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terça-feira, 10 de julho de 2018

Muito além da espera

Para quem sabe esperar, tudo vem a tempo.
(Clément Marot)


Um homem estrangeiro vindo de terras longínquas bateu na porta da casa de Betuel com uma proposta muito suspeita: - Quero levar sua filha para meu país, onde ela se casará com o senhor de nossa terra. Como gesto de boa vontade, darei a vocês algumas jóias, peças de ouro e prata, além de belos vestidos para as damas da casa. Imediatamente, todos os olhos se voltaram para o centro da sala onde a belíssima Rebeca se mantinha serena apesar de todas as pressões emocionais que a cercavam.

- Você quer ir embora com este homem? – Perguntou o pai.

- Sim. Eu quero! – Respondeu a moça sem nenhuma dúvida na voz.

Estaria a incauta jovem embasando sua decisão em impulsos carnais e intuição cognitiva? Seria prudente uma donzela da Mesopotâmia embarcar numa jornada cega por planícies desérticas em direção à uma terra desconhecida para se casar com alguém que ela sequer tinha certeza da existência? E se o “servo” dedicado fosse apenas um milionário psicopata em busca de satisfação e prazer mórbido? Caso a história fosse verdadeira, o fato de procurar uma esposa num lugar tão distante, não tornaria o “tal” noivo num potencial suspeito? Se o “herdeiro” de Abraão era um ótimo partido, porque as mulheres da sua terra não se candidataram ao posto de “Lady Isaque”? Seria ele, um homem violento? Estaria o anonimato escondendo um rosto deformado? 

Tantas questões...

Rebeca não tinha resposta para estas perguntas por um único e óbvio motivo. Ela não fez questionamentos. Estava absolutamente certa da decisão. Sua resposta positiva ao convite de Eliezer não refletia desejos efêmeros ou ambições futuras. Era o resultado de uma escolha feita por ela muitos anos antes. Afinal de contas, quem opta pela espera consciente, entende muito bem a lógica de uma oportunidade única.

Na verdade, esta não é uma história de decisões instintivas e inconsequentes. Cada “SIM” foi provado, testado e conferido antes da afirmativa ser pronunciada. Todas as dúvidas já haviam sido disseminadas durante o tempo da espera, submetidas ao crivo da vontade de Deus. E quando isto acontece, a possibilidade de erros crassos é reduzida para “zero”. Porém, antes de qualquer “benefício”, uma série de aparentes prejuízos colocam em cheque este estilo longânime de viver a vida. Renúncias. Resignações. Isolamento Social... Paciência, muita paciência. E talvez esta seja a maior das dificuldades.

Somos apressados por natureza, pois já nascemos condenados a morte. Com a urgência dos dias, é preciso “matar” o leão de hoje, com a alcateia arranhando a porta da sala. Então, corremos. Aceleramos rumo ao futuro escolhendo entre as opções que já foram apresentadas, sem ao menos ponderar que ainda existem possibilidades mantidas em segredo. Este é o grande dilema. Agilidade no “hoje” para assegurar o “amanhã”, ou paciência para esperar o “amanhã” e nele garantir um “futuro” muito mais profícuo?

Estamos todos expostos a esta rotina de escolhas impactantes e impactadoras, mesmo que elas se revelem diferentes para cada um de nós. Você não entende minhas escolhas e eu não entendo as suas. Rebeca também passou pela encruzilhada das decisões e por muito tempo conviveu com os percalços da rota escolhida. Como homem (dotado de senso pragmático e visão objetiva) não tenho a sensibilidade necessária para entender os sacrifícios pessoais feitos por Rebeca. Logo, tenho dificuldades em desenvolver empatia por suas convicções. Exatamente por isto, prefiro observar o comportamento da garota mesopotâmica por olhos mais sensíveis. Tempos atrás, li um ótimo texto escrito pela minha amiga Élita Pavan sobre o “a beleza da espera” onde ela faz a seguinte análise sobre Rebeca:

Rebeca era uma jovem solteira, belíssima, bondosa e obediente. Cuidava das ovelhinhas de seu pai. Era hospitaleira, agradável e prestativa. Rebeca não reclamava por não ter um companheiro e nem sofria com isso. Rebeca ocupava seus dias servindo ao Senhor! É evidente que Rebeca tinha a postura de uma legítima Mulher de Deus. Estava “sendo produtiva” quando foi encontrada pelo empregado de Isaque, e ainda se revelou “serva” quando lhe serviu água.  Este comportamento, fez o servo entender que ela era a mulher perfeita para seu senhor. A esposa que Deus tinha escolhido para Isaque. Em nenhum momento vemos Rebeca se “oferecendo”, mas sim esperando, mesmo sem saber “se” e “quando” seria encontrada. Ela não precisou insinuar-se para seu pretendente, enviar mensagens instigantes pelo WhatsApp, postar fotos sensuais no Facebook, realizar longas chamadas telefônicas melosas ou marcar encontros privativos para um “melhor conhecimento”. Ela simplesmente estava convicta de sua escolha e fez a parte que lhe convinha fazer. ESPERAR. Deus também fez a parte dele, e na hora certa, agiu em seu favor. Ela se preservou e o Senhor a honrou. Era linda, jovem e inteligente. Uma nora desejável e uma esposa sonhada por dez em cada dez homens de sua terra. Mesmo assim, não se sentia mal por não ter um esposo ou um casamento já arranjado pela família... Ela entendeu que havia um tempo para cada coisa acontecer em sua vida. E no tempo certo, tudo aconteceu...

Se a perseverança de Rebeca é louvável, outros personagens não se fazem de rogado no mesmo quesito. A começar pelo contraponto desta história. Isaque nasceu no crepúsculo da vida de seus pais. Abraão e Sara já formavam um casal centenário enquanto o pequeno herdeiro derrubava as botijas de farinha pela tenda. Os dias de “família feliz” seriam escassos. Assim, Isaque também fez uma escolha de vida altruísta, optando por cuidar de seus pais, ao invés de pensar em encontrar uma parceira para constituir sua própria prole. Ele já era um homem na casa dos quarenta anos quando Sara morreu. A ausência da mãe lhe roubou o sorriso, e foi presenciando a tristeza do filho, que Abraão achou prudente lhe arranjar um casamento.

E neste ponto, temos mais uma lição de perseverança, paciência e certeza daquilo que “se quer” em “sujeição” a vontade de Deus. Abraão não queria que Isaque tivesse como esposa uma mulher aleatória escolhida pelas conveniências culturais. Aquele não seria um casamento baseado em barganhas políticas ou lucros financeiros. Em Isaque seria ratificada a Aliança Abraâmica, logo, ele precisaria estar ladeado por uma mulher condizente com os termos da promessa. Então, o patriarca chamou seu servo de maior confiança, e o recomendou que fosse até a Mesopotâmia, e dentre a parentela de Naor, escolhesse uma esposa para seu filho. Desta maneira, a pureza da linhagem estaria preservada e a semente de obediência plantada por Abraão em Ur dos Caldeus, seria regada por fé, afeto e amor.

- Eliezer, meu servo... Vá até a casa de meus parentes, e encontre entre as filhas daquela terra, uma mulher para ser a esposa de meu filho.

- Mas como saberei qual é esta mulher, meu senhor? – Perguntou Eliezer

- O Deus que me tirou da casa de meus pais vai enviar um anjo que te ajudará nesta escolha. Apenas jure pelo Senhor que, de boa vontade, trará uma donzela honrada para constituir família com Isaque!

- Eu juro! - Respondeu o servo! – Mas, e se eu encontrar a mulher perfeita para seu filho, e ela se recusar a viajar comigo? Devo levar Isaque até ela?

- Não, meu bom servo. Isaque jamais deverá regressar para a terra de meus antepassados. Se a moça escolhida se negar a te acompanhar, você estará livre de seu juramento.

Sem etapas queimadas. Nenhuma imposição autocrática. Olhos no futuro sem arrependimentos pelas escolhas obedientes do passado. Tudo a seu tempo. Sem força ou violência. Apenas o Arquiteto do Universo delineando com paciência seu plano magistral. Peças importantes colocadas em pontos estratégicos da história. O “SIM” não foi uma resposta aleatória que emergiu no calor das emoções. Ele já estava escrito nos primórdios da criação, e Rebeca soube esperar o momento certo para dizê-lo. Ela não gastou o corpo e as emoções com prazeres efêmeros e paixões sazonais. Perdeu a conta de quantos “NÃOS” distribuiu para aventureiros antes que um único e decisivo “SIM” redefinisse a história de sua vida e assegurasse o destino de toda uma nação.

E o que falar do servo de Abraão?

Quando Eliezer chegou na cidade de Naor, não saiu afoito batendo de porta em porta como era de se esperar. Não foi buscar referências junto aos homens assentados na praça. Se manteve longe de bordéis e templos religiosos. Não seria enganado por fachadas ou sussurros tendenciosos. Muitas moças se vislumbrariam com o conto do “príncipe encantado” de Canaã. Seria fácil encontrar uma aspirante a princesa, cheia de sonhos fúteis e repleta de alienações para com os planos de Deus. Mas, o foco não era este. Seria preciso encontrar uma verdadeira rainha, mesmo que não houvesse qualquer coroa no contrato de casamento. Ciente de sua responsabilidade, Eliezer escolheu o caminho da perseverança, e colocou nas mãos de Deus o poder da decisão. Assentou-se na entrada da cidade, junto a fonte de onde as moças retiravam água para suas famílias. Depois de observar o intenso movimento, e reconhecer a incapacidade de realizar um julgamento justo, no cair da tarde ele orou ao Senhor:

- Deus de Abraão... Permita-me ter sucesso ainda hoje! Seja bom para com meus senhores Abraão e Isaque... Estou eu aqui ao lado desta fonte, e as moças da cidade de aglomeram para retirar água. Dei-me a graça para reconhecer aquela que agrade tua vontade... E então, eu lhe pedirei um pouco de água, e a tua escolhida dará de beber a mim, e ainda se oferecerá para dar de beber a todos os camelos.

Sabe o que Bíblia não revela? Quantas moças já tinham ouvido este pedido antes da oração. Particularmente, acredito que foram muitas, afinal, nenhuma benção “épica” bate em nossa porta sem provações prévias. Quantas disseram não? Quantas foram gentis com o viajante e solicitas lhe serviram da água do poço? Mas, se voluntariar para a ingrata missão de matar a sede da cáfila composta por camelos exauridos pela viagem, já seria bondade demais.... Este, sem dúvidas, não era (ainda não é) o trabalho adequado para uma dama.... Idas e vindas a parte, certo é, que antes mesmo que o "amém" da oração fosse dito, Rebeca já estava junto ao poço. Que beleza radiante! Olhar meigo. Traços finos como se fossem esculpidos a mão por um exímio artista. A resposta personificada de uma prece. A recompensa de toda espera. Ou seria apenas mais uma moça de aparência marcante e conteúdo nulo?

Se Rebeca era a resposta para a oração de Eliezer, Isaque era a resposta para as orações de Rebeca. E o tempo da espera estava se findando. Porém, a promessa nunca vem com placa de identificação. É preciso reconhece-la. O príncipe não veio montado num cavalo branco. Ele ficou em casa, e em seu lugar foram enviados camelos sedentos. Antes da aliança circular o dedo anelar, seria preciso calejar as mãos carregando o cântaro. Quando Eliezer se aproximou de Rebeca, ela sorriu gentilmente. Precisou se conter para não a chamá-la de “My Lady”. – Moça! - Disse ele.  - Poderia me dar um pouco desta água?

- Pois não, meu senhor.

Rebeca percebeu o cansaço do homem, o desgaste da comitiva e a fadiga dos animais. Imediatamente se compadeceu dos viajantes. - Beba o quanto desejar, bom homem... Você e seus companheiros de jornada.. Enquanto isto, vou dar de beber aos teus camelos...

Sabe quantos litros de água são necessários para matar plenamente a sede de um camelo? Cem litros. Eliezer tinha dez camelos para serem abeberados. Tenho certeza que você mentalmente já fez as contas. Um único cântaro nas mãos para retirar mil litros de água do poço. Quantas viagens foram feitas pela moça? Enquanto corria de um lado para o outro, Eliezer a observava com um sorriso no rosto. Estava certo que o Senhor tinha “coroado a sua missão”. A joia desta coroa tinha nome. 

Como paga por seu trabalho voluntário, a moça recebeu duas pulseiras de ouro. Ela ainda não sabia, mas a devoção de toda uma vida estava começando a ser recompensada de forma gloriosa. - Diga-me, minha jovem.... Qual é teu nome? Quem são teus pais? Haveria lugar em sua casa para que minha comitiva pudesse passar a noite?

- Meu nome é Rebeca... Sou filha de Betuel... Meus avós se chamam Milca e Naor... Nossa casa é grande e certamente serão bem acolhidos pela minha família.

Ao ouvir estas palavras, Eliezer não se conteve. Em lágrimas ele caiu com o rosto ao chão, adorando e agradecendo ao Deus de Abraão: - Bendito seja o Senhor, Deus do meu senhor Abraão, que para sempre é bom e fiel. Ele me conduziu em segurança para dentro da casa a qual foi instruído a visitar!

A família de Raquel era importante. Seu irmão mais velho se chamava Labão. Ele pessoalmente hospedou Eliezer. Durante toda a noite conversaram sobre as bênçãos que o Senhor derramou sobre a vida de Abraão. E todos se admiraram com os relatos de Eliezer sobre seu encontro com Rebeca. Deus a havia escolhido para ser esposa de Isaque. Mãe de muitas tribos. Herdeira de uma grandiosa promessa... Betuel tinha autonomia para decidir o futuro da filha, mas se calou. Labão poderia opinar sobre o futuro da irmã, porém se manteve em silêncio. Reconheceram que os planos de Deus são bem maiores que planejamentos familiares. E mais... Conheciam Rebeca. Sabiam de sua índole. Respeitavam sua voz. Caráter. Postura. Comportamento. Então, a moça foi chamada para a sala. O direito de escolha pertencia somente a ela.

- Você quer ir com este homem, Rebeca?

Sem pausas dramáticas...

- Sim! Eu quero! Eu vou!

A viagem seria longa. Terra desconhecida. Casamento com um estranho. Nada disto abalava Rebeca. Uma vida de espera lhe dava certeza da escolha realizada. Quando se aproximava do acampamento de Abraão, a moça viu um homem que caminhava sob o sol por entre as plantações: E com o coração disparado no peito, perguntou aos "seus" servos: - Quem é ele?

- Aquele homem?  Ele é Isaque...

E então Rebeca cobriu seu rosto com o véu.... 

Como bem escreveu minha amiga Élita Pavan, "todo fruto delicioso amadurece lentamente, frutas fora do tempo, além de serem rançosas, ainda fazem mal para a saúde". Espere o tempo da colheita! Aguarde os campos estarem em flor... Rebeca e Isaque são duas rosas que brotaram em diferentes jardins, mas Deus os uniu no mesmo bouquet. Ela se apaixonou pela silhueta de Isaque antes mesmo de abraçar seu corpo bronzeado pelo sol. Isaque se apaixonou por ela, antes mesmo de contemplar seu rosto de olhos vividos e afetuosos. Nada de amor à primeira vista... Amor depois de muita espera... Amor que surge no horizonte e se aproxima lentamente, não deixando espaço para medos, dúvidas e indagações... Amor que é bem mais que um mero sentimento... É a resposta definitiva para as mais sinceras orações!


Texto adaptado do relato bíblico de Gêneses 24

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