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sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Primavera em campos de esterco

Plante seu jardim e decore sua alma, 
ao invés de esperar que alguém lhe traga flores!
(Veronica Shoffstall)


Quando era criança, vez ou outra, caminhava com meus irmãos por entre árvores e arbustos. Estávamos em uma verdadeira caça ao tesouro, cujo prêmio, era encontrar... esterco. Como ficávamos histéricos quando encontrávamos um belo monte de “dejetos equinos”. Olhos brilhantes diante daquela preciosidade. Não pela condição atual do produto, mas sim, pela potencialidade ali escondida.

Nesta época, minha mãe tinha uma pequena horta em nosso quintal. E todo aquele “lixo” orgânico, era usado como adubo, para fortalecer os brotos e encorpar as hortaliças. E por mais que pareça bizarro, quanto mais “esterco” investido na "lavoura", mais bela ficava a plantação. Então, a dona Márcia decidiu expandir suas atividades, e fazendo uso da mesma técnica, cultivou algumas árvores frutíferas em casa. E nosso pequeno jardim... Um show de primavera sobre o palco forrado por fezes de cavalos. 

Quanta ironia!

E ao lembrar-me destas aventuras infantis, me ponho a pensar no trabalhar de Deus, e em sua capacidade de transformar esterco em jardins floridos. Caos em ordem. Tragédia em final feliz. Davi emergindo do pasto para se tornar rei. José deixando sua cela vazia, e assumindo a cadeira de governador do Egito. Jonas sendo vomitado na praia, afim de salvar a vida dos ninivitas. Cenários de confusão, desespero e caos, se convertendo em benção e salvação a um número incontável de pessoas. Como, por exemplo, Cristo de braços abertos na cruz, levando sobre si o pecado do mundo inteiro. O sofrimento de “um”, tendo como propósito, a felicidade de “todos”. Poético, não?

Mas, a poesia perde toda a rima, quando o “um” em questão é você...

Tenho um grande amigo, ao qual chamarei apenas de "L", que viu sua vida soterrada por uma avalanche de esterco. Ele deixou a cidade que morava e onde já tinha uma vida estabilizada, para aceitar o desafio de pastorear uma igreja recém-inaugurada a muitos quilômetros dali. O trabalho não obteve os resultados esperados. Assim, ele foi abandonado por seus líderes, e encontrou muitas dificuldades para se adaptar nas denominações existentes naquela localidade. Um duro golpe em seu ministério pastoral. Sei deste sentimento, porque compartilhei de sua dor. Trabalhávamos lado a lado, e muitas vezes, na hora do almoço, ele me segurava pelo braço e dizia:

- Deus acabou de me dar uma mensagem... Meu coração está queimando... Hoje você será a igreja para qual irei ministrar...

Perdi as contas de quantas pregações exclusivas eu ouvi de sua boca. Algumas, soavam quase como gritos de desespero. Um pastor sem igreja, perde um pouco a razão de ser. E neste caso, testemunhei com meus olhos o definhar de um imenso potencial. Algo vivo e pulsante, regredindo até virar dejeto. Esterco.

Para piorar a situação, "L" se viu às voltas com um drama familiar desolador. Seu lar começou a sucumbir. Quando a única edificação de um castelo é feita de matéria pastosa, a ruína é só uma questão de tempo. Pouco tempo. É os danos, se tornam irreparáveis.

Extremamente angustiado, se sentindo desprezível e sem qualquer utilidade, o "pastor sem rebanho" tomou uma decisão extremada. Numa noite de céu estrelado, esperou seus filhos dormirem, saiu de casa e caminhou sob a luz da lua por um tapete de pedras. O caminho era íngreme, e terminava junto a uma linha férrea. Alguns passos sobre trilhos, e já estava no pontilhão. Abaixo, uma estrada pouco movimentada. Agora, uns quinze metros o separava do asfalto. Com os olhos cheios de lágrimas, subiu no parapeito e se preparou para saltar. Seria uma queda rápida e mortal. Provavelmente, nem sentiria dor. E se sentisse, seria menor que os flagelos que lhe assolavam a alma. Só um salto, e tudo terminaria...

Sei que esta é uma situação um tanto atípica. Porém, é bem mais comum do que parece. Raramente subimos no alto de uma edifício para flertar com a morte, mas a grande verdade, é que muitas vezes, nos vemos pendurados na beira de um abismo, agarrados apenas a um arbusto de espinhos. A esperança que ainda existe, machuca. E nestas condições, como não pensar no custo benefício de uma queda intencional? Será que o solo lá embaixo, é realmente pior que uma visão ensanguentada  das estrelas?

Antes da queda, meu querido amigo decidiu fazer uma última oração. Ele desceu do parapeito, e se sentou no chão, apoiando as costas numa pedra. Olhou para o céu, e começou a falar com Deus. Lavou sua alma. Derreteu o coração. Um caminhão de esterco inundou os trilhos. Palavras engasgadas foram gorfadas no ar. E um tanto mais leve, ele simplesmente... dormiu.

Duas horas depois, acordou com o som de um soluço ressentindo. Ergueu os olhos na direção do som lamurioso, e se deparou com a cena familiar. Um homem de meia idade, com os cabelos prateados caindo sobre a testa, arqueava-se junto ao parapeito da ponte. Suas lágrimas rolavam pelo rosto arredondado. Num último suspiro desesperançado, o homem deslizou o corpo para fora da estrutura. E então, a voz de "L" ecoou desesperada:

- Meu amigo! Pelo amor de Jesus Cristo! Não faça isso!

Que ironia!

Flores brotando entre os estercos. Um aspirante a suicida, salvando a vida de um suicida em potencial. Por longas horas, eles conversaram."L" encontrou em seu sofrimento, a inspiração para trazer conforto ao próximo. Um pastor sem rebanho, pastoreando sua única ovelha. Um ministro diante de uma igreja exclusiva, cuja alma estava faminta. Banquete espiritual. Quando os primeiros raios do sol iluminaram a ponte, quem observava lá de baixo, podia ver a silhueta de um homem ajoelho, enquanto o outro impunha as mãos sobre sua cabeça. Duas almas salvas. A descida foi lado a lado, pelo caminho mais longo e sinuoso. Vivos. Irmãos.

Você entendeu o mistério? Se tudo estivesse bem na vida de "L", naquela noite de desespero, ele estaria dormindo o sono dos justos em sua cama quente e confortável. Talvez, na manhã seguinte, ouviria apenas os comentários sobre um pobre coitado sem nome que se jogou da ponte. Então, Deus o permitiu vivenciar uma série de desventuras que o levaram a enxergar alguma esperança exatamente no abandono de toda esperança. Ele precisou chegar ao limiar extremo de um quase suicídio, para que um anônimo aleatório fosse restaurado. Anos de sofrimento visando um único momento de glória. Um final feliz para o capítulo. Um gancho de esperança para as próximas páginas da história. 

O Senhor sempre se mantém muitos passos à frente. Enquanto o homem se vê soterrado em esterco, Deus está plantando sementes de rosas, lírios e orquídeas. Então, paciência, meu amigo. Seja o esterco com um sorriso nos lábios. E se prepare para o longo processo, sem medos e sem ilusões.... Nunca é fácil.

Eu nasci com uma deformidade crânio facial, e segundo os diagnósticos clínicos, minha capacidade de comunicação através da fala seria limitadíssima. Mesmo após muitas cirurgiãs, a estética do meu rosto permaneceu comprometida. Um desconforto emocional que teria de carregar por toda a vida. Sabendo de minhas neuroses, Deus, então, me trouxe uma palavra de conforto:

- Filho, te fiz assim, para que meu nome fosse glorificado através de sua boca!

E você acha que me senti reconfortado com esta revelação? Pelo contrário. O sentimento foi de ofensa. Me vi uma cobaia nas mãos do cientista maluco. É difícil assimilar a responsabilidade de carregar um espinho na carne para provar as outras pessoas que Deus é amoroso, generoso e protetor.

O tempo, porém, é revelador. Ao longo da minha vida, vi médicos agnósticos creditarem a Deus minha capacidade de falar. Observei olhos cheios de lágrimas, enquanto contava meu testemunho. Para quem não poderia se comunicar, meu primeiro emprego foi como locutor em uma rádio evangélica. Falei de Jesus para pessoas que nunca verei o rosto. Pouco a pouco, eu pude emergir do esterco e enxergar o jardim.

E este caminho é uma subida contínua, por uma escada forrada de espinhos. Não tem jeito fácil. E nem atalhos. Só lágrimas e orações angustiadas. Tem sido assim desde o começo. Quando leio o Salmo 73, me deparo com Asafe com esterco até o pescoço. Ele está indignado pela sua situação. Se sente injustiçado por estar envolto em mazelas, enquanto homens perversos nadam de braçada no oceano da prosperidade. E lá vai o salmista na direção do templo, onde a resposta as suas orações chega como os faróis altos de um carro vindo na direção contrária, exatamente no trecho mais escuro da estrada. Asafe compreendeu que o “agora” é uma minúscula gota diante do mar chamado “eternidade”. E o importante não é como as coisas começam, e sim, como vão terminar. Ele entendeu o propósito das suas agruras. Tudo não passava de esterco adubando a terra. E a colheita seria gloriosa. O potencial do esterco revelado em todo seu esplendor.

Tu me diriges com o teu conselho, e depois me receberás com honras. A quem tenho nos céus senão a ti? E na terra, nada mais desejo além de estar junto a ti. O meu corpo e o meu coração poderão fraquejar, mas Deus é a força do meu coração e a minha herança para sempre. (Salmo 73:24-26)

Isaías 53:11, nos diz que após enfrentar a cruz, morrendo em sofrimento e dores lacerantes, Cristo olhou para o resultado de seu trabalho, e se sentiu feliz. Um jardim plantado sobre dejetos. E as flores mais cheirosas deste vergel somos Eu e você. “UM” sendo rejeitado, para que TODOS pudessem ser aceitos. Há uma lógica no caos, que aos olhos de Deus sempre foi uma linha reta e contínua. Tem um ponto de chegada previamente determinado. E vale a pena insistir na jornada. Um sobe e dois descem. Se a ida é regada a lágrimas, o retorno guarda sorrisos.

Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória mui excelente.  Não atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas. (II Coríntios 4:17-18)

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