Metáforas a parte, o coração humano é alimentado por fast-food. Mal sabemos a procedência e comemos sem moderação. Muitas caixas que trazem “Deus” no rótulo são enlatados a base de ego humano...  E esfomeados, engolimos esta gororoba sem ao menos mastigar...  Sucos que se dizem “feitos com a polpa do fruto espiritual”, são apenas líquidos inodoros aromatizados artificialmente por interesses melindrosos. Mesmo assim, tomados em goladas generosas, o que impedem a percepção do verdadeiro sabor... Em pouco tempo,  coração e estômago estão empanturrados de tanta porcaria, que a única opção é vomitar imundícias... Exatamente por isto, Jesus disse que a contaminação mais perniciosa não está no que entra pela “boca” (o alimento), mas sim naquilo que dela sai... Palavras cozidas em dejetos borbulhantes nas caldeiras do coração.

É preciso ouvir com mais atenção.... Deixar que a grande biblioteca da alma faça seu trabalho. Filtrar as informações, retendo o que é bom e jogando na latrina toda palavra perniciosa. Quem escuta pacientemente antes de emitir opinião, não queima etapas. Permite que a verdade se revele naturalmente, sem tirar conclusões precipitadas sobre pessoas, lugares e situações. Não espalha boatos e nem perjúrios, e com isso se protege contra retaliações. Afinal de contas, calúnia, difamação e injúria, além de pecado contra o próximo, também é crime contra a honra, tipificados nos artigos 138, 139 e 140 do código penal. Existem sanções previstas na lei do homem e na legislação dos céus.... Assim, quem fala demais, realmente corre o risco de dar bom dia a cavalos, podendo o equino ser parte da polícia montada ou, quem sabe, uma das montarias descritas em Apocalipse 6.

Palavras são espadas de dois gumes. Podem abençoar ou amaldiçoar... Pregamos o evangelho... Murmuramos contra Deus.... Cantamos ao Senhor... Contamos Piadas.... Oramos por algumas pessoas.... Caluniamos outras... Dá para entender? A origem desta dubiedade está exatamente na captação de informações que sustentam os argumentos. Se dermos maior atenção as palavras do Senhor e menos crédito as vozes do mundo, o Srº Espírito terá maior respaldo para aprovar pautas espirituais.... Porém, se voltarmos os ouvidos para o auto-falante de Satanás, com suas lorotas, prevaricações e mentiras, sempre semeando caos, contenta e discórdia, então a Srª Carne transformará a alma num antro de iniquidades avalizadas. E independente de quem fala mais alto no interior do coração, é o Srº Língua quem compartilhará este conteúdo com as pessoas. E como avaliar a qualidade? Fácil... Imagine que ao final do dia, suas palavras lhe sejam servidas numa bandeja de prata.... Terás coragem de comer? Seu organismo seria alimentado ou envenenado pelas frases que saem de tua boca? E aqui vale lembrar que até mesmo comida boa, quando consumida em excesso pode causar mal-estar, e por vezes, óbito. Tiago foi categórico ao afirmar que, mesmo um religioso exemplar, quando não refreia a língua, torna nula sua devoção (Tiago 1:26).

Aliás, o escritor da epístola de Tiago se preocupava bastante com este tema. Mais à frente, ele compara a língua ao leme de um navio, que mesmo sendo uma pequena parte da embarcação, controla a direção de todos que estão a bordo. E de forma ainda mais incisiva, equipara a língua humana com uma fogueira na floresta. Pode parecer inofensiva, mas o potencial para estragos é incalculável. Uma língua irrequieta está sempre encharcada de veneno, e quando pela falta de controle entra em combustão, contamina o corpo e incendeia o curso da vida.... Literalmente, provoca o inferno na terra (Tiago 3:4-7).

A Língua... Com ela bendizemos o Senhor, nosso Pai, e com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. De uma mesma boca procede a bênção e a maldição. Não convém, meus irmãos, que seja assim. Porventura lança uma fonte por uma mesma bica água doce e água amargosa? Acaso, meus irmãos, pode a figueira dar azeitonas ou a videira dar figos? Do mesmo modo a fonte de água salobra não pode dar água doce. Quem dentre vós é sábio e inteligente? Mostre com um bom proceder as suas obras repassadas de doçura e de sabedoria. Mas, se tendes no coração um ciúme amargo e gosto pelas contendas, não vos glorieis, nem mintais contra a verdade (Tiago 3:9-14). 

Há séculos conta-se a história de um rico mercador grego que tinha um escravo chamado Esopo, do qual se diz que era corcunda e feio, mas de uma grande sabedoria.  Certa vez, para provar as qualidades de seu escravo, o mercador lhe deu algumas moedas, ordenando que fosse ao mercado a fim de comprar o melhor ingrediente para um banquete. E ressaltou: - Hoje quero comer o que há de melhor no mundo! Pouco tempo depois, Esopo voltou do mercado e colocou sobre a mesa um prato coberto por fino pano de linho. O mercador levantou o paninho e ficou surpreso com a escolha do criado:

– Língua? Ah! Eu adoro língua! Nada como a boa língua que somente os gregos sabem tão bem preparar. Mas por que escolheste exatamente a língua como a melhor comida do mundo? 

O escravo explicou sua escolha: 

– O que há de melhor do que a língua, senhor? A língua é que nos une a todos, quando falamos. Sem a língua não poderíamos nos entender. A língua é a chave das ciências, o órgão da verdade e da razão. Graças à língua é que se constroem as cidades, graças à língua podemos dizer o nosso amor. A língua é o órgão do carinho, da ternura, do amor, da compreensão. É a língua que torna eterno os versos dos grandes poetas, as ideias dos grandes escritores, a filosofia dos nossos filósofos. Com a língua se ensina, se persuade, se instrui, se ora, se explica, se canta, se descreve, se elogia, se demonstra, se afirma. Com a língua dizemos “mãe”, “querida” e “Deus”. Com a língua dizemos “sim”. Com a língua dizemos “eu te amo”! O que pode haver de melhor do que a língua, senhor? 

O mercador concordou plenamente com a escolha do escravo. Uma semana depois, chamou Esopo outra vez, lhe deu a mesma quantia de moedas e propôs um novo desafio. Ir ao mercado, e desta vez trazer para o jantar, o que havia de pior para se comer... De ervas amargas a insetos nojentos... Não importava... Quanto pior fosse, melhor seria...  Em pouco tempo Esopo voltou do mercado trazendo um prato coberto por um pano. O mercador recebeu-o com um sorriso... Estava curioso... Descobriu o prato, e indignado esbravejou:

– O quê? Língua? Língua outra vez? Não disseste que a língua era o que havia de melhor, Esopo? Que brincadeira é esta?

E Esopo, sabiamente, respondeu: 

– A língua, senhor, é o que há de pior no mundo. É a fonte de todas as intrigas, o início de todos os processos, a mãe de todas as discussões. É a língua que separa a humanidade, que divide os povos. É a língua que usam os maus políticos quando querem nos enganar com suas falsas promessas. É a língua que usam os vigaristas quando querem trapacear. A língua é o órgão da mentira, da discórdia, dos desentendimentos, das guerras, da exploração. É a língua que mente, que esconde, que engana, que explora, que blasfema, que insulta, que se acovarda, que mendiga, que xinga, que bajula, que destrói, que calunia, que vende, que seduz, que corrompe. Com a língua dizemos “morre”, “canalha” e “demônio”. Com a língua dizemos “não”. Com a língua dizemos “eu te odeio”! Sim, senhor... Completou Esopo: - A língua é a pior e a melhor de todas as coisas!

Srº Língua... Persona piromaníaca de grande influência, que faz da Boca seu altar. E as mensagens que prega percorrem um longo caminho antes de virar esboço. Passam pelo concílio da alma, verificadas a exaustão por Srª Carne e Srº Espírito. O que agrada a um, desagrada o outro, e a disputa parece nunca ter fim... Mas, ao final, alguém acaba sempre cedendo. Se a pauta for favorável ao Srº Espírito, seus colegas de bancada (Amor, Paciência, Bondade, Fidelidade, Mansidão, Domínio Próprio, Verdade, Pureza, Esperança e Fé) farão exames minuciosos em cada parágrafo, permitindo que a lei gravada no coração seja pura, agradável e eficaz... Porém, se não refrearmos o fluxo de informações, ouvindo atentamente cada palavra, retendo o que é bom e eliminando o que é mal, Srª Carne será absoluta na casa, validando os preceitos perniciosos que contaminarão toda a alma... Enquanto isso, o Srº Língua estará em chamas, destilando veneno por todos os lados, sem perceber que desta maneira,  gera contra si, provas irrefutáveis que a promotoria divina certamente usará no julgamento das obras...

Então...

Evite transtornos... Hoje e sempre... Ouça mais... Fale menos... Pense mais... Discurse menos... Como alguém sabiamente já aconselhou, “sejamos senhores da nossa língua para não sermos escravos das nossas palavras”. Pesquise mais... Compartilhe menos... Delete mais... Reencaminhe menos... Como Andson de Souza ponderou, “o homem sábio cria novas tecnologias e as novas tecnologias criam homens estúpidos”. O controle absoluto sobre os discursos mais importantes que faremos na vida concentra-se nos ouvidos, não na língua. A palavra lançada, não volta... A sentença proferida é irrefreável... A boca do homem é como o cano de um revólver, cujo tambor localiza-se no coração... A sabedoria nos permite carregá-lo com as munições corretas (respeito, verdade, afabilidade, ternura, evangelho... silêncio), já que uma vez disparado o gatilho, não há como voltar atrás. Caso o projetil tenha propriedades mortais, um assassinato já foi moralmente executado... E diante de Deus, ações e intenções tem peso, valor e consequências equivalentes... E pode ter certeza... Ainda hoje, vários disparos serão efetuados...

Quem acender as fornalhas do inferno com a própria língua, não terá tempo hábil para fugir das chamas...

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